Não existe grande diferença entre um ritual pagão sanguinolento e um sacrifício altruísta. A Companhia de Dança Contemporânea Pavão incorpora elementos budistas nesta peça para desenvolver A Sagração da Primavera como rito oriental que transcende a vida e a morte. Numa mandala formada pelo mantra de seis sílabas em sânscrito, os bailarinos recriam o Buda representado nas pinturas murais de Dunhuang com gestos manuais idênticos (mudras), os quais são usados para imitar pássaros a voar e levados ao chão em homenagem ao universo. Ao mesmo tempo que manifestam a natureza búdica e o mundo natural, os corpos dos bailarinos representam também os corpos de pessoas comuns a admirar o universo. O rito de Primavera centra-se, por conseguinte, na transição entre a divindade, a natureza e a humanidade. A partir do momento em que se ouve o trinado de pássaros, os bailarinos, sentados, estendem os braços, enquanto as suas longas unhas verdes fluorescentes se juntam e afastam para recriar um pavão a abrir a cauda. Os bailarinos transformam então os seus braços esticados e trémulos nos braços do Bodhisattva de Mil Mãos. Os motivos criados por tais movimentos estão intimamente interligados, estabelecendo um elo entre os ciclos de vida da Primavera e da reencarnação. A visão budista sobre a vida e a morte permanece até se atingir o clímax do rito vernal: uma dança sacrificial em que a vítima desperta e se converte ela própria em agente sacrificante, dançando ao ritmo do mantra de seis sílabas em sânscrito e seguindo a prática budista, deste modo elevando A Sagração da Primavera, o qual deixa de ser um mero ritual de sacrifício para se tornar numa viagem no sentido de alcançar a iluminação búdica.
Por Bowie Wong
Formada pelo Departamento de Estudos Culturais e Religiosos da Universidade Chinesa de Hong Kong, Wong é uma crítica de arte apaixonada por literatura, cinema, dança e teatro. Wong escreveu recensões para várias publicações de cariz cultural, incluindo o jornal Ming Pao, Delta Zhi e Shanghai Art Review.
Excerto de um artigo escrito originalmente em chinês