Artes

BERNARDO MARQUES
OS TRAÇOS DE UM SENTIMENTAL

Marina Bairrão Ruivo

FORMAÇÃO E AFIRMAÇÃO

Quando Bernardo Marques chega à cena artística portuguesa, terminava a década que havia proposto novas vias à arte portuguesa. Vivia então no Algarve (e era ainda muito novo) quando, nos anos 10, a capital se agitava com uma série de actividades que tentavam impor-se como alternativa ao naturalismo e aos valores oitocentistas ainda fortemente enraizados. A cidade que o acolhe tinha voltado à pacatez de outrora, o seu meio artístico e cultural tinha regressado à ordem: terminava assim a década e o esforço de uma "primeira geração" modernista. Bernardo Marques vem para Lisboa para obter uma licenciatura em Letras, recebendo uma mesada do pai que tinha muito empenho na formação académica do filho, como convinha à mentalidade da época. A Faculdade de Letras funcionava então no Convento de Jesus, com o Chiado a dois passos e a atracção que logo nele exerceu. Bernardo Marques sempre se interessou pela literatura e a opção pelo curso de Românicas parecia ajustar-se-lhe perfeitamente. A sua cultura geral e a formação literária contribuiram decisivamente para a apetência para ilustrar obras literárias,- actividade para que se mostrou especialmente dotado e vocacionado.

O seu gosto pelo desenho vinha de trás, mas a fragilidade dessa formação específica consolida-se, caracteristicamente, nas tertúlias literárias e artísticas, nos encontros de café, que conheceram nova animação nos anos vinte.

Ainda frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, mas não por muito tempo: apenas até ao terceiro ano. A cidade que o acolheu digeria, por um lado, como vimos, o passado e o esforço dispendido pelo fulgor vanguardista de 1915-17, por outro oferecia atractivos vários de uma vivência mundana num pós-guerra de "jazz-band", de "cabarets" de luxo e dum" Chiado que recuperava os seus direitos brevemente insulta-dos..."(1). Este viver mundano dos anos vinte lisboetas, conotado com a modernidade, levou Bernardo Marques, na sua opção pela prática do desenho, a preferir uma aprendizagem vivencial a uma aprendizagem académica. Era na convivência generosa, boémia e estimulante dos cafés que essa aprendizagem se fazia.

O humor nos primeiros anos do século cobrira uma produção gráfica onde se investia, a par do riso, uma liberdade expressiva. A pretexto do riso introduzia-se, timidamente, a desejada modernidade. Bernardo Marques inicia-se também através do desenho humorístico, das caricaturas.1920 marca o início de uma carreira, ano em que expõe no 3º Salão dos Humoristas e que inicia a sua actividade nas revistas "ABC" e "llustração Portuguesa". Os humoristas seguiam ainda modelos alemães ou austríacos, como Cristiano Cruz que influenciou particularmente o jovem Bernardo nesta fase inicial da sua produção. Tal como para outros da sua geração, Cristiano Cruz foi uma referência obrigatória, como o foram também os intervenientes do "Orpheu", que transmitiram para esta nova geração um sentimento misto de nostalgia e de fascínio. A participação (e o acolhimento favorável) na exposição de 1920 foi provavelmente decisiva na sua opção pela prática artística, apesar dos problemas financeiros que isso acarretava. Bernardo Marques vai viver, com os outros protagonistas do momento, em cumplicidade, o desenvolvimento do modernismo durante a década de vinte, que corresponde aos anos da sua formação e da sua afirmação.

Os anos vinte surgem ao "ralenti", mais prudentes e conciliadores, cada vez mais longe de atitudes de ruptura e acomodando-se num quadro de valores mundanos que a época fomentava. Nos "loucos anos" vinte, Lisboa tradicional de brandos costumes, na encruzilhada entre a tradição e a novidade, via revolucionados os seus hábitos e costumes. "A moda, padrão da nova ‘civilização' moderna que despontava, alterou os costumes e Lisboa combinou a assímilação do que importava de‘fora'com as resistências estruturais-mentais, formais, técnicas, sociais--que herdara". (2)

Como em todo o Ocidente a moda intervém decisivamente no modo de viver, nestes anos em que o cosmopolitismo assume especial importância. Assiste-se a uma subida da burguesia lisboeta, a inflação originada pela especulação desse período faz surgir fortunas, rapidamente amontoadas, e o novo-ri-quismo dessa burguesia opípara exibia-se nas ruas de Lisboa e nos locais de lazer, que adquiriram estatuto especial. O divertimento adquire especial importância enquanto consumo, reflexo do modelo americano. Assiste-se ao desenvolvimento de uma ideologia de bem-estar e à consequente revitalização da vida nocturna, com o surgimento ou ressurgimento dos "dancings" e dos "night-clubs", onde se ouve "jazz" -- outro símbolo do modernismo. De dia era nas ruas e nos cafés que se exibiam poses e comparavam elegâncias. O teatro mantinha o seu papel importante na vida lisboeta e o cinema traduzia as novas aspirações da cidade, ditando modelos. A "zona civilizada", mais frenética e agitada, tem como coração o Chiado e limita--se aos seus arredores, do Rossio à Avenida da Liberdade. No entanto havia um lado provinciano ou aldeão na capital, que por vezes transparecia. Todos estes sinais de cosmopolitismo se debatiam com uma sociedade conservadora e com uma mentalidade pouco propensa a transformações de costumes.

Estes novos comportamentos vão ser protagonizados por uma geração de artistas -- "novos" também eles -- que entram em cena carregados de memórias e com poucas expectativas de renovação do ambiente cultural. Uma sociedade mais rica em índices urbanos era proposta nas publicações periódicas, revistas, magazines e jornais que surgiram ou que foram reformulados no início dos anos vinte, informando e formando novos modos de estar. Essas publicações, para além de representarem um mercado de trabalho (por vezes mesmo o único recurso) para os artistas portugueses, foram o lugar certo de divulgação de estereotipos mundanos, onde também se ensaiava um léxico modernista.

A efemeridade e a própria natureza destes periódicos implicava a produção de imagens sedutoras e facilmente perceptíveis, e a intervenção dos artistas nesta nova imprensa exigiu uma especificidade de meios técnicos e mentais da produção gráfica. Desenvolve-se o desenho de linha, acentuador dos contornos que definem perfis de moda, preenchidos por texturas gráficas. Novos valores gráficos, dentro de um espírito modernista, são propostos pela invenção do "lettering" e pelo entendimento da paginação. Para além da sua omnipresença como ilustração, vinheta, cabeçalho ou publicidade, o desenho é dignificado e adquire um estatuto e um valor autónomos. Assim, sem qualquer fim ilustrativo, ocupa-se uma página para se expor um desenho, com sentido de "hors-texte", do mesmo modo como se divulga uma pintura ou se pagina um texto.

Bernardo Marques e os seus companheiros de geração ilustraram profusamente estas publicações periódicas, largamente consumidas pelo público que se queria contemporâneo, ávido de actualização, de padrões de modernidade e de "civilização". Bernardo Marques ilustra e desenha temas do quotidiano, sinais de uma urbanidade nascente, que parece ter existido mais em imaginário do que na realidade: cenas da vida mundana e dos lugares modernos, presenças femininas estilizadas tomando chá ou descendo o Chiado, captando o vazio ocioso das personagens e o ambiente da cidade, com a elegância que caracterizava a sua atitude estética.

As imagens dos magazines não coincidiam, porém, com as imagens da realidade lisboeta. Lisboa era uma pequena cidade cheia de campos e lugares híbridos, uma certa pa-teguice e um novo-riquismo que Bernardo Marques retratou com um misto de ternura e de ironia. Na sua produção deste período encontramos também uma temática popular, onde se denota um profundo entendimento do povo, rural e urbano, visto não apenas como motivo etnográfico e decorativo mas como protagonista da sociedade. No final da década, a elegância vai ceder a uma temática mais social e a estilização gráfica vai ser substituída por um traço mais violento e expressionista. A amargura da sua visão resultou da percepção que foi tendo do desacerto entre a vidinha lisboeta e a vida moderna, para o que terão contribuído as viagens que fez pela Europa. A sua estadia em Berlim, em 1929, para além de lhe aguçar a percepção da estagnação da vida artística em Portugal, deu--lhe novos meios de expressão. Os desenhos desse período reflectem já um certo desencanto e amargura, associados a um traço mais violento e expressionista, que caracterizaram a sua produção nos anos que se seguiram.

ILUSTRAÇÃO E GRAFISMO

A Ilustração e o Grafismo, nas suas várias componentes, foram a actividade mais prolífera de Bernardo Marques. Os seus anos de formação-anos vinte- coincidiram com a proliferação de jornais, revistas e magazines, própria dessa vivência urbana do pós-guerra, ávida de informação, de imagens e de modelos. Fenómeno de moda e de época, este surto de ilustração na imprensa periódica remediou a difícil subsistência dos artistas plásticos que nela colaboravam com regularidade. Pela sua imensa produção ao longo de cerca de trinta anos e pela aptidão específica que revelou para a ilustração e para o grafismo, Bernardo Marques foi um exemplo por excelência da importância que teve este tipo específico de intervenção plástica - uma das componentes artísticas fundamentais da época. Desde 1920 que Bernardo Marques colabora nas principais publicações que vão surgindo ou que se vão reformulando (como a "Ilustração Portuguesa" onde colabora de 1920 a 1924).

Estreia-se pela via do humor no "ABC" (de 1920 a 1922) e no "ABC A RIR" (de 1921 a 1922), e tem a seu cargo a "Página de Domingo" de "O Século" (1921). Na "Contemporânea" e na "Revista Portuguesa", a sua colaboração é simbólica (1922 e1923 respectivamente), assim como no "Sempre Fixe" (1927), na "Presença" (1933), ou, mais tarde, na "Revista de Portugal" (1939). Nalguns casos, é também a própria revista que é efémera e não particularmente a sua colaboração; foi o caso por exemplo da "Variante" (com apenas dois números, em 1942 e 1943). Presença mais assídua teve--a na "Europa" (1924), no "Diário de Notícias" (de 1925 a 1929) ou no "Notícias Ilustrado" (de 1929 a 1931), na "Ilustração" (de 1926 a 1934) e na "Civilização" (de 1928 a 1930). Como se constata, a natureza das revistas é muito diversa, e, para além de publicações de entretenimento ou mais literárias, as revistas de cinema (fenómeno também tão em voga na altura) foram local de abundante produção de Bernardo Marques: "Imagem" (1928) e "lmagem"- 2ª Série (1930-1934),"Kino" (1930-1931) e "Girassol" (1930-1931).

A revista "Panorama" marca outro tipo de intervenção gráfica de Bernardo Marques: a de direcção artística. Edição do Secretariado de Propaganda Nacional, a "Panorama" -1ª Série (1941-1949) veícula a "política do espírito" de António Ferro, reabilitando um certo tipicismo folclórico numa "campanha do bom gosto", e reúne o maior número de ilustrações de Bernardo Marques. Dentro do mesmo espírito se rege a revista "Atlântico", onde Bernardo Marques também colabora (1942-1945). Concluindo este extenso rol de participações em publicações periódicas, e, sob a direcção artística de Bernardo Marques, contam--se as revistas "Litoral" (1944-1945), e "Colóquio" (de 1959 até à sua morte, em 1962).

Mesmo que tratadas autono-mamente, as ilustrações pressupõem o suporte narrativo de um texto que lhes dá origem e significado e que não pode ser ignorado. No sentido lato do termo ilustração inserem-se não só as capas e a publicidade, como também outras componentes gráficas como vinhetas, cabeçalhos, molduras decorativas, fotografias e a própria mancha tipográfica. Ilustrando centenas de textos diferentes de autores diferentes (impostos nalguns casos), Bernardo Marques resolverá de diferentes maneiras, também, a conjugação de todas as coordenadas visuais.

Convém lembrar a estreita ligação das publicações periódicas com a Cidade. Foi de facto em Lisboa que nasceram, com o objectivo de forçar a cidade a uma modernização, fornecendo-lhe modelos e retratando-a numa idealização de elegância urbana à imagem da Europa (de Paris), e, entretendo-a, Bernardo Marques vai habilmente registando esta ilusão de cidade, captando o seu viver cari-catural numa crónica penetrante de costumes e personagens, e acompanhando as suas oscilações. A relação de Bernardo Marques com Lisboa é de extrema cumplicidade, como se pode observar pelos seus desenhos, nos locais que privilegia, na forma de a olhar e registar.

Foi em Lisboa que Bernardo Marques escolheu viver. Logo elegeu certas zonas da cidade, partindo do Convento de Jesus (onde estudou), subindo a Calçada do Combro (onde morou) em direcção ao Chiado (onde conviveu), e parando pouco mais além que o Príncipe Real ou que a Avenida da Liberdade. O denominador comum destes postos de observação era o Tejo que, ora se via, ora se sabia por perto.

Os anos vinte lisboetas são vivi-dos e retratados por Bernardo Marques: a sua febre mundana, os seus décors favoritos, a sua "pose" e idealização, que por vezes pateticamente se confrontam com uma realidade mais provinciana. Os ambientes públicos e modernos como os salões de chá e os "clubs" eram caracterizados por um traço conciso e elegante, acentuando a imagem de elegância mundana e urbana que a moda impunha. O quotidiano de Bernardo Marques e da cidade passava-se também pelos cafés, ponto de paragem obrigatório. Sentado a uma mesa de café, ou simplesmente observando de longe, Bernardo Marques mantém um certo afastamento crítico, mesmo quando algum envolvimento ou cumplicidade transbordam das suas "crónicas" da cidade. "Lisboa era um alfobre de personagens para troçar! Mas era tão linda. Quando apareciam uns becos, umas casas, umas palmeiras, as personagens de farsa perdiam um pouco a sua violência caricatural (...)"(3). Assim, por exemplo, ele viu o Chiado que foi parte integrante da sua vivência e da sua obra, tal como para os outros artistas modernos da sua geração, e para a geração anterior. O Chiado era a "vitrine" onde as pessoas, as mulheres sobretudo, se vinham mostrar.

No início da década, Bernardo Marques, vai procurando uma definição estilística na prática diária da ilustração que lhe ia fornecendo vários temas para se exercitar. O seu traço elegante e cosmopolita correspondia plenamente ao registo mundano, frívolo e actual desejado."O final da década assiste(...) a uma exploração gráfica intensa, e a uma viragem temática anunciada há já algum tempo. Numa total inversão de valores, surgem com especial incidência trechos folclóricos e rurais(...). Apoiada no poderoso fenómeno do gosto médio de consumo (e de assimilação), a evolução sócio-cultural desta década manifesta nos seus últimos anos uma nítida regressão em todos os domínios"(4). Bernardo Marques partici-pou nesta redescoberta folclórica com especial aptidão. Desde cedo que um certo populismo pitoresco animava os seus desenhos (paralelamente ao seu registo mais mundano), mas nem por isso se desinteressou pela cidade. Passou a vê-la de maneira diferente, ou melhor, de maneiras diferentes. Depois da estadia em Berlim (1929), Bernardo Marques passou a ver Lisboa e os lisboetas com mais ironia, com mais repulsa, adaptando a Lisboa o que Grosz e o expressionismo alemão lhe inspiraram, fixando satiricamen-te os tiques dos pequenos-burgue-ses lisboetas. Fenómeno essencialmente urbano, a publicidade foi também uma actividade de recurso de Bernardo Marques, numa altura em que, elevada a prática artística, participava activamente na difusão de um gosto moderno e contemporâneo. Sabe-se que o" desenho para publicidade e os trabalhos gráficos constituiram para ele as tarefas agastantes em que por longos anos foi ganhando o necessário pão-de-cada-dia"(5).

A exploração gráfica que Bernardo Marques foi fazendo intensificou-se nos anos trinta e quarenta, resultando na proeza máxima dos seus desenhos de paisagem dos anos quarenta e cinquenta, onde Lisboa tem assegurado um lugar privilegiado. Bernardo Marques, numa necessidade de distan-ciamento que já se vinha fazendo sentir, comprazia-se sobretudo em temáticas de conteúdo mais poético e, concretamente, numa abordagem romântica da cidade. Lisboa voltava a ser sentida de maneira diferente; importavam menos agora a sua vivência, os seus habitantes. Foi a vez da paisagem urbana e das suas reminiscências despertarem os seus sentidos. É possível acompanhar as "nuances" do olhar do artista sobre a cidade, a investigação gráfica que vai fazendo com mestria. As personagens que antes animavam a cidade e os seus desenhos, foram remetidas para segundo plano. Numa malha sensível de riscos de quase escrita, a referência a um novo romantismo e a Cesário Verde é inevitável, pela relação ambígua que Bernardo Marques mantém com o passado e pelas afinidades com o poeta que mais o terá influenciado a ver Lisboa e a sua sensualidade poética. Perfeita-mente intemporais, estes desenhos representam mais a evocação do passado, a atmosfera e a luz imutáveis, do que uma cidade datada.

Se os desenhos publicados são excelentes exemplos de explosão gráfica e de sentidos que se opera em Bernardo Marques, outros há, mais íntimos ainda, por não terem sido feitos para serem mostrados, e porque os locais escolhidos lhe eram particularmente caros (como o Príncipe Real, visto da janela do seu "atelier" na rua da Palmeira).

"Talvez esta 'cidade', mais do que muitas outras, rime terrivelmente com a idade de cada um" (6). Talvez a idade rime por sua vez com maturidade (técnica e sensitiva) que levou Bernardo Marques, num percurso íntimo e solitário, ao desenho de paisagem, onde se confrontam as qualidades físicas do objecto ana-lisado com as sensíveis do sujeito. Passando por um prontuário de tipologias, inventariando poses, tiques, defeitos e qualidades das pessoas, o relacionamento de Bernardo Marques com a cidade chega ao despovoamento.

A primeira parte da sua obra, de facto, é marcada pela ressonância humana que transcende os locais onde se insere, e contrasta com a fase final em que Bernardo Marques passou gradualmente da análise dos homens à análise das coisas. É assim que, transferindo a sua atenção para os locais e para as coisas, nasce o paisagista.

"Dir-se-ia que já tinha visto, da humanidade, quanto bastava para se desinteressar"(7). Mas antes de nos debruçarmos sobre esta importante fase final da sua obra, convém referir outra sua actividade, não menos importante, de que Bernardo Marques gostou particularmente: a ilustração de obras literárias.

Bernardo Marques era essencialmente vocacionado para ilustrar certas obras literárias. Para além de dominar tecnicamente as artes gráficas, a sua formação literária e sensibilidade plástica resultavam numa perfeita conjugação entre ilustração e texto. O conceito de ilustração moderna fez mudar o panorama do livro ilustrado: conceber a ilustração como uma correspondência (à maneira de Baudelaire) de sensações e de inteligência entre o escritor e o artista plástico, de forma a obter uma unidade final onde se confundem os dois modos de expressão. Bernardo Marques é frequentemente apontado como um dos primeiros ilustradores em moldes modernos(8). De facto, foi a geração de Bernardo Marques, estabilizadora de uma nova sensibilidade, que imprimiu ao gosto o espírito moderno da ilustração de obras literárias. A cultura literária de Bernardo terá contribuído decisivamente para a sua apetência para este tipo de ilustração. Ele próprio frisou que "o ilus-trador é forçado, naturalmente, a distinguir estilos literários e artísticos. Nunca poderá ilustrar com as mesmas intenções, com a mesma visão crítica e até com os mesmos processos técnicos o 'D. Quixote' e 'O Primo Basílio'. Deverá até saber distinguir, o que já é um poucochinho mais fino, Maupassant de Gide. (...) O desenhador culto esforça-se sempre por se adaptar aos estilos, às épocas e às individualidades. (...) A falta de Cultura do ilustrador indu--lo em muitos erros e grosserias, empobrecendo-lhe também a expressão artística" (9).

Bernardo Marques inicia a sua actividade neste domínio - primeiro dando apenas rosto ao livro - muito cedo, e a ela se dedica durante o resto da sua vida. A Bernardo Marques se ajusta es pecialmente bem a denominação de arquitecto do livro. Ele concebe o livro como uma peça arquitectónica, preocupando-se com todas as componentes, conju-gando-as com e-quilíbrio, no sentido de formar um conjunto homogéneo, discreto e elegante. O seu objectivo é conceber - segundo as suas próprias palavras - "o livro que ao conhecedor artístico dá uma sensação voluptuosa e ao leitor ordinário não perturba, antes educa graciosamente"(10). O seu talento reside na conjugação da escolha do papel, das dimensões, dos tipos de letra, da "mise-en-page", do processo de impressão e de articulação das imagens com o texto.

Para além do cuidado com que resolveu os aspectos técnicos, Bernardo Marques revelou especial apetência para ilustrar determina-das obras literárias. Não se limitava a representar as figuras ou as personagens do texto, interessando-se sobretudo em recriar a atmosfera em que elas se movem.

É possível seguir o percurso de Bernardo Marques, a forma como a sua obra de ilustrador foi ganhando unidade, resultante de um trabalho adequado ao seu temperamento. Houve alguns escritores com quem Bernardo Marques teve parti-cularmente a ver e cujas obras ilustrou numa fase de maturidade em que a dimensão da sua própria obra atingia uma plenitude, na delicadeza plástica do traço. Referimo-nos ao final dos anos quarenta e à década de cinquenta, período em que concentrou a sua atenção na paisagem, com uma nostalgia e gravidade íntimas. Na arte delicadíssima de Bernardo Marques, as duas facetas - de natureza tão diferente - de paisagista e de ilustrador, são as que melhor definem o seu talento plástico. O seu nome é indissociável de certos autores, pelas obras que ilustrou: Eça de Queirós e Cesário Verde ajustam-se particularmente à sua visão do mundo citadino, de Lisboa; Aquilino Ribeiro ao interior do país, ao Portugal continental, à Beira Alta; Teixeira Gomes ao seu Algarve natal, ao litoral. É costume dizer-se que Eça e Cesário o ajudaram a formar a sua visão. Cesário Verde e o Século XIX são, de facto, muito a seu gosto, tendo começado a ilustrar "O Livro de Cesário Verde" em 1956, para comemorar o centenário do nascimento do poeta, mas que só viria a lume em 1964, depois da sua morte. Cada poema mereceu a Bernardo um estudo atento; as ilustrações sugestionam e evocam a poesia sem a ela se sobreporem, impregnadas do mesmo espírito. Cesário e Bernardo formam um bloco uno e indivisível nesta crónica alfacinha onde o romantismo do desenhador se encontra com o naturalismo do poeta.

Uma outra visão de Lisboa teve--a Eça de Queirós, também ele imediatamente associável a Bernardo. Muitas coisas aproximam também estes dois criadores de ambientes. Já vimos como Bernardo Marques tinha a inclinação natural para a ironia e a sátira de costumes. Ele procurou a sugestão das figuras e do ambiente, e não o seu contorno exacto, tal como fizera no "Ma-Ihadinhas" onde soube encontrar, ao sabor dos caprichos de Aquilino, estreitas equivalências de forma e de fundo.

Existem também vários desenhos de Bernardo Marques aos quais se adequam certos textos que, em muitos casos, não saberemos se estariam ou não no seu pensamento. Foi o caso do livro "Saudades de Lisboa", antologia de textos de vários autores, organizada por David Mourão-Ferreira a partir de um conjunto de desenhos de Bernardo Marques. É perturbadora a proximidade de alguns desenhos com determinados escritores, de outrora e do seu tempo, porque a Lisboa de Bernardo é simultaneamente passado e presente, descritiva e evocativa.

Resta, nesta geografia afectiva de Bernardo Marques, o seu Algarve natal. Desenhos do Algarve, feitos em várias épocas da sua vida foram também reunidos num livro "O Algarve na obra de Teixeira Gomes". Ambos eram dotados de uma especial apetência sensorial, e em sintonia de sensibilidades fixaram a cor, a luz e a magia da terra onde nasceram. A obra tipográfica teve ainda a orientação de Bernardo Marques que morreu dias antes do livro sair.

Leitor atento, apaixonado pelos livros, Bernardo Marques soube, com rara sensibilidade, expressar pelo lápis o que certos escritores eleitos disseram nas laudas, numa articulação perfeita da imagem com o texto. A produção plástica de Bernardo Marques tem de ser entendida em função das suas várias componentes, insistindo nesta faceta que o artista privilegiou.

DECORAÇÃO

A obra de Bernardo Marques caracteriza-se por ser, como temos verificado, multifacetada. Às suas actividades de desenhador, de ilus-trador e de artista gráfico, junta-se outra não menos importante na sua produção, a de decorador. Podemos mesmo dizer que é uma conjugação coerente de todos estes factores que caracteriza essa sua faceta de decorador, para a qual desde sempre, também, revelou especial aptidão. Como decorador, Bernardo Marques limitou-se, praticamente, a responder a encomendas oficiais. Foi nos anos trinta e quarenta que esta actividade o absorveu mais regularmente, sobretudo ao serviço do S. P. N./S. N. I., mas desde cedo que revelou vocação para um certo sentido decorativo (lembramosa sua intervenção para "A Brasileira" do Chiado em 1925).

Esta sua específica actividade é indissociável da chamada equipa de António Ferro que durante vários anos (entre 1935 e 1945, aproxima-damente) se empenhou na célebre "campanha do bom gosto", ao ser-viço do S. P. N./S. N. I., do regime e da sua "política do espírito". Os grandes marcos dessa orientação, em que Ferro e o grupo de artistas que elegeu se empenharam, foram as Exposições Internacionais de Paris (1937), Nova Iorque e S. Francisco (1939) e a Exposição do Mundo Português (1940).

Noâmbito do seu trabalho como decorador, Bernardo Marques criou ainda (com Keil do Amaral) os cenários para o filme de Chianca de Garcia "Trevo de 4 Folhas" (1936); os cenários e figurinos para os Bailados Verde Gaio,"Um Homem de Cravo na Boca" (1940); os painéis para o Círculo Eça de Queirós (1940). De referir ainda a chefia da equipa de decoradores das 1a,2a e 3a Feira das Indústrias Portuguesas (respectivamente 1949,1950 e 1951), e os desenhos que fez para a decoração dos paquetes "Vera Cruz" e "Santa Maria". Neste período da sua vida, Bernardo Marques dedicou-se quase exclusivamente a esta activi-dade (pontuada pela direcção gráfica das revistas "Panorama" e "Litoral", e pelo seu trabalho de ilus-trador e capista) que lhe absorvia o seu tempo e lhe garantia a sobrevivência. Pouco terá desenhado para seu íntimo prazer, com as excepções dos desenhos dos ambientes de Paris e dos Estados Unidos onde permaneceu por largas temporadas, que manteve secretos. Desta produção específica, por ter uma característica efémera, poucos registos visuais ficaram, consumidos que foram pelo tempo e pelo desprendimento de Bernardo Marques em relação ao seu trabalho.

Nestes "anos de Ferro" das exposições internacionais, do efémero e da decoração, Bernardo Marques conseguiu responder a todo um conjunto de solicitações precisas, ajudado pelas relações de amizade que o uniam a António Ferro e aos seus companheiros de trabalho. Dentro da relativa homogeneidade temática da produção plástica, mais vocacionada para um espectáculo de fácil leitura e entendimento, Bernardo Marques respondeu com eficácia a esta "ordem" imposta aos valores estéticos. "Mas tal como a desordem de Grosz lhe não conviera, esta ordem de agora não podia deixar de ser alheia a Bernardo Marques" (11). E aquando do afastamento de Ferro (1950) que coincide no tempo com a ruptura que o aparecimento do surrealismo significou, Bernardo Marques-que também ao surrealismo foi alheio -estava já concentrado na paisagem, num percurso solitário.

PAISAGEM

A última fase da obra de Bernardo Marques, correspondente aos anos cinquenta (até à sua morte em 1962), a mais íntima, centra-se essencialmente na análise da paisagem. Acompanhada por uma intensa exploração gráfica e por uma nítida necessidade de distanciamento que já se vinham desenhando, a temática foi gradualmente substituindo a análise humana pela análise das coisas, nomeadamente da paisagem, urbana e rural.

A evolução da obra de Bernardo Marques foi acompanhada, tecnica-mente, por importantes variações de registos: de um traço gráfico passou a um registo mais carregado, para finalmente se tornar mais atmosférico nas últímas décadas. Esta última mudança de visão começa por privi-legiar a paisagem urbana onde Lisboa tem assegurado um lugar de especial importância. Depois, percorrendo o país, volta-se para a paisagem rural (e litoral), em errâncias afectivas onde os locais têm um significado especial.

A nova visão da cidade que agora nos interessa analisar é de certa forma anunciada nos desenhos de Paris (final dos anos trinta): o registo tornou-se mais atmosférico e as pessoas tornaram-se apontamentos breves, formas aéreas e ligeiras mais sugeridas do que apre-sentadas; o traço é fino, curto, caligráfico e os pequenos sinais gráficos lembram Dufy. Mas se sinais como estes pontuam os "estados de alma" de Bernardo Marques nos seus desenhos, é em Lisboa - a sua cidade de eleição - que uma mudança visível de relacionamento com o que o rodeia vai ter lugar; é Lisboa e as suas reminiscências que vão despertar os seus sentidos e preparar o seu "retiro". Bernardo Marques alheia-se do contexto vivencial da cidade, preferindo uma abordagem romântica. O crítico social desaparece e as pessoas são remetidas para segundo plano. Bernardo Marques começa a deixar de rir e de sorrir com o que a sua volta se passa para iniciar um percurso de solidão e um novo olhar sobre as aparências. As imagens citadinas que transcreve são apontamentos do seu quotidiano e da sua interioridade. O seu deliberado afastamento do exterior e a demarcação do seu território íntimo são expressos em desenhos feitos na privacidade do seu local de trabalho que ilustram o retiro do artista, os seus objectos familiares. A cidade exterior insinua-se pela janela e revela-nos os locais- sempre tão significativos pela sensibilidade que despertaram: o Tejo, o Príncipe Real e os seus arredores. Estes de- senhos revelam como Bernardo Marques, à maneira de Cesário Verde, descreveu com prazer sen-sorial a sua Lisboa quotidiana, poética e íntima, com um sentido misto de analista rigoroso (ilus-trador de ambientes) e de forte síntese emotiva (escolha afectiva dos locais). Bernardo Marques sempre sentiu uma atracção por um passado que lhe convinha. A discreta evocação do passado, e nomeadamente a abordagem romântica da cidade, é acompanhada por uma riquíssima invenção formal que anula qualquer tentativa de ver nestes desenhos meras composições académicas. A identificação do artista com a cidade fixa-se numa intemporalidade, abstraindo a figura humana; é o tempo, como qualidade física das coisas, que Bernardo Marques capta. Despovoando-se, os desenhos da cidade evoluem do descritivo para o evocativo. A cidade emudece, em função de uma paisagem transformando-se numa malha densa e explosiva de sentidos. Numa quase escrita de arabescos, os signos rápidos e incisivos conjugam-se para revelarem em múltiplos aspectos o renovar incessante da atracção física da cidade. Usando preferencialmente instrumentos de desenho linear e pigmento preto, Bernardo Marques consegue dar efeitos de luz, volumes, brilho e cromatismo notáveis.

Tornando a vivência de mais cidade impossível, solicita-o agora a contemplação da paisagem do campo, onde poderá " sentir-se como as coisas um elemento lírico da terra, sem crítica nem acrimónia..."(12). A sensibilidade expressa nestes desenhos de escrita rápida e leve, a par de um desejo de acabar uma etapa ou de começar outra, vão transpor-se para outra paisagem. De desenhador da cidade, Bernardo Marques vai tornar-se pintor do campo.

A relação de Bernardo Marques com o trabalho, pontuada por crises ou paragens, foi para ele uma questão existencial. Desenhar foi sempre a sua verdadeira obsessão e foi na análise da paisagem que atingiu o âmago das suas possibilidades plásticas. Estes desenhos são momentos pessoais de um encontro face às coisas e às imagens. Foram vários os locais que incentivaram esta reinversão à paisagem da natureza, cada um tendo tido um significado particular, mas todos foram pretextos para a representação de valores mais imateriais e para o apuramento de uma técnica. Retiros como o Marão, Urgeiriça, Abrunhosa, foram locais que o estimularam e onde se refugiava regularmente a partir do início dos anos cinquenta. A Eugaria (onde em 1953 adquiriu uma casa) e os arredores de Sintra ajeitaram-se especialmente ao gosto e sensibilidade do desenhador e deram um significado especial à sua obra.

Bernardo Marques cedo deixou de datar os seus desenhos, mas a produção destes últimos anos vive de uma unidade temática: a análise da paisagem. E, se Bernardo Marques tinha em si a paixão dos sítios (vários outros locais são identificáveis nos seus desenhos que vão das terras do interior ao litoral: Beira Alta, Nazaré, Algarve), estes foram também pretextos para uma riquíssima e constante experimentação plástica. A sua visão do real é agora renovada ao nível de uma técnica que o autor descobre em íntima ligação à natureza. Mais sensível a valores como a forma, os volumes e a luz, os seus desenhos tornaram-se mais sintéticos e depurados. Nos desenhos a tinta-da-china, a delicada caligrafia de signos como que aprisiona a essência da paisagem através de uma sobreposição de linhas e da vibração colorística do preto e branco.

Bernardo Marques capta a visualidade de cada tema e de cada local fixando impressões do instante, numa romântica apropriação de imagens fugidias e num registo febril. Estas imagens situam-se num tempo imobilizado de evocação. Bernardo Marques acaba por assumir uma certa intemporalidade no seu isolamento. Ignorando as formas estéticas do seu tempo, assume uma postura simultaneamente sensível e distanciada, transferindo para a paisagem o seu espaço de intimidade.

Os desenhos de Bernardo Marques, pelo efeito pictórico e pelo poder sugestivo da escrita, mistu-ram-se com as qualidades da pintura. O desenho terá sido para Bernardo Marques a pura manifestação do desejo de pintar, mais do que a aguarela que resulta como um mero substituto. Alérgico fisicamente às tintas a óleo, fez várias aguarelas de paisagens com cor onde existe um equilíbrio cromático. Mas o desenho foi, sem dúvida, a sua possibilidade maior-também de se aproximar da pintura. Bernardo Marques era fundamental e intimamente um desenhador; é no desenho que melhor explora as potencialidades físicas das várias técnicas, é no preto e branco que nos sugere uma vastíssima gama cromática.

Os desenhos de paisagem destes últimos anos, de um naturalismo discreto e de uma sensibilidade ao mesmo tempo impressionista e moderna, fazem de Bernardo Marques o desenhador que melhor interpretou a essência da nossa paisagem urbana e rural.

Texto extraído do catálogo da exposição organizada em Macau pela Fundação Oriente em Março de 1991.0 título é da responsabilidade da revista de Cultura.

NOTAS

(1) José-Augusto França,"Bernardo Marques,1966", in Colóquio, nº38, Abril 1966, p.18.

(2) Julia Leitão de Barros, Os Night-Clubs de Lisboa nos Anos 20, Lisboa, Lúcifer Edições,1990, p.23.

(3) António Pedro,"Saudades de Bernardo Marques", in Bernardo Marques - Obras de 1950 a 1960, Lisboa, F. C. G.,1966.

(4) Maria Helena de Freitas,"Imagens e Miragens de uma década", in O Grafismo e a Ilustração nos Anos 20, Lisboa, F. C. G/ C. A. M.,1986.

(5) Manuel Mendes,"Bernardo Marques e o Drama da sua Obra", in Eva, nº1090, Novembro 1962.

(6) David Mourão-Ferreira, Saudades de Lis-boa, Prefácio, Lisboa, Estúdios Cor,.1967, p.10.

(7) Fernando Guedes,"Bernardo Marques, in Colóquio, nº55, Outubro 1969, p.9.

(8) Alfredo Marques," Evocação de um Grande llustrador", in Diário Popular, 24 de Março,1966, p.5.

(9) Bernardo Marques,"O Livro Artístico", in Irene Lisboa, Inquérito ao Livro em Portugal, Lisboa, Seara Nova,1946, pp.84-85.

Idem, p.82.

(11) José-Augusto França,"Bernardo Marques,1966"in Colóquio, nº38, Abril 1966, p.21.

(12) António Pedro "Saudades de Bernardo Marques", in Bernardo Marques- Obras de 1950 a 1960, Lisboa, F. C. G.,1966.

desde a p. 167
até a p.