Crónica Macaense

MACAU HÁ TRINTA ANOS(EXCERTOS DE UM “DIÁRIO”)

Graciete Batalha*

Jan.,1972

llustração de Rui C. Bastos © Copyright 1990

E scola primária, escola primária! Oito anos numa escola deixam muitas recordações. Uma que me ocor-re frequentemente, vendo a maneira como agora os professores, quer pri-mários quer liceais, se deslocam para as suas escolas, é a do transporte que eu usava para a minha.

Nesse tempo os professores não iam de táxi para o serviço nem tinham, geralmente, automóvel seu, não se ga-nhava para isso. As professoras não ti-nham, ou não usavam, os carros dos maridos, muito menos os carros do Es-tado a que alguns maridos tinham direi-to, com motorista às ordens. Ia-se no ve-lho autocarro, ou no moderno (de então) triciclo, quando a distância não dava para ir a pé. Esse era o meu caso e, para apa-nhar o desengonçado autocarro mais próximo, eu tinha dois caminhos: ou descia toda a Rua Central até à paragem junto dos Correios, ou, do largo do Lilau, perto do qual morava, descia a chamada ladeira de Quebra Costas (tão inclinada e empedrada como a de Coimbra) e pas-sava por Há Van Kái para tomar o mesmo autocarro, um pouco mais cedo, na marginal do Porto Interior. O dito au-tocarro não ia até à escola. Parava na Avenida Conselheiro Ferreira de Al-meida e era preciso atravessar até à pa ralela, a Avenida Sidónio Pais, onde ainda hoje funcionam as escolas primá-rias oficiais. Levava tudo isso mais de meia hora e era uma correria todas as manhãs.

Para diminuir a correria, eu encur-tava quase sempre por Há Van Kái, em português Rua da Praia do Manduco, mas a recordação dessa rua é uma ima-gem de horror. Por ser muito típica, no entanto, fiz dela uma crónica - “Carta para a Metrópole” - que o Notícias de Macau publicou em Janeiro de 1959. Já então a crónica poderia parecer fantasia ao bom modo romântico. Que se dirá hoje, quando felizmente já não há em Macau esses estendais de miséria que parecerão aos olhos actuais inacreditá-veis? E contudo o relato é autêntico, em 59 ainda essas imagens estavam bem vívidas na memória. Com perdão de quem estes caderninhos ler, vou repro-duzi-la, a dita crónica. Fala dum Macau que já não existe.

“É já um lugar comum afirmar que em Macau se reúnem dois mundos. O mais extraordinário, porém, não é que esses dois mundos, pois que aqui se reúnem há quatro séculos, se entremis-turem como as tintas duma paleta, dan-do à cidade o seu tom muito suigeneris. O que afinal me parece causa de admira-ção é que, em certos aspectos, as duas civilizações que aqui convivem pareçam tão extremadas, tão distintas uma da ou-tra, como se jamais tivessem vivido lado a lado.

“Vamos por certas ruas, especial-mente as que contornam a baía, e é co-mo se numa cidade europeia, numa des-sas deliciosas cidadezinhas mediterrâni cas, se tivesse recentemente instalado uma colónia de habitantes chineses. Cruzamo-nos com eles nas nossas ave-nidas, vêmo-los habitar nas nossas ca-sas. As avenidas são largas, limpas, as-faltadas. As vivendas são graciosas, co-loridas, muito europeias, em nada acu-sando a propriedade chinesa, a não ser nos pesados gradeamentos de ferro, de que os portugueses em geral não ne-cessitam.

“Mas vamos para a parte mais po-bre da cidade, para os bairros onde a vida é puramente chinesa, e então pa-rece-nos que viajámos milhares de lé-guas; que penetrámos numa distante e isolada vilória da China, onde o “vento do Ocidente” nunca chegou. Agora so-mos nós os intrusos, os deslocados. Tudo à nossa roda é chinês e só chinês, excepto talvez a velha “calçada à portu-guesa”, onde sossegadas galinhas de-penicam.

“Houve tempo em que passei dia-riamente, para encurtar caminho, por uma rua dessas, tão tipicamente chi-nesa que ninguém lhe conhecia, ou pelo menos ninguém lho mencionava, o no-me em português.

“Raríssimas vezes me cruzei ali com um rosto europeu. Percorrê-la era voltar costas, por completo, a tudo o que aqui nos lembra o mundo ocidental, e mergulhar em pleno Oriente, naquilo que ele tem de mais miserável e mais acabrunhante.

“A ruela era puramente comercial. Um pequeno mercado sórdido, que ocu-pava parte do seu lado esquerdo, tor-nava-a muito concorrida às horas da ma-nhã. Era uma multidão suja, desgrenha- da, de olhos pustulentos; criancitas car-regando às costas bebés quase do seu tamanho, com as carinhas imundas; ve-lhos em pijama, de barbichas brancas a flutuar; mulheres com os cabelos por entrançar, soltos até à cintura, ou com tranças que não eram desfeitas há dias.

“E deste formigar de gente, e dos peixes e carnes do mercado à esquerda, e da hortaliça azeda (muito apreciada) das lojinhas à direita, assim como do lixo espalhado por toda a parte, evolava-se um cheiro nauseabundo que refinava nos dias de calor.

“Por vezes, no largo onde a rua de-sembocava, havia um ajuntamento, ro-deando um tam-tam infernal. Era um grupo de pelotiqueiros que faziam acro-bacias e jogos de espada, ou um ho-mem exibindo as habilidades dum pobre macaquito, ou actores ambulantes que, de trajes característicos, cara pintada a rigor, olhos espantosamente oblíquos, representavam cenas dos velhos “au-tos chinas” ainda hoje tão populares.

“Mas o que fazia desta rua uma passagem de pesadelo era o vasto es-tendal de mendigos que ali, num sítio onde ninguém parecia ter nem o sufi-ciente para si próprio, vinham fazer ar-raial por algumas horas, pondo em jogo todas as suas artes para atrair a atenção e a piedade do transeunte.

“Eram criaturas semi-nuas que ba-tiam loucamente com o peito e o rosto nas pedras lamacentas da calçada; monstros disformes que avançavam de rastos, aos repelões, sem fazer uso das pernas que por vezes não tinham; cegos com pivetes a arder espetados no couro cabeludo; mulheres com objectos pen-durados dos lábios ou do nariz - toda uma galeria ululante, gemedora, verda-deiramente à Victor Hugo, capaz de pôr doente o mais empedernido.

“Perguntar-me-ão, certamente, se eu não tinha medo de cruzar tão medo-nha viela. A princípio confesso que tive algum, mas logo me tranquilizei. Nunca fui molestada. Era olhada por vezes com estranheza, nunca com hostilidade. E até os mendigos, vendo-me passar à pressa com ar de quem vai tratar da vida, não me assediavam - eles que estavam também a tratar da sua - mais do que a qualquer outra pessoa.

“Não sei se a rua ainda conserva o mesmo aspecto, a mesma imundície, as mesmas visões de horror. Creio que não, porque o seu velho mercado já foi removido para um edifício próprio, mo-derno, a pequena distância. E o sítio deve ser agora mais policiado. Mas en-tretanto mudei de casa e nunca mais por ali passei”.

Passei depois, anos volvidos, e a rua estava outra. Pavimentada e alarga-da, transeuntes modestos mas limpos, mendigos e pelotiqueiros ausentes. Mas, por outro lado, que é das vivendas graciosas ao longo da baía, seus jardinzi-nhos floridos, suas varandas coloniais? Tudo cedendo o lugar a torres sem estilo nem carácter, sem um canteiro a verde-jar à porta...

Jan., 1972

Quando cheguei a Macau, o sis-tema de transportes não era o que é agora. Havia apenas o autocarro - auto--ómnibus, como ainda hoje se lê nas pa-ragens - o táxi, o riquexó e a bicicleta.

O autocarro não era utilizado pelas pessoas bem. Por mim e por outros pro-fessores primários sim, mas nós não éramos pessoas bem... O táxi. não era realmente táxi, mas um carro de aluguer sem taxímetro. Telefonava-se para uma. garagem, de preferência uma conhecida onde a pessoa fosse afreguesada, e ti-nha-se um carro à porta em menos de cinco minutos, com tarifa fixa para qual-quer parte da cidade. Se o freguês assi-nasse uns talões e pagasse ao fim do mês, tinha até um desconto de 20 avos por corrida... O riquexó, para um passa-geiro apenas, era o mais utilizado pelas senhoras que iam às suas compras, os meninos que iam à escola entregues ao condutor, as cantadeiras que iam animar festas e jantares com sua chaperonne noutro riquexó logo atrás, e ainda por personalidades de categoria, geralmen-te chineses de idade que não aprecia-vam muito as velocidades do automóvel e preferiam ter o seu riquexó particular com condutor pago ao mês.

Ah, mas havia também a bicicleta, o meio mais barato e afinal o mais rápido de todos, desde que não se andasse por ladeiras. Mas esta só era usada pelas criadas de servir e pessoas modestas como elas. Sentavam-se numa tabuinha atrás do ciclista e pela módica quantia de 10 avos iam ao fim do mundo.

Por volta de 1950 ou 51, deu-se um grande avanço nos transportes. Surgiu em cena o triciclo, que viria a destronar o velho riquexó. Com três rodas, é claro, assento para duas pessoas, uma capota para o sol e ainda uma cortina imper-meável e opaca, mas com uma “janeli-nha” de plástico transparente, para os dias de chuva, pedalado e já não puxado a braço por um cule miserável, foi novi-dade muito apreciada e que também uti-lizei bastante, embora fosse quase tão caro como um automóvel (presente-mente o triciclo, já mais raro, é mais dis-pendioso do que um táxi).

De fios presos aos dedos do pé, recosendo placidamente as redes...

Andei, pois, muito de triciclo, coisa agradável no verão; no inverno quase me saía a cabeça com a deslocação do ar frio. O riquexó, porém, recusei-o sem-pre, apesar de que toda a família o utili-zava com naturalidade sempre que ne-cessário. Mas um dia resolvi também experimentar. Chamei um, o homem baixou os varais para eu entrar, sentei--me, e lá vou eu sacolejando suavemen-te ao ritmo compassado dum correr sem pressa. Mas eis que se depara uma ladeira. O homem subia aos zigueza-gues, para facilitar, e assim mesmo eu ouvia-lhe os arquejos, via-lhe as cordo-veias das pernas inchando como san-guessugas, os parcos músculos dos braços retesando-se, as costas bri-lhando de suor, sacudidas de tosse...

Não pude mais. Mandei parar, pa-guei ao homenzinho estupefacto a cor-rida por inteiro, e fiz o resto do percurso a pé.

Foi a minha única e final experiência de tal meio de transporte. Contudo, ao mesmo tempo, doía-me a consciência: se não se lhes dá trabalho, de que vive-rão estes homens que não sabem fazer mais nada?

Certo é que o riquexó foi sendo posto de lado mesmo pelos fregueses mais fiéis, passando a transportar ape-nas volumes, e acabou por ceder defini-tivamente lugar ao triciclo, hoje também quase só utilizado para passeios turísti-cos por visitantes de Hong Kong, onde não existe, ou do Ocidente. Facto cu-rioso é que Hong Kong, cidade moderna por excelência, conserva o antigo ri-quexó estacionado nos locais mais fre-quentados por turistas europeus, que se desvanecem a dar uma voltinha “very typical”...

Fev., 1972

O passeio a Coloane para ver o pôr-do-sol, combinado com o 2ō CC, acabou por fazer-se num dia... sem sol. Frio de rachar, nuvens pesadas, mas ti-nha-se marcado uma manhã em que to-dos saíamos ao meio-dia, e houve que aproveitá-la. Lá fomos, muito encasaca-dos, e o dia não deixou de ser divertido, apesar do frio.

Tomámos o barco da carreira, uma hora de viagem, e fomos directamente almoçar na Pousada de Coloane, a meu convite desta vez. Depois do almoço passeámos a pé pela ilha, na calma, e demorámo-nos bastante junto duma ca sa arruinada e de aspecto vagamente si-nistro, porque, como andamos a dar o Romantismo, tiveram de explorar minu-ciosamente as ruínas, insistindo: “Isto é romântico, S'tora! ”

Resultado: quase a chegarmos ao cais de embarque, (a Ponte, como aqui se diz), para o retorno a Macau, o Litos levanta o braço num largo gesto de adeus e diz, em voz “romântica”:

- Lá vai... lá vai!...

- Lá vai o quê? - pergunto sobres-saltada.

- Lá vai o barco, já o perdemos.

E lá ia mesmo. Oh céus, quando ha-veria outro? Felizmente que já o istmo entre Coloane e Taipa está transitável, embora não acabado. De modo que to-mámos um táxi (creio que o único da ilha) a toda e pressa e aí fomos nós aos trancos e barrancos pelo aterro cheio de covas, a tempo de apanharmos o mes-mo barco no cais da Taipa. E por essa perda do barco ficou memorável o pas-seio.

llhas de Taipa e Coloane... Grandes inovações para elas se projectam. Quando se acabar a ponte de ligação en-tre Macau e Taipa, e estando esta tam-bém ligada a Coloane pelo istmo, as duas belas ilhas farão um todo com a ci-dade e deixarão, espera-se, de ser as duas enjeitadinhas onde o século XX ainda não chegou. Assim seja.

Mas por enquanto, excepto pela Pousada, no edifício que era dantes a casa de praia do Dr. Pedro José Lobo, e por algumas vivendas novas na praia de Choc Van, além dum ou outro jardinzi-nho airoso que a Administração das Ilhas mandou compor, estão como as conheci há vinte anos. E é assim que gosto delas, e foi assim que as pus em letra de forma noutra dessas minhas crónicas, “Carta para a Metrópole”, de 1959. E já que estamos em maré de transcrições, arrisco mais uma:

“Há quem diga que as nossas Ilhas de Taipa e Coloane, situadas à vista de Macau e a um quarto de hora de viagem num bom motor, permanecem, grosso modo falando, no mesmo ponto de de-senvolvimento em que estavam há sé-culos, e que isso tem sido grande mal para nós.

“Não discuto. Para mim, contudo, foi isso grande bem, quando consegui, por um dia, voltar costas à cidade escal-dante e ruidosa, e tomar um banho de frescura e silêncio nas praias e pinhais solitários duma delas.

Aldeolas de Coloane: iguais às portuguesas, iguais ao que são hoje...

“Ir às Ilhas, para o comum dos mor-tais, é uma aventura, e vai-se lá uma vez de ano a ano por muito favor. As lanchas de carreira são morosas e irregulares, os bons motores não são propriedade de qualquer, as marés altas que permitem a travessia nem sempre calham a horas convenientes - e além de tudo o mais, a inércia é uma doença grave e impediti-va...

“Desta vez, por um conjunto de cir-cunstâncias favoráveis, visitei Coloane pelos últimos calores do Outono, ma-tando saudades de três anos.

“O que principalmente me atraíu, como a toda a gente, foram as praias, se bem que estas não satisfaçam ao nosso atlantismo atávico. Há duas belas baiazi-nhas “de águas mansas como escra-vas”, mas, como na canção saudosa,

“eu prefiro as ondas bravas do mar que nos olhos trago”...

“São, de facto, praias de brincar, comparadas com as do nosso Atlântico viril. No entanto, temos de convir, bem melhores para um banho: as ondas não chicoteiam o desgraçado que não se atreve a passar para lá da rebentação, e a água, embora um tanto lodosa, é agra-davelmente tépida, não nos obrigando a fugir batendo os dentes, como acontece nas nossas praias.

“Coisa estranha - nestes areais convidativos, em terra de pescadores, não há redes nem barcos, nada que lem-bre a pesca. Não há povoações neste lado da ilha. Na baía de Hác-Sáou Areia Preta (a areia é curiosamente escura) apenas uma abastada família chinesa está levantando uma granja luxuosa e surpreendente, a dois passos da praia. A outra baía, a de Choc-Ván, igualmente deserta e árida há dez anos, lembra ago-ra, com suas garridas vivendas de verão, uma daquelas graciosas conchas medi-terrânicas dispostas em presépio.

“Depois duma ausência de três anos, não fazia sentido que não desse uma vista de olhos à outra costa da ilha, onde fica o que pomposamente chama-mos a vila. Um posto administrativo, um quartel, uma escola, uma igreja - isto, com pouco mais, sem esquecer o Posto Médico, constitui a vila.

“Para além, uma série de colinas cobertas de pinheiros. E, aninhadas nas depressões ou à beira do mar, uma ou outra aldeola chinesa onde a influência ocidental é totalmente nula, a não ser pelas barracas de café e refrescos com grandes anúncios de Coca Cola nos al-pendres. ´

“Foram estas aldeolas, onde nunca tinha ido, que constituíram o clímax do passeio. O mais saboroso do meu dia. Por serem exóticas? Não, é curioso, por serem iguais às nossas.

Difere, claro, o aspecto dos al-deões; e onde esperaríamos ver surgir uma mulher de saia rodada e blusa farta, vemos aparecer uma criatura de calça comprida e cabaia chata, que só olhos treinados sabem distinguir, de longe, se é homem ou mulher, a menos que traga o característico lenço na cabeça.

Mas o que é o trajo mais do que um acessório? Abstraindo disso, temos, ao percorrer estas aldeias, a sensação ilu-sória, mas gratíssima, de estar em Por-tugal. No que ele tem, é certo, de mais primitivo e de que muita gente se enver-gonha. Mas não é o que há nos homens de mais primitivo aquilo que realmente os irmana, a milhas e milhas de distân-cia?

“Eram, pois, os mesmos lugarejos perdidos à beira dum caminho de ca-bras, as mesmas casas de adobes ou pedra solta com o fumo saindo simulta-neamente pela chaminé e pelas telhas, as mesmas cortes do porquito ao lado da casa, as mesmas galinhas maternais à sombra duma árvore, gravemente cui-dando dos seus pintos. Por toda a parte regatos saltitantes, com um ou dois pa-tos vogando, e uma mulher lavando rou-pa. E para lá dos casebres, as hortas ver-des cheirando ao húmus fresco, à terra molhada, à seiva brotando.

“Campos à beira do Liz, como esti-vestes comigo nesses instantes de so-nho! Caminhos pedregosos e poeiren-tos que tantas vezes percorri, lá para os lados do Vidigal, como parecíeis os mesmos sob os meus pés! E até não fal-tou, para dar o toque final na ilusão, um garoto corricando atrás dum arco de fer-ro, tocando-o com seu pauzinho, de ara-me dobrado na ponta. Se ainda os rapa-zitos do Vidigal irão à cidade numa corri-da, não sentindo os quatro quilómetros, só por irem cantando atrás do seu arco!

“Mas as aldeias de Coloane não são inteiramente uniformes. Algumas, mais no interior, são esses lugarejos de pequenos cultivadores. Outras, à perife-ria, são habitadas por gente do mar. E ainda estas nos recordam as nossas al-deolas de pescadores, aquelas que o tu-rismo ainda não devassou.

“São agora as mesmas redes es-tendidas no solo, e as mesmas figuras plácidas, a que só falta o barrete de bor-la, sentadas sobre elas a consertar os rasgões, com as malhas enfiadas no dedo do pé. Conchas partidas juncando os caminhos. Pranchas de madeira com peixinhos espalmados ao sol, cobertos de sal e de moscas. E um cheirinho a ca-rapau seco... que à força de nostalgia quase chega a parecer delicioso!

“Em todo o caso, começa a lem-brar-me com certa insistência o asfalto e a limpeza da minha rua em Macau. É tempo de voltar à cidade.

"E voltei, todavia pesarosa. Porque não voltei de Coloane, Coloane que avis-to da minha janela. Voltei, por sobre ma-res e continentes, lá de sítios longín-quos que a saudade, minha amiga, em-belezou para mim... ”.

Excertos do livro Bom dia S'tora! (Diário de uma Professora em Macau) a editar breve-mente pelo Instituto Cultural de Macau.

Veredas de Coloane, onde o tempo passa devagar...

* Lic. Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Investigadora da cul-tura macaense, sobretudo de temas de linguísti-ca, com vários livros publicados sobre o crioulo macaense e os crioulos de origem portuguesa na Ásia Oriental.

desde a p. 135
até a p.