CHURADELA DI CHACHA
Adé dos Santos Ferreira
Chacha, co estunga frio,
Cucús na casa, cháli na riva di ombro,
Nom-têm fim di gurunhá.
Falá vai, falá vêm, ai qui saiám,
Olá tánto ancuza assi bom
Di nôsso Macau antigo
Unga trás di ôtro, disparecê.
Pitisquéra divera sabroso
Qui gente na casa fazê,
Festa-festa qui têm su chiste,
Vida barato, sossegado,
Gente capaz tocá, cantá,
Tudo azinha aguá vai,
Já ficá somente na lembránça.
"Unga póti di bom perada,
Unga pacóti di barba fino,
Únde têm?", Chacha priguntá.
"Cilicário, gelêa, únde têm?
Cabelo di nóiva, genête,
Pudim di lête, batatada,
Dóci di camalénga, únde têm?"
"Robuçado di ôvo, dóci di chacha,
Enténa-pôdre, obrêa, mamún,
Bicho-bicho, múchi-múchi.
Nata, fula-fula, bají.
Conquéra, ladú, saransurábi,
Bôlo-mármre, bôlo minino,
Quim têm pa fazê?"
"Vai únde achá chilicote,
Chilicote-fólia, pastelinha,
Pám-rechiado, rolête-mínchi,
Bôlo di cambrám, bebinga-rabo,
Co um-cento más ancuza,
Tudo assi bom comê,
Fazê nôs bóca corê babo?"
"Sã, nunca-sã saiám",
Chacha falá co voz di chôro,
"Olá vazio na casa
Nôsso abolô di bôlo co dóci,
Pramor di docéra capaz
Co merendéro di agora
Já lembrá ficá priguiçoso?"
Quarentóra na tempo antigo
"Sã quelê bom divertí;
Pa tudo vánda olá bôbo
Corê rua na trás di tuna,
Fazê chiste, sabroso pandegá.
Atai-atai olá bôbo ficá asnerám,
Bôbo pegá pau cutí ilôtro.
Casa di gente tai-pán.
Co tudo clube qui Macau têm,
Unga trás di ôtro dá baile
Na semána di entrudo.
Quim cantá, quim pulá-dançá;
Cavá ravirá co treméndo cea,
Torná dançá atê pramicedo.
Lembrá entrudo, Chacha falá:
"Comédia sã nádi faltá.
Acunga Chencho di minha pecado,
Juntá ráncho co amigo-amigo,
Subí palco, papiá chiste;
Nho-nhónha enroscá na cadéra,
Ri qui xirí... mulá sobrado."
Masquí paga, na tempo antigo,
Sã unga mám pequinino di pataca,
Vida barato fazê gente
Vivo co más pôco consumiçám.
Sabe ficá dóna-di-casa,
Sapeca sã lôgo chegá
Pa tudo laia di dispésa.
Casa pa lugá, cinco-sês pataca,
Cuzinhéra, unga-dôs pataca,
Lavadéra co apô cartá-águ
Nádi más qui unga pataca.
Dôs pataca têm luz pa lumiá,
Na pôço têm águ pa lavá
Na horta rancá fruta comê.
Vai bazar comprá som
Co sassénta avo na bolsa,
Vêm casa co brêdo, cambrám,
Vaca, áde salgado.
Si chapá más trinta avo,
Pôde comprá pôrco, lombo,
Co unga perna di galinha.
LAMENTAÇÕES DA AVOZINHA
A Avozinha, com este frio,
Metida em casa, xale sobre os ombros,
Não pára de resmungar.
Diz e torna a dizer que é uma pena
Ver tantas coisas boas
Da nossa Macau dos tempos idos
Desaparecer, umas após outras.
Petiscos deveras apetitosos
Que as pessoas em casa faziam,
Festas que tinham a sua piada,
Vida barata, tranquila,
Gente hábil para tocar e cantar,
Tudo depressa se sumiu,
Ficando apenas na lembrança.
Pêsse co géma di ôvo di áde,
Tau-fu co fula-papaia,
Sã comida di gente pobre.
Onçôm na casa criá galinha,
Sã têm ôvo pa ravirá.
Comprá nhame co batata,
Nancassá gastá vinte avo.
Pensám di Chencho reformado
Sã sassénta pataca na-más;
Su filo Atútu ganhá novénta.
Chacha fazê bôlo vendê,
Maria costurá pa gente.
Pegá tudo sapeca chapá juntado,
Ilôtro vivo dizafogado.
Nom-têm fim di lamuriá,
Chacha falá agora têm sapeca,
Tamêm nom-têm ancuza bom.
Têm caréta, têm casarám,
Gente capaz, maquinéta novo,
Mâz nom-têm do-dol sabroso
Pa nôs ruçá biscoito comê!
"Um pote de boa perada,
Um pacotinho defina barba,
Onde se vêem? ", pergunta a Avozinha.
"Cilicário, geleia, que é deles?
Cabelo de noiva, genete,
Pudim de leite, batatada,
Doce de abóbora, onde estão? "
"Rebuçado de ovos, calda de chacha,
Entena-podre, obreia, mamum,
Bicho-bicho, múchi-múchi,
Pastéis de nata, fula-fula, bagi,
Bolo de coco, ladu, saransorável,
Bolo mármore, bolo menino,
Quem há aí que os faça?"
"Onde descobrir chilicote,
Massa folhada, pastelinha,
Pão-recheado, croquete,
Pastéis de camarão, pasta de nabo,
E muitas coisas mais,
Todas tão deliciosas,
Que até nos fazem ficar a apetecer?"
"É ou não é uma lástima ",
Pergunta a Avozinha com voz chorosa,
"Vermos vazios em nossas casas
Os ternos para bolos e doces,
Por causa das exímias doceiras
Davam bailes, uns após outros,
E os pasteleiros de agora
Se terem tornado preguiçosos? "
O entrudo nos tempos antigos
Era fartar-se de divertir;
Por toda a parte se viam mascarados
A percorrer as ruas atrás da tuna,
Gracejando e brincando.
Os miúdos chineses diziam palavrões
E os mascarados batiam neles com pau.
As casas de gente graúda
E todos os clubes que havia em Macau
Na semana do Carnaval.
Uns cantavam, outros dançavam animadamente,
E, depois de comerem lauta ceia,
Voltavam a dançar até ao amanhecer.
Lembrando o entrudo, a Avozinha diz:"
Comédia não podia faltar.
O Chencho dos meus pecados,
Acompanhado de seus amigalhaços,
Subia ao palco para dizer larachas.
As madamas, torcendo-se nas cadeiras,
Riam até fazer xixi, molhando o sobrado."
Apesar dos ordenados, naqueles tempos,
Serem uma míngua de patacas,
A vida barata permitia às pessoas
Viverem com menos arrelias.
Sabendo ser dona-de-casa,
O dinheiro havia de chegar
para todos os tipos de despesas.
Casa alugada, cinco ou seis patacas;
Cozinheira, uma ou duas patacas,
Lavadeira e a mulher da água
Não representavam mais que uma pataca.
Com duas patacas se arranjava iluminação,
Do poço vinha a água para se lavar,
No pomar se arrancavam frutas pzara comer.
Ia-se às compras no mercado
Com sessenta avos no bolso.
E voltava-se com hortaliça, camarão,
Carne de vaca, pato salgado.
Acrescentavam-se outros trinta avos,
Já se podia comprar porco, costeleta
E uma perna de galinha.
Peixe e gema de ovo de pata,
Soja e flor da árvore de papaia
Eram comida de gente pobre.
Em casa criava-se galinha
Que ovos havia até se fartar.
Para comprar inhame e batata,
Não era preciso gastar vinte avos.
A pensão de reforma do Chencho
Era apenas sessenta patacas.
Seu filho Atútu ganhava noventa,
A Avozinha confeccionava bolos para vender,
A Maria costurava para ganhar.
Com este dinheiro todo,
Eles viviam com certo desafogo.
Sem fim de lamuriar,
A Avozinha diz que dinheiro agora não falta;
O que não há são coisas boas.
Há casas e casarões,
Gente hábil, aparelhos modernos,
Mas não há do-dol apetitoso,
Para comermos com biscoito.

GRAVURA ANTIGA DI MACAU
António M. Couto Viana
Nhonha recebe com chá
E sab'roso surang-surave
As amigas do bafá,
Chacha-chacha nos seus dós,
De jeito gentil e grave,
Que chegam de riquexós.
Nhonha veste um baju leve
Moldando os limões do peito,
A que a mão do nhom se atreve.
Não receia as pei-pá-chais:
No escurinho do leito,
Ambos são risos e ais.
Nhonha deixa o arrebique
Com face de loiça fina.
Passo breve, tique-tique,
Vai à janela, abre as reixas.
E, entre a boa e a má sina,
Diz amores e escuta queixas.
Nhonha compõe a saraça,
Sentadinha na cadeira,
Toda atenta ao que se passa,
Alegre de malinguar,
Pés na frescura da esteira
Que a bicha cansa a esfregar.
(Que saudade, esta Macau
Que eu adivinho feliz,
Morando ali ao Lilau,
Com respeito, dengue e ardor:
Jardim de mulher-raiz
Com chiste de mulher-flor.)

GLOSSÁRIO
Arrebique — toucador
Bafá — antigo jogo de cartas chinesas de Macau
Baju — blusa de pano fino
Bicha — criada ou escrava
Chacha-chacha — mulheres velhas
Dó — manto ou mantilha preta
Malinguar —fazer má-língua
Mulher-flor — prostituta
Nhom —filho de europeu e de filha da terra
Nhonha — senhora filha da terra
Pei-pá-chai — cantadeira profissional
Saraça —pano de seda estampada que servia
de saia Surang-surave — doce típico de Macau
FOLHAS DE LÓTUS
Maria Ana Acciaioli Tamagnini
Sobre folhas de lótus escrevi
As letras do teu nome, meu amor,
Naquelas folhas que a sorrir colhi
Ao debruçar-me sobre o lago em flor.
Sobre folhas de lótus desenhei
O mais risonho trecho da cidade;
E esse leve desenho que tracei
Dir-se-ía uma paisagem feita em jade.
O teu nome mais belo se fizera
No relevo das letras bem gravadas.
A paisagem lembrava Primavera
Sobre o verde das folhas espalmadas.
Apertei-as de encontro ao coração.
Senti meu peito como flor a abrir...
E todo o Oriente feérico e pagão,
Sobre folhas de lótus vi surgir.
Ah! Se eu pudesse, como outrora, ao luar,
Por esses lagos nos jardins dispersos,
Ir as folhas de lótus apanhar
Para sobre elas escrever meus versos,
Essas folhas de estranha singeleza
Dariam à poesia outro valor,
E eu realizava um sonho de beleza:
Um livro cheio de perfume e cor.

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES
Camilo Pessanha
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
ALTO CONTRASTE
Alberto Estima de Oliveira
o início do diálogo
será como o Outono
igual ao tempo seco
ameno, próprio para descer à rua
e estontear pelos locais
onde se movem
os restos do bazar
conversa estranha por dentro do silêncio
dos sons reconvertidos das vielas
pergunto-me ao chegar, se alguma vez cheguei
como seria a vida que se dizia calma
neste minúsculo resto do corpo da cidade
vou desfiando o espaço que ainda sobra
num rosário de rostos e serviços
nas tendas e nas esquinas aninhados
retenho os verdes expostos nas bancadas
separo vermelhos amarelos e outras cores
e vou pintando os muros desolados
saúdo com sorrisos quem comigo cruza
e me conhece. pergunto às sombras
dos vultos imprecisos, coisas antigas
memórias das janelas
dos nomes pouco ou nada me recordam
reais ou anónimos os vivos os transportam
dos longos cabelos e das tranças
tenho uma vaga ideia a que acrescento
os olhos submersos em destinos
das mãos feitas de cera e madrugada
recolho a dádiva
do corpo que não vejo mas pressinto
ocultam-se as colinas as encostas
vales e bosques da terra mãe chorada
dos detritos imundos e dos restos esqueço-me
[não vejo]
porque o céu sobre os telhados é azul
e o sol é uma festa

ORAÇÃO À SERENIDADE
António Correia
Vem, serenidade!
Traz um manto de luar,
salpicado de estrelas
e afaga meu coração,
que tem febre de vê-las,
mais perto da gente
aflita,
sem lar
e sem pão,
na cidade do homem-bicho,
bebendo angústias,
em farrapos de nuvens,
presos ao chão.
Vem, serenidade!
Limpa a minha mente
de todo o capricho,
das coisas banais
e da dor infinita
da ansiedade;
fala-me de altas montanhas
e dos pastores de ovelhas
que por lá moram,
sem pressas nem medos,
não desejando mais
do que elas lhes dão
e os frutos silvestres,
uma flauta, um cajado,
uma cabana e um cão.
Vem, serenidade!
Dá-me, sem sombras nenhumas,
a luz que me empreste
a visão e a sanha
de rasgar chuvas e brumas
com meus próprios dedos.
Vem, serenidade!
Alerta-me os sentidos
com a brisa do bambual
e um som de asa,
a bater ao de leve,
nos meus ouvidos;
põe, dentro de mim,
uma ideia que me enleve
na imensidão do céu,
para que possa ser eu
o destino final
do ciciar da ternura.
Vem, serenidade!
Pinta, no meu olhar,
os sonhos da lonjura,
num dia sem névoa;
enche-o das cores
das manhãs floridas,
para que se diluam,
na harmonia do espaço,
onde flutua
a quietude do tempo.
Vem, serenidade!
Liberta o meu espírito
para que ele não pense,
não se torture, nem se alegre,
mas veja, sem disfarce,
a natureza íntima
de cada gesto e cada coisa.
Vem, serenidade!
Faz de mim espelho
onde repouse
e se condense
e límpida claridade
da tua face,
serenidade!
PESSOA
Fernando Sales Lopes
O que sentirias tu, ou vocês?
Por esta China misteriosa
Envolta em fumos mensageiros
E hexagramas com que adivinha
A constante descoberta de si.
Que impenetrável monge serias tu?
Ou que usurários, servos, mandarins
seria cada um de ti?
Que visões terríveis te dariam
Os Flora alquimista de Buda, Tao, Confúcio
Que Fung-soi vos libertaria
Do mundo das idades sombrias
E te revelaria o futuro
O saber. A verdade. O arquitecto
Que longe nunca encontraram.

O PASSO DO VAGABUNDO
Fernanda Dias
O Sol desamarrou as rendas do bambu
no saibro meticuloso.
Os velhos limpos jogam damas
debaixo das grandes ficus
e na orla dos relvados
raparigas cristãs lêem os livros pios.
Os donos dos pássaros cativos
esperam plácidos, o fim dos recitais.
Penso nos seres do ar, em gaiolas ou não:
a menos que não tenha nome,
tudo o que tem nome em Macau tem dois
nomes
e o Jardim de Camões também é o das pombas.
Múltiplo canto na manhã dormente:
urbanas aldeãs de chapéu de bambu
e avental de chita varrem as alamedas.
Apanho coisas caídas
penas, folhas delidas, bagas
por vezes inocentes por vezes tenebrosas
asas de borboletas e avos com verdete.
Coisas tão sem destino
e como eu ausentes;
e no entanto, aos céus gritando
uma presença frágil
quase a esvair-se de tão intensa e dura,
no eco das manhãs cristal da tarde.
E enquanto ridentes passam os namorados
cai sobre mim o Sol de Maio
em argentes estihaços.
MACAU
Isaura Matos
Princesa enfeitiçada descoberta por uma Nau, foi ela desencantada e com nome de MACAU, pura sempre baptizada.
Moldada em porcelana frágil, sempre menina, no Rio das Pérolas se banha deixou de ser pequenina.
Na água seu corpo se espelha movendo-se em harpas de jade.
Cabelos, fios de seda brilhando como cetim, mãos de rara beleza lançam cheiros de jasmim.
Aveludados e negros seus olhos dois traços bem desenhados na face cor de marfim, escondendo seus escolhos.
Na dimensão dos seus braços, abertos ao MUNDO inteiro, acolhe-nos em poucos espaços com seu AMOR verdadeiro.
Baloiça na aragem da sorte que a põe a flutuar, servindo-lhe também de suporte para não se afogar.
Cidade do Nome de Deus, que nesta viragem da História não sejas atraiçoada, são profundos votos meus.
Guardo na minha memória a Princesa mais amada e ao partir não digo ADEUS Vai comigo acorrentada.
ESPELHO DA MINH'AVÓ
Carlos Marreiros
Oespelho biselado
com moldura de pau preto
e requinte ornamental chinês.
Baço pelo tempo,
Passo a passo
em água se tornara.
O brilho há muito voara,
deixando cinzenta
a planície espelhada.
A minh'avó chinesa
há muito que não me aparecera
no espelho de mandarim.
E com as últimas águas se foi
com os arrozais
para nunca mais.

SILÊNCIO-SOM
Jorge Arrimar
Silêncio
no exílio do movimento
um canto
dois cantos
três cantos
quatro cantos
do quadrado onde te
reconheço
buda de quatro faces
Som
no auxílio das palavras
um canto
dois cantos
três cantos
quatro cantos
do coro onde te
oiço
cânone a quatro vozes
PÁTIO DA ETERNA UNIÃO
João Azeredo
Toponímica vontade
à hora do sol já não ser
talvez já só reste
— ou resto —
quociente liso
deixado no cinzento do pátio
pela divisão subitamente angular
da parede pelo passo
— ou talvez não —
e afinal passe
União
ainda molhada de nascer
Eterna
até amanhã à hora de outros sóis
que me não restam
porque pelo meu dividendo
já só eu me resto

TEMPLO
Pedro Ferreira
Até dói a arquitectura de Sim final onde o suor plástico emudece o tempo e a treva, admiradade não haver ainda sol, vive no seu dia, completo de revoluções e terraços puros.
Quando num ralenti ténue lá entramos, velados de ocidente e tentando não parecer um triste império sem fim, retardamos o olhar buscando o socorro das estátuas férteis das dinastias.
Mas de nada vale o ignorado ou o que foi se às mãos não vêm nunca as exactas palavras
[para o silêncio.]
De nada vale o alfabeto das viagens,
[os rosários]
tão pouco lembramos a memória dos infantes, Deram-nos um ventre e nós fizemos filhos de sorte, somos brutos.
No centro há um adro aberto como poros dum
[corpo dourado]
que respira a mãe, a cidade que para o fim se
[retoma e veste]
o rosto de bandeiras que as crianças trazem pela
[mão.]
Dor de despedida, derrota de conventos. Cá fora, ao largo, o rio diz que sempre correu, e as memórias com ele, cartilha do futuro que a um toque sofremos no cheiro e caímos do verde para o vermelho, e da lage huminícula para o guerreiro do estandarte sustenido.
CAMÕES A ORIENTE TRISTE
Josué da Silva
Foste vendaval, crista de onda verde cuspindo sangrenta o desprezo pela vida, quando entre ti, se interpunha a sede de ires à lua, de espada à lida, para dares à Grei a honra que precede o ser primeira e sempre decidida
a soltar nos mares o grito de bravura ao leme de todos os cabos da esperança, que a terra era um sem pão de amargura, um zé-ninguém da dor e sem herança capaz, p'ra dar aos filhos um algo de ternura mesmo conquistado na ponta duma lança.
E seria tu, peão desavindo do poder como cão atirado na lama do sistema, quem na tua taura lira e em teu crer em delírio, ofertava à Mãe suprema a chama e a luz de se reconhecer inteira, no canto universal do teu poema.
Por fim aqui me encontro Insigne Varão nesta gruta tão triste e tão sombria, tentando nela haurir toda a paixão que obriga com que desta pedra fria, se oiça o palpitar de um coração que fez de Portugal, a alma da Poesia.

OPERÁRIA
Margarida Ribeiro
Parem e olhem para ela
Que vos merece atenção
Magra como uma gazela
Negra que nem um tição.
Não é um "ele", é uma "ela"
E anda na construção...
Nunca será capataz
O posto está-lhe vedado
Mas é sempre ela quem faz
O trabalho mais pesado.
Magra como uma gazela
Negra que nem um tição.
Não é um "ele", é uma "ela"
E anda na construção.
Tanto desfaz um valado
Como chafurda na lama
À noite o corpo cansado
Muitas vezes nem tem cama.
Magra como uma gazela
Negra que nem um tição.
Não é um "ele", é uma "ela"
E anda na construção.

Tem precário vencimento
Que dor e tristeza encerra
Mas é o único sustento
Da família lá na terra.
Ela é que os mantém a todos,
A todos sem excepção.
Não é um "ele", é uma "ela"
A fonte do ganha-pão.
Sonha um dia descansar
Ser tai-tai, ou ser senhora,
Poder as unhas pintar
Mandar os calos embora.
Pensa que terão por ela
Respeito e muita atenção.
Magra que nem uma gazela
E branquinha como um pão.
Para mim e do coração,
Deixa que te diga agora,
Foram os calos da mão
Que te fizeram SENHORA!
SEM TÍTULO
Tereza Sena
No Oriente não há crescentes
Há um rio recheado de pérolas
e luzes vermelhas
candeias de Buda
numa pirâmide de frutas
No Oriente não há crescentes
Há um ciclo lunar
quarto minguante, lua nova e lua cheia
Há uma palmeira,
um telhado metálico
e o som da água
No oriente não há crescentes
Há fábricas de luz
um jardim
e as grades da minha janela
Crescentes no Oriente?
Só uma vez por mês.
NO TEATRO D. PEDRO V
Wong Zhao Yong
As danças sucedem-se na antiga colina, rompendo a noite toda;
Festejando o alegre encontro entoam-se canções ao ritmo da melodia.
A luz de dez mil lanternas multicolores, o vinho reflecte a embriaguês em mil taças:
Pisando o tapete vermelho, rodopiam tantas beldades quanto as nuvens.

ESCUTANDO A DAMA ESTRANGEIRA TOCANDO PIANO NO JARDIM DE MACAU
Wei Yuan
O vento do céu transporta-me à cidade
[ Atlântica.]
Cercada pelo mar do Sul,
ei-la, surpreendente, a península de Macau.
Fantásticas pedras no arvoredo intenso.
O jardim, separado por um muro de onda.
Os pássaros cantando em estranhos idiomas,
as pessoas, no pavilhão, falando várias línguas.
Os cantos dos pássaros são notas do piano,
oriundos, segundo se conta, da filha do Dragão.
A dama, de seda levíssima e cabelos como
[ nuvens,]
faz soltar, das vinte cordas, mil efeitos de sons,
Que parecem chuva miudinha soprando entre
[ as nuvens,]
acompanhados o vento e a onda fria,
transmitindo a solidão e a amargura
por ter deixado a pátria, de longa ausência.
De repente, ecoam maravilhosas melodias,
umas vezes como navios a regressarem ao porto
[ com vento debolina,]
embalados pelas canções dos pássaros entre as
[ flores,]
e pela alegria dos pescadores em terra;
outras vezes como corais que se rompem, ou
[ como o Rei Dragão,]
derramando pérolas pelo chão.
Depois, o silêncio,
a deixar espaço para a imaginação voar.
Abraçam-se ao pé da lanterna,
pouco a pouco, o vento e a chuva vindos
[ do mar.]
Subitamente, os mil sons reduzem-se a um
[ único,]
como um solitário ganso a voar no céu largo.
O mar está tranquilo, e todo o mundo é silêncio,
enquanto a Via Láctea surge a Sudeste do
[ edifício.]
Ah...
quem disse que ficamos separados por uma
[ imensa distância,]
se vivemos, de facto, com o mesmo mar e o
[ mesmo céu, com a mesma nuvem e a mesma Lua.]
Ao lado da dama, duas crianças,
cujos olhos fulgem como as águas do Outono.
Encontrei meninos como estes,
na terra dos deuses, no meu sonho.
Cavalgando as fénix como se fossem cavalos
[ de bambus.]
Afasta-se "o mundo das flores dos
[ pessegueiros" já há três mil anos.]
Ah...
Quantos três mil anos se contam numa vida
[ humana?]
O vento do mar que sopra o nosso Ser
[ envelhece-nos dia a dia.]

O JARDIM LOU LIM IOK
Leong Pei Wen
A trilha serpenteia ao longo da lagoa quadrada,
Escondida num sítio sossegado,
O quiosque encantador ocupa sozinho o lar de
[ solidão,]
Divertindo-se com toda calmaria.
Ondula-se fora do Território o Mar imenso,
Resta aqui o pequeno logradouro verde no
[jardim.]
O bambu húmido e o lótus oscilante exprimem
[ a mesma voz,]
O pinheiro frondoso compete com outras
[ plantas altas.]
Lembro-me da paisagem agradável de Cang
[ Zhou,]
E gosto de comparar a idade com o Jardim.
MINHA MÃE, VOLTO JÁ
Deng Jing Bin
Quando as ondas do Mar do Sul tocam as cordas
[ da Ponte Macau Taipa,]
a Colina da Penha está espalhando a alegria
[ desta cidade pequena.]
Macau voltou a ter alma no seu corpo, graças
[ à assinatura]
da Declaração Conjunta, com a caneta de ouro
[ Herói. ]
Oh, minha mãe, todos os dias dos 400 anos
[ fazem sofrer a minha nostalgia,]
e hoje já posso dizer do fundo do coração:
Minha mãe, volto já!

O PÔR-DO-SOL
Feng Qing Cheng
O sonho de ganhar à mesa do jogo
queimava o céu do pôr-do-sol
As árvores no dique tinham fechado as
[ pestanas escuras]
quando o apostar barulhento declarou a
[ insónia da noite]
Cansadas das corridas, as gaivotas
deixaram de perseguir o rasto do hydrofoil
A retirada da maré
apanhando nos fojos peixes, caranguejos e
[ camarões]
Depois de rodar mais uma vez a roleta
o sol poente acabou por cair
no cesto do paciente pescador
altura em que
o Pólo Antárctico lançou uma foice radiante e
[ afiada]
fazendo um recorte de Monte Carlo do Oriente
no fundo do crepúsculo.
O TEMPLO DE KUN IAM
Wei Ming
Os sinos badalavam a meditação budista do
[ crepúsculo]
Sumiam, pouco a pouco, as rezas dos monjes
Mergulhei-me então na reflexão depois do
[ regresso do mar]
que ainda estava a banhar na vermelhidão do
[ sol poente]
Nem a tristeza tem horizonte nem o barco tem
[ destino]
Enfim, as leis do mundo
estão nas duas mãos
No silêncio jazem as pétalas caídas
e as folhas avermelhadas
Foi mesmo no momento em que o pórtico
[ lançava a sombra]
um pirilampo começou a voar
ao ritmo da brisa
e do pleno Outono
apagando-se por fim
na solidão que reina no templo antigo.

PAISAGEM DE MACAU
Gao Ge
Uma fera está agachada na sombra de um castelo
cujos olhos são dois faróis a sondar todas as
[direcções]
Um moinho de vento invertido faz lembrar a cruz
[brilhante]
O Século XIX atirou para o Oriente as lanças
cujos gumes cruzados reflectem os raios da santa cidade
A ponte de longa vida foi reduzida por entre as tintas
[de uma pintura chinesa]
Esta noite toma-se mais palpável no colo de uma mulher
[lasciva]
A graça do vento marítimo é a ilusão do diamante na ágata
[negra]
e as sombras que se movimentam nos raios giratórios
mantêm a mínima distância entre si a fim de
[disparar]
Passo a passo, a história tem vindo a entrar numa
[estação mais excitada]
A redonda cama eléctrica tenta desgastar os limites
[da tipologia]
O Deus que protege a Plaza Amaral saiu do
[memorando]
ainda numa postura de Dom Quixote
e os alcoviteiros, com as lendas do herói, inventam
[histórias eróticas]
São histórias que se repetem todas as noites
porque nas gaiolas de luxo sempre vive um
[ambiente sensual]
de que os homens sobrevivem com uma sensação
[amorosa]
Mas a questão é como manter a eterna erectilidade
e como explicar o regime representativo com o
[bálsamo da Índia?]
"O jogo moderado dá prazer" é justificação do
[público para se divertir]
"Come-moedas" funcionam ruidosamente para criar
[efeitos publicitários]
Dominó, maior ou pequeno, roleta e bah ka lo
[deslumbram os olhos]
Desde os assaltos dos piratas até os desafios contra
[o rei do casino]
tudo é uma combinação da civilização ocidental e da
[sabedoria oriental]
A fome e o sexo são dois eixos da natureza
Hoje são os novos confucionistas que lideram a moda
Há quem que se retire da "rede de camarões"
Há quem finja "o porco a devorar o tigre"
Há quem apanhe "a galinha de patas amarelas"
Há quem se torne no "caranguejo de outono"
Aqui se pode provar um vasto leque de
[especialidades]
desde os bolinhos a vapor de Xangai
até as pamonhas com carne salgada do Território
O gosto tailandês e a delícia filipina também fazem água
[na boca]
Não importa quem seja o cliente
compatriota da Formosa ou frequentador do Japão
O que preocupa as raparigas de dança é o câmbio das
[moedas estrangeiras]
e a nostalgia da terra é medida com
a diferença entre o dólar de Hong Kong e o da América
As meretrizes do Norte já não sabem cantar "Quando o
[Senhor regressa?"]
e as cabaias ignoram o que é o "Tratado de Mong Há"
Saciar o sexo precisa de explorar a imaginação
[histórica]
No sonho de reencarnação a vida é fantástica e
[colorida]
Reúnem-se os fantasmas dos Quatrocentos
junto dos montes da Guia e da Penha
Por fim, o castelo reduziu-se a um recorte
dentado defendendo o Monte Carlo do Oriente indefenso

A BIBLIOTECA SIR HO TUNG
Tao Li
No ambiente entretecido pelo pôr-do-sol, chuva
[ e bruma]
subo a escadaria
na qualidade de um cidadão da colónia
Parece que o palpitante coração ainda pode
[ escutar]
uma leitura do texto clássico ou
um canto cadenciado da poesia
Contudo, fugiram já pela porta trazeira as
[ tranças e os coletes]
Os mandarins, não há mais.
Uma cidade, mesmo cheia de livros, não resistiu
[ a nada]
e tudo acabou por ser queimado ou despojado
por canhões e espingardas
A verdade é que desapareceram ao longo das
[ centenas de anos]
não só a tradição encadernada por fios
nem um grupo de velhos
nem algumas ligaduras para apertar os pés das
[ nossas avós]
Para além da rua, na biblioteca, há quem
[ comente a chuva e o vento]
há quem tenha saído para fora
Será talvez Sun Iat Sin.
Depois, descobri que na estante
o meu próprio nome
adormece sobre a desordem de intelectuais
O nome parece tão desconhecido que
só é perceptível no espelho do sonho
De repente, fechada a porta e apagada a luz
um edifício em estilo ocidental ficou escuro
tão escuro como a história
Então apresso-me a procurar a porta
e conseguir sair para me envolver no anoitecer
cuja maior parte, no entanto, não me pertence.
UMA PEQUENA CIDADE LENDÁRIA
Wang He
Um dragão cinzento, sem gemido,
Está deitado, sob ramos de begónia,
Tingido de sangue.
O seu corpo gigante,
Encheu o estreito de Hou Keng,
Com a cabeça na colina da Universidade.
O Céu sangrento,
Cobriu o mar rubro;
A alma de quatrocentos anos,
Que acabou de ter sua imagem,
Teve que ficar afastada,
Num canto de Hou Keng,
Em hematémese silenciosa.
O Rei-Monstro de barbas vermelhas
E olhos verdes,
Tornou-se logo um pequeno diabo:
Enquanto um outro descalçado,
Passou a ser um sobrenatural.
Ao lado da fronteira tenebrosa,
Entre o Céu e a Terra,
Um tauista não conseguiu
Ser "Tian Yan Tong",
No Morro Oriental.
Ele reclamou com a decadência
Da lei celestial,
Que foi embora,
para os cinco elementos
E as seis teorias.
Ficou aqui sozinho,
O dragão moribundo,
Pois ele tem um nome fantástico,
— Macau.
PASSAGEIROS
Lu Ping Yi
Com o tempo que passou,
Diluiu-se.
companha-me longa e tortuosamente
No silêncio dos caminhos.
No jardim, sempre vazio o banco
com o sonho decorativo de sombras de bambu.
E não é capaz de me responder ao que pergunto,
Apenas as aves imaginárias rapidamente
[ voaram sugerindo...]
Luzes do sol
Voltaram do sonho do Império.
À tarde, muito silêncio.
Senta-se numa praça de um país remoto,
Talvez imutável montando no seu cavalo.
Ainda está com o seu sorriso eterno?
À meia-noite, parte já.
Mas eu, a certeza que tenho
Vai-me recordar uma cidadezinha do Nome de
[ Deus.]
Suas poesias esquecidas
Espalhando-se, a brilhar junto das estrelas.
CONFISSÃO
Qi Si
Não é importante para mim,
Se o negócio é teu ou meu.
Tu tens riquezas incalculáveis,
Que eu conheço melhor do que tu;
Eu estou com toda a ambição,
Que tu também deves conhecer bem.
Eu tenho os melhores produtos,
Feitos com carbono de bissulfato,
Ácido sulfúrico, sódio hidróxido
E silício hidróxido,
Ou outros metais pesados
E resíduos nucleares,
Para trocar contigo,
As pérolas, ágatas, petróleo,
E gazes naturais,
Ou diamante, ouro, e prata.
Deus não fez nenhum negócio,
Com os seus filhos humanos.
Agora, eu assino contigo um contrato,
Que é mais benéfico do que Deus beneficiou.
Queiras ou não,
O negócio já foi inaugurado,
Até que tudo o que tu tinhas,
Passasse para minha mão!]

PEQUENA BIOGRAFIA DO TIO A E
Zhang Wen Yong
Tio A E, tu estás a coxear por uma longa rua
Tímido, ando atrás de ti, de calças dobradas
no momento em que as tecelãs avançam rumo
[ ao coração da cidade ]
levantando as faixas
Estamos destinados a viver um encontro de
[ aventura ]
Estamos a abraçar um desejo afectivo
Quero dar-te um cumprimento amável:
"Como estás, tio A E?"
Tu és tão bravo como o Deus do Mar
mas sem nenhum brilho lendário
Tu viraste a cabeça
deixando-me ver a tua cara com feridas a brilhar
[ como ]

as estrelas da noite fria do Outono.
Ninguém chora por ti
Oh, tio A E
só eu te respeito como o símbolo da vida
Não sei quantas chuvas e ventos têm marcado
[ a tua testa ]
e percebo perfeitamente o que a tua mulher te
[ pede três vezes por dia ]
Pois, tu nunca consegues romper com as grades
[ da cidade ]
O Sol não sorri por ti
A chuva não pára por ti
No outro lado da rua há mais uma firma a ser
[ inaugurada]
Na assembleia há os deputados que lutam por
interesses do povo e aprovaram, como de sempre,
o novo decreto-lei para aumentar o salário
Tio A E
O tempo tem sulcado tanto a tua testa
que dos meus lábios fechados fluiu uma gota
[ vermelha de crepúsculo ]
Oh, tio A E!
Chamo-te mais uma vez do fundo do coração
O mundo de fora não te interessa
porque o destino que nos apetece é muito longe
porque o murmúrio que tu pronuncias é
[ fascinante como pérolas mas não servem]
para comunicar com os outros
Mesmo o pescador heróico Santiago foi expulso
[ do mar pelo tubarão ]
O destino da tua terra não é apenas o fim
[ daquela rua ]
Oh, tio A E
Regressa para casa com o apoio da bengala
e conta à tua mulher a história de um coração
[ melancólico ]
e eu rezo por ti com os melhores votos:
"Boa viagem!"
VIAJAR PELA NOITE
Yao Jing Ming
Viajar pela noite
é medir a imensidão do desejo em insónia
é recuperar efemeramente as sementes
[ retardadas ]
é remoer os fios do mistério no balanço da
[ sombra ]
é partir em busca de si próprio
no espelho da orvalhada.
Do limiar nunca chegam notícias
nem o bico da gaivota traz o canto esperado
E o pensamento ainda debruçado à janela
insiste em repetir o ciclo da clepsidra
Enfim, viajar pela noite
é prolongar uma espera.

* I Encontro de Poetas de Macau, realizado na Biblioteca Sir Robert Ho Tung em 10 de Dezembro de 1994, sob o patrocínio do Instituto Cultural de Macau.
desde a p. 261
até a p.