Pontos de Encontro

W. H. AUDEN UM GRANDE POETA INGLÊS QUE ESCREVEU SOBRE A CHINA, HONG KONG E MACAU
E "UM ENXERTO DA EUROPA CATÓLICA"

Elizabeth D. Baker e Donald C. Baker*

Macau tem sido frequentemente tema de romances ingleses e norte-americanos (espe-cialmente de romances policiais, como Macau de Daniel Carney), e tambémoe filmes (tal como Macau, de 1950, com os actores Robert Mitchum e Jane Russell). Contudo, esta cidade não tem sido celebrada nem na poesia americana nem na poesia inglesa.

W. H. Auden: Um Grande Poeta Inglês Auden a usar o chapéu de aba larga preto de feltro que tanto irritava Christopher Ishrewood. (Extraído de: OSBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan,1982, p. [78].)

Foram escritos muitos poemas cujo tema versa proeminentemente sobre Macau, no entanto não se poderão considerar poemas de primeira qualidade. A cidade de Macau é apresentada, em quase todo o lado, como um perigoso centro criminoso e pouco mais. Todavia, em 1938, esta cidade serviu de tema a um poema de primeira qualidade, escrito por um grande poeta, W. H. Auden.

A sua visita a Macau dá-se no ponto crucial de uma longa viagem pela China, no auge da guerra sino-japonesa, e o poeta descobre em Macau um símbolo de paz e de humanidade numa época conturtbada e violenta. O seu poema é inteligente e perspicaz, as suas imagens impressionantes e plenas deconsciência histórica. Mas, para apreciar o poema é necessário analisá-lo à luz dos antecedentes culturais e da experiência de vida de Auden e considerá-lo como o culminar das suas viagens pela China.

Em 1938, W. H. Auden, talvez o maior poeta inglês do século XX (não esquecendo que William Butler Yeats era irlandês e T. S. Eliot, americano), e o seu amigo Christopher Isherwood viajaram para a China. Ambos tinham reputação de produzirem boa literatura sobre viagens a sítios estranhos, e o seu editor tinha feito um contrato com eles para que escrevessem um "livro de viagens" sobre qualquer país ou zona à sua escolha.

Em 1937, a guerra na China rebentou oficialmente e os Japoneses invadiram e ocuparam uma grande parte do país assim como muitas das principais cidades, incluindo Xangai.

Auden tinha estado em Espanha durante a guerra civil (1935-1940) por um curto espaço de tempo, e tinha ficado impressionado com as novas e nefastas lutas de classes do nosso século, motivadas por conflitos raciais e ideológicos em contraste com as velhas guerras nacionalistas e dinásticas do século XIX. Nessa altura ele escreveu um excelente e profético poema entitulado Spain, 1937 (Espanha, 1937) e, apesar de não ter sentido anteriormente particular interesse pela China, agora via este grande país como um destino natural.

Isherwood e Auden planearam escrever um livro em conjunto, do qual Auden escreveria a "parte poética" e Isherwood encarregar-se-ia da prosa narrativa. Deram ao livro o título de Journey to a War (Viagem para a guerra), que foi publicado em 1939. A contribuição de Auden foi principalmente uma sequência de sonetos e um comentário em verso intitulado In Time of War (Em tempo de guerra).

As experiências de Auden e Isherwood na China são particularmente difíceis de descrever. Observada de uma determinada perspectiva, uma grande parte da viagem deles foi ridícula, o tipo de coisa que teria sido bem descrito pela brilhante novelista satírica contemporânea, Evelyn Waugh. Eles não eram jornalistas no sentido lato. Eram escritores que pretendiam viajar e ver tudo o que pudessem e, como autores de literatura de viagens, queriam transmitir as suas impressões sobre o país, as pessoas e acima de tudo sobre a guerra. Não sabiam Chinês e conheciam pouco ou nada do país antes de partirem de Hong Kong para a China. A grande parte do tom das suas cartas e notas transmitia a imagem de dois alunos inteligentes e sofisticados que se divertiam grandemente tendo o comportamento de estrangeiros loucos.

Eles divertiam-se com o facto de confundirem a natural curiosidade dos Chineses relativamente à sua presença na China, aos seus objectivos e a si próprios. Naquela época os Chineses já estavam habituados à presença de visitantes estrangeiros importantes, mas anteriormente os visitantes eram diplomatas ou jornalistas, cujo comportamento tendia a seguir passos predizíveis. Os Chineses não sabiam o que fazer de Auden e Isherwood e é fácil ver-se porquê: os ingleses divertiam-se cantando canções cómicas, rindo de brincadeiras privadas, tirando fotografias em momentos estranhos e procurando assiduamente, com excelente boa disposição, entretenimentos homossexuais.1

No entanto e apesar desta frivolidade, o livro que Isherwood e Auden finalmente produziram é bastante notável. Eles experien-ciavam o caos da China durante a guerra, mas ambos pareciam sentir que o que de facto estavam a experienciar era o futuro — isto é, as guerras massivas e móveis sem reais linhas de frente, marcadas por ataques aéreos indiscriminados, guerras em que os civis, muito mais do que no passado, são o alvo de destruição ou são simplesmente abatidos. Apesar da leviandade de comportamento de Isherwood e Auden, o tom do livro é sensível ao sofrimento do povo chinês — não como Chineses mas como representantes dos milhões de sofredores que iriam ser as vítimas do século XX.

Auden e Isherwood chegaram a Hong Kong a 16 de Fevereiro de 1938. Não ficaram impressionados com Hong Kong. Eles não gostaram particularmente dos seus compatriotas ingleses que, tal como os comerciantes chineses da cidade, pareciam totalmente alheados do grande conflito que se vivia na China, ouvindo apenas ecos distantes do sofrimento de uma nova era, prosseguindo com os seus negócios e interesses sociais, abstraídos das atrocidades da ocupação japonesa.

Também estiveram em Macau durante um curto espaço de tempo. Alguns dias mais tarde começaram a subir o Rio das Pérolas em direcção a Cantão. O primeiro contacto com a "verdadeira" China dá-se durante um chá oferecido pelo Consulado Britânico, quando ocorre um ataque aéreo japonês à cidade. Os turistas britânicos podem ter tido um comportamento idiota, mas não eram cobardes, e o ataque aéreo trouxe-lhes o primeiro sentido da realidade da guerra que mais tarde viriam a descrever. Pegaram em sacos-cama e em redes para mosquitos e a 4 de Março apanharam um comboio para Hankou (Wuhan).

Quando chegaram a Hankou, a capital da guerra durante aquela fase do conflito, sentiram uma excitação estranha. Tinham dormido nos seus sacos-cama, sob condições precárias, no Consulado Britânico. Isherwood recordava no seu diário que "preferia estar neste momento em Hankou do que em qualquer outro lugar do mundo."2 Foram apresentados a funcionários públicos chineses, conhecendo a determinada altura a sofisticada Madame Chiang e mais tarde o próprio Generalíssimo.3 Foram a conferências de imprensa, tentando descobrir através dos verdadeiros jornalistas o que se estava a passar na guerra. O sentimento de estarem presentes numa nova era da história humana cresceu quando, a 12 de Março, foram informados por um alemão que tinham conhecido, pertencente ao grupo conselheiro militar alemão do Generalíssimo, que Hitler havia invadido a Áustria.

Mais tarde viriam a encontrar uma das famosas "amigas da China", Agnes Smedley, uma Inglesa há muito simpatizante da causa dos Chineses comunistas. Ela, Anna Louise Strong, Edgar Snow, e outros alertavam o mundo para o significado crescente do poder comunista na China. Apesar de pertencerem vagamente à Esquerda Europeia, tanto Auden como Isherwood não tinham manifestado até à data qualquer interesse por assuntos políticos. Contudo, não ficaram surpreendidos com a vitória dos comunistas, depois da guerra com o Japão, pelo facto de terem captado algumas reflexões de Smedley e de outros sobre aquele assunto.

Numa determinada altura, testemunharam, do telhado de um edifício alto, um ataque aéreo japonês. Isherwood admitiu ter ficado algo assustado, mas Auden pareceu não ter ficado de todo perturbado, conseguindo, mais tarde, dormir e até mesmo ressonar, enquanto Isherwood tomava comprimidos para tentar adormecer.

Wystan H. Auden em 1912, mascarado de joaninha. Extraído de: OSBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan, 1982, p. [68].

Levaram muito tempo para chegar às "linhas da frente" e partiram muitas vezescom escoltas para lugares onde havia combates. Conseguiram, finalmente, chegar à frente oriental, perto de Suzhou, e visitaram as trincheiras da linha de combate, debaixo do fogo das armas japonesas e estiveram numa área atacada por aviões de guerra japoneses. Encontraram, pela primeira vez, civis mortos e corpos de soldados. O corpo de um soldado chinês, coberto de piolhos, tornou-se o ponto de partida para o melhor poema que Auden escreveu sobre a experiência deles na China. É o soneto n° XIII da sequência Sonnets from China (Sonetos da China):

Longe de um centro cultural ele foi usado;

Abandonado pelo seu general e pelos seus piolhos,

Tornou-se gelo debaixo de uma manta de folhas.

E desapareceu. Nunca mais será folheado. Quando este campo se tornar em livros:

Não permanecerá qualquer conhecimento vital daquela caveira;

As suas brincadeiras não tinham graça;

Tal como o tempo de guerra, ele era chato;

O seu nome perdeu-se para sempre tal como

os seus olhares

Apesar de obediente às instruções do

quartel-general

Ele acrescentou o sentido de uma vírgula

Quando se juntou à poeira da China,

Que as nossas filhas possam manter o seu porte

direito,

Que não se envergonhem perante os cães,

porque,

Onde há água,

Montanhas e casas, pode também haver homens4

Apesar de ele próprio se ter tornado rapidamente pacifista, Auden viu no corpo morto coberto de piolhos não apenas um homem abandonado pelos seus generais — um homem vulgar e comum mas sim um homem cuja morte não foi totalmente inútil. Quando este homem morreu ("se juntou à poeira da China") de uma morte com significado — não com grande significado, mas com algum significado, tal como uma vírgula torna claro o sentido de uma sequência de unidades numa língua — a sua morte tinha um objectivo, que eventualmente ele próprio não conhecia e que era mostrar que "Onde há água / Montanhas e casas, pode também haver homens". Quando regressou a Hankou, Auden leu este poema a um grupo de escritores e intelectuais chineses e o soneto foi publicado mais tarde, em tradução chinesa, no jornal "Da Gong Bao". O soneto foi, no entanto, objecto de alguma censura política e cultural e o verso "Abandonado pelo seu general e pelos seus piolhos" foi alterado para "Os ricos e os pobres unem-se na luta".5

Noutra ocasião, partiram para "descobrirem" a frente de combate em Meiji com um verdadeiro viajante, Peter Fleming (que já se tinha tomado famoso como perspicaz observador da vida chinesa através das suas viagens pela China central e ocidental no início dos anos 30, viagens que ele relatou no seu livro News from Tartary). A fama de Fleming foi mais tarde ofuscada pela fama do seu irmão mais novo, Ian, o criador dos romances de espiões, cujo protagonista principal era James Bond e para quem o seu irmão Peter é suposto ter sido um modelo. Fleming era um repórter profissinal e narrador de viagens, correspondente do "Times" na China. Falava Mandarim e sabia como viajar na China. Tinha um conhecimento profundo sobre a política da China tal como qualquer outro observador estrangeiro, e nunca se restringiu a missões ou a consulados. Pelo contrário, insistia em observar a guerra através dos seus próprios olhos, nos campos de batalha, e entrevistava pessoalmente generais e soldados. No entanto nunca chegaram a presenciar uma batalha porque, quando se aproximavam, já os japoneses se preparavam para derrotar as defesas chinesas, pelo que estes eram obrigados a uma retirada geral.

Auden e Fleming discutiam bastante sobre política durante as suas digressões, frequentemente a pé, em direcção a Xangai. Auden era um típico liberal dos anos 30 — vagamente simpatizante das coisas socialistas e um admirador distante da União Soviética embora pouco ou nada soubesse sobre aquele país e sobre o seu sistema político. Fleming era um dos poucos jornalistas da época que se mantinham cépticos relativamente ao corajoso novo mundo. A sua crítica aguçada baseava-se na observação pessoal— tinha viajado por toda a União Soviética — e na paixão de ver as coisas tal como elas eram em vez de teorizar a uma mesa de café. Auden nunca se tornou mais do que um liberal, mas o seu esquerdismo, que tinha surgido do seu contacto com a realidade em Espanha, não iria sobreviver durante muito mais tempo, e é bastante possível que as suas longas conversas com Fleming, no meio da lama e da confusão e exaustão da retirada, tenham dado ao seu esquerdismo um golpe de graça.

Apesar do tom mordaz das cartas de Auden, pode-se sentir um orgulho genuíno na sua declaração: "Fizemos uma viagem com Fleming na China, e agora poderemos ser considerados verdadeiros viajantes para sempre; não precisamos de sair de Brighton outra vez."6 E, não obstante o seu desenvolvimento a nível de ideias políticas, Auden tornou-se e permaneceu um fiel "amigo da China".

Apesar de Auden e Isherwood ("Ao Dong" e "Yi Xiao Wu", adaptação fonética em caracteres chineses — depois disso, Christopher assinava frequentemente "Issywoo" nas cartas que enviava a Auden) inventarem brincadeiras fazendo crer que a guerra não era real ("os tiros não eram verdadeira guerra" — registaram eles),7 é óbvio que eles presenciaram o suficiente da realidade para ficarem satisfeitos e não quererem experienciar a guerra a sério.

O soneto mais impressionante dos Chinese Sonnets (Sonetos chineses) de Auden é o n° XII, o qual capta um momento de aborrecimento num quartel general militar, e evidencia o facto de a distância de matar tornar fácil o acto de matar. Auden, na sua imagem "o telefone... que falava com um homem" parece presciente do futuro, em que um computador fala com um homem, dando ordens sem assumir qualquer responsabilidade moral por aquilo que acontece. Cria-se um vácuo de aparências. Mas, Auden insiste em que existe uma relacção real entre palavras e factos; há uma responsabilidade última:

Isherwood e Auden prestes a embarcar para a China, em Janeiro de 1938. Decidiram-se por este destino por quererem escrever sobre "uma guerra deles próprios". Extraído de: OSBORNE, Charles. W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan, 1982, p. [172].

Aqui a guerra é inofensiva como um monumento;

Um telefone fala com um homem;

Bandeiras num mapa declaram que as tropas foram enviadas;

Um rapaz traz leite em tigelas. Há um plano

para os sobreviventes no terror das suas vidas;

Quem teve sede às nove e quem vai ter sede à tarde.

Quem se pode perder e está perdido, quem sente

a falta das suas mulheres.

E que, não como uma ideia, pode morrer

brevemente.

No entanto as ideias podem ser a realidade,

apesar dos homens morrerem;

Porque vimos uma quantidade enorme de caras

Estáticas de um lado;

E os mapas podem de facto apontar para lugares

Onde a vida agora é um inferno.

Nanquim. Dachau. 8

A percepção de Auden neste soneto é sugestiva da passagem de um dos seus melhores poemas, Musée des Beaux Arts (Museu das Belas Artes), escrito alguns meses depois dos sonetos, no qual ele ilustra a banalidade monótona do mal:

Eles (os Velhos Mestres) nunca esquecem

Que mesmo o horrível martírio tem de seguir o

seu curso

De qualquer forma numa esquina, um lugar sujo

Onde os cães continuam com a sua vida de cão

e o torturador do cavalo deita as garras ao

inocente por trás de uma árvore. 9

Apesar do livro de viagens, Journey to a War (Viagem para uma guerra), ser sem dúvida um bom livro, distinguiu-se essencialmente por alguns poemas de Auden e algumas descrições perspicazes e narrações de Isherwood. Lia-se bem e não era politicamente tendencioso como muitos dos outros livros do mesmo género que apareciam na altura. A recepção crítica foi diferenciada, algumas revistas davam ênfase à estranha estrutura do livro, metade poesia, metade prosa. Evelyn Waughs considerou que eram dois livros, ligados pelo meio tal como os cavalos da pantomima.10 Mas a maior parte dos críticos acusou os autores de falta de seriedade política numa época política importante.11 Um bom exemplo desta falta de seriedade política pode observar-se num trecho do livro Journey to a War, no qual Isherwood descreve a cidade de Xangai ocupada pelos japoneses como um refúgio de prazer para gente de gostos decadentes:

"Podem comprar uma máquina de barbear eléctrica, um jantar francês ou um fato de bom corte. Podem dançar no Restaurante Tower no telhado do Hotel Cathay, e podem cavaquear com Freddy Kaufmann, o charmoso gerente do Hotel sobre a aristocracia europeia ou de Berlim antes de Hitler.

Podem ir assistir a corridas de cavalos, jogos de basebol e de futebol. Podem ver os últimos filmes americanos. Se quiserem raparigas ou rapazes podem obtê-los, a todos os preços, nos balneários e bordéis. Se é ópio que pretendem, podem fumá-lo na melhor companhia, servido numa bandeja, tal como se serve o chá. Bom vinho é difícil de conseguir neste clima, mas há uisque e gim suficientes para fazer oscilar uma frota de navios de guerra.

O joalheiro e o negociante de antiguidades esperam as vossas ordens / e os preços deles far-vos-ão imaginar que estão na Quinta Avenida ou em Bond Street. E por fim, se por acaso tiverem algum sinal de arrependimento, existem igrejas e capelas de todas as religiões."12

Auden e Isherwood partiram de Xangai para a América a 12 de Junho de 1938, depois de terem estado cerca de quatro meses na China. Estavam completamente conscientes de que tinham apenas acumulado um conhecimento e uma experiência turística da China, apesar de terem permanecido lá mais tempo do que a maioria dos outros jornalistas, e tinham-se exposto de forma deliberada a consideravelmente muito mais perigos do que a maior parte dos visitantes estrangeiros, e por isso não tinham que se sentir envergonhados.

Auden tinha ficado particularmente impressionado e confundido com a China. Auden era um homem profundamente conservador, e tinha interesses e crenças filosóficas de carcácter semi-religioso mas basicamente humanistas. Os aspectos da sociedade chinesa atraíram-no muito. "Acho que foi o país mais bonito que conheci", disse ao seu amigo E. R. Dodds.13 Mas, ao mesmo tempo, a singularidade da China deixou-o surpreendido: "A China é totalmente diferente. Espanha tem uma cultura que se conhece. Podia-se compreender o que se estava a passar, o que queriam dizer as coisas. Mas a China, pelo contrário, era impossível conhecê-la. Um país que, para além de estar em guerra, não tinha qualquer respeito pela vida humana."14 No final, Auden, o supremo sofisticado, reage à China como a maior parte dos viajantes ocidentais sempre fizeram.

Auden em sua casa de Nova Iorque, quando se preparava para deixar os Estados Unidos em Fevereiro de 1972. Extraído de: OSBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan, 1982, p. [269].

Depois de terem viajado pela América, confirmando e fazendo contratos com editores americanos, e fazendo ao mesmo tempo muito turismo, Auden e Isherwood voltaram para a Europa no mesmo mês. Auden pôs-se imediatamente ao trabalho, escrevendo poemas para os quais ele tinha vindo a acumular ideias e impressões e, em vez de permanecer em Inglaterra, foi para Bruxelas. Trabalhava na sua poesia durante parte do dia, mas também passava muito do seu tempo nos museus de Bruxelas e nos balneários públicos. No passado, os seus estudos sobre a pintura de Brueghel e de outros artistas tinham-no levado a escrever o grande Musée des Beaux Arts. E, como espécie de post scriptum dos seus Sonnets from China, mas que ele não pretendia publicar juntamente com estes, escreveu dois outros sonetos, um sobre Hong Kong e outro sobre Macau.

Os sonetos estão incluídos numa pequena série separada com o título Voyages (Viagens) em que Hong Kong é o n° IV e Macao o n° V. Como já foi referido anteriormente, Auden não ficou impressionado com Hong Kong, tendo ficado profundamente chocado com a superficialidade tanto da comunidade de expatriados como da comunidade local, os quais viviam precisamente na margem de uma massa de humaninade incrivelmente vasta, desordenada, caótica e sofredora:

IV-Hong Kong (Dez. 1938)

O seu carácter é particularmente inteligente

e arguto,

Os seus fatos bem cortados, e vestem-nos bem;

Muitos têm uma parábola polida para contar

Sobre as tradições de uma cidade de comércio.

Apenas os criados entram deforma inesperada,

Os seus movimentos silenciosos trazem notícias dramáticas;

Aqui no Oriente os banqueiros erigiram

Um templo valioso à Musa Cómica.

Dez mil milhas longe de casa e como-é-que-ela-se-chama

Um clarim nesta colina vitoriana

Mostra a luz dos soldados; fora de palco, uma guerra

Soa como o barulho do fechar de uma porta distante;

Cada um tem o seu papel cómico para representar

na vida

Apesar de a Vida não ser nem cómica nem um jogo.15

A frase "(...) fora de palco, uma guerra" indica uma total desatenção relativamente à miséria humana à medida que as pessoas continuam a sua "vida de pessoas", para parafrasear Auden no Musée des Beaux Arts.

Auden achou Hong Kong aborrecido e acima de tudo deprimente. A sua reacção a Macau foi bastante diferente. Ficou fascinado com a combinação peculiar da cultura ibérica e europeia com a cultura chinesa, a tolerância dos vícios, um ajustamento da religião à realidade. Auden considerava que Hong Kong era bastante "estrangeiro" relativamente à China, o último posto avançado do Império, e uma ilha ordenada no caos. Em contrapartida ele achava que Macau tinha criado uma cultura mista que se tornou "naturalizada". Os expatriados de Hong Kong são "dez mil milhas longe de casa e como-é-que-ela-se-chama", enquanto Macau é um "(...) enxerto da Europa Católica (...)" que criou raízes:

Auden em 1963, fotografado por Gisele Freund. (Extraído de: SBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macrnillan,1982, p. [265].)

V-Macau (Dez. 1938)

Um enxerto da Europa Católica, criou raízes

Entre umas montanhas amarelas e o mar,

As suas casas de pedra alegres e a fruta exóticac

Uma excentricidade de Portugal e da China

Imagens rococó de Santos e do Salvador

Prometem aos jogadores fortunas após a

sua morte,

Igrejas ao longo de bordéis testemunham

Que a fé pode perdoar o comportamento natural.

Uma cidade com tal indulgência não precisa

de recear

Aqueles pecados mortais que matam os fortes

e que despedaçam membros e governos:

Batem relógios religiosos, os vícios infantis

Irão salvaguardar as virtudes menores da

criança,

E nada de sério poderá aqui acontecer. 16

O fruto de Macau é a corrupção, "uma excentricidade entre Portugal e a China". Os pecados de Macau são os pecados da carne, não aqueles que põem em perigo a alma; não são os pecados mortais, mas sim os pecados veniais, para os quais se pode encontrar "indulgência". O maldoso trocadilho de palavras que Auden faz com "indulgência", combinando "perdão" com "prazer" ou "divertimento", ilumina a combinação de piedade e jogo que deve ter caracterizado a vida dos Macaenses, segundo a perspectiva de Auden e Isherwood durante a sua breve estada (quase certamente) no Hotel Bela Vista em Fevereiro de 1938. Macau estava à beira da política internacional, contudo raramente teve um envolvimento directo durante aquele período.

Auden em um posto avançado, na China — fotografia publicada no Journey to a War. Na realidade, Auden e Isherwood pouco presenciaram dos combates, durante sua viagem. Extraído de: OBSORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan, 1982. p. [173].

Apesar de Auden ter consciência do passado imperial de Portugal na China, deve-lhe ter parecido que isso se tinha tornado irrelevante, apesar das várias estátuas marciais que continuavam a marcar uma história por vezes violenta. Tinha-se desvanecido na neblina do mar do Sul da China, deixando para trás apenas esta quase naturalizada curiosidade, numa mistura de consentimento e paciência dos Chineses com a indulgência dos Católicos do Sul da Europa. A tolerância que ele vê em Macau é uma qualidade ausente no mundo de 1938, qualidade essa que ele muito preza. Quando diz, no fim do seu poema, que "nada de sério poderá aqui acontecer", de facto pretende dizer é que a violência ideológica e a fúria política que caracterizam a sua época não parecem perturbar Macau, cujos cidadãos estão mais preocupados com o negócio da vida. Macau não é visto apenas como uma espécie de águas estagnadas em termos históricos, mas sim como um porto de paz. Os pecados de Macau são os pecados da carne; não são os pecados que violam a paz dos vizinhos e que os oprimem em nome de ideias. Macau foi certamente uma cidade que, em 1938, atraiu muito Auden, e que inspirou algumas das suas melhores imagens...

Como Auden trabalhou nos seus poemas durante o Inverno de 1938-39 em Bruxelas, debaixo do constante ressoar da iminente guerra, anunciada em cada programa de rádio (a Áustria tinha sido ocupada por Hitler, e agora a crise da Checoslováquia e das Sudetas ocupava as manchetes dos jornais — a Alemanha preparava-se para ocupar a Checoslováquia no espaço de poucas semanas e estava-se apenas a seis meses da invasão da Polónia e da guerra à escala de toda a Europa, em Setembro de 1939), o poeta deve ter reflectido profundamente sobre a pequena ilha de relativa paz e calma em Macau, onde "(...) nada sério (...) poderia acontecer".17

Traduzido do original inglês por Ana Paula Cleto.

W. H. Auden. Caricatura por David Levine,1972. Extraído de: OSBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life of a Poet, London, Macmillan, 1982, p. [267].

NOTAS

1. Humphrey Carpenter conta, na biografia que escreveu sobre Auden, que ambos se dedicavam a essa prática nos balneários de Cantão e Xangai, não fazendo qualquer esforço para conciliar esta actividade, como o faziam a maior parte dos outros estrangeiros e Chineses. CARPENTER, Humphrey, W. H. Auden: A Biography, London, George Allen and Unwin, 1981, p.239.

2. Idem, ibidem. Um momento de alegria que rapidamente passou com o conhecimento de que a Áustria tinha sido invadida pelos nazistas.

3. Eles estavam impressionados com a Madame Chiang (que lhes tinha oferecido bolo), mas Auden disse que Chiang Kai Shek "parecia um médico de aldeia"; CARPENTER, op. cit., p. 236. A reunião foi tratada de uma forma mais detalhada por OSBORNE, Charles, W. H. Auden: The Life o f a Poet, London, Macmillan, 1979, p. 156.

4. MENDELSON, Edward, ed., W. H. Auden: Collected Poems, London, Faber and Faber, 1976, p.154.

5. CARPENTER, op. cit., p. 238.

6. Id., p. 239.

7. Id., p.238.

8. MENDELSON, op. cit., pp. 153-4. Nanquim refere-se com certeza à "Violação de Nanquim" do ano anterior, um acontecimento que se tornou memorável da mesma forma que o bombardeamento fascista de Guernica em Espanha. Dachau era um conhecido campo de concentração na Alemanha.

9. Id., p. 147. Auden está a referir-se a um quadro, "Cruxificação", do pintor flamengo Brueghel, do fim da época medieval, a cujo trabalho é dedicada parte do Musée des Beaux Arts em Bruxelas.

10. Tal como referiu Hynes em: HYNES, Samuel, The Auden Generation, Princeton, Princeton University Press, 1976, p. 343.

11. Hynes tem uma excelente discussão do fenómeno dos livros de viagens políticos ou semi-políticos dos anos 30 na sua obra The Auden Generation, passim. Tem também uma análise excelente e perspicaz da poesia de Auden no In Time of War que constitui parte do livro conjunto de Isherwood e Auden, Journey to a War. Ele trata os sonetos como "uma resposta religiosa para o futuro apocalipse..." e, de facto, tal como ele mostra, muitos críticos contemporâneos analisaram os poemas da mesma forma, havendo mesmo um que os comparou ao In Memoriam de Tennyson, p. 348. Os poemas são uma espécie de elegia à morte da ordem de um velho mundo e à antecipação trágica de um novo, marcado por uma total dissociação entre as acções humanas e as responsabilidades.

12. OSBORNE, op. cit., p. 157.

13. CARPENTER, op. cit., p. 239.

14. Idem, ibidem.

15. Id., p. 144.

16. Id., p. 145.

17. Talvez, talvez mesmo, Auden tenha achado Macau um lugar confortável num mundo de violência apocalíptica, em parte por estar consciente da sua propensão para os pecados veniais! "(...) Os vícios infantis / Irão salvaguardar as virtudes menores da criança (...)".

* Elizabeth D. Baker é Mestre em Letras pela Universidade de Oklahoma. Leccionou na Universidade do Colorado (EUA), de Mutah (Jordânia), de Wuhan (China) e na Faculdade do Centro (Tunísia). Donald C. Baker é Doutor em Filosofia pela Universidade de Oklahoma. Professor emérito da Universidade do Colorado, leccionou na Universidade de Mutah, de Wuhan, de Câncio (Inglaterra), e na Faculdade do Centro, entre outras. Ambos são professores da Universidade de Macau.

desde a p. 289
até a p.