Ensaios

A "MULHER" 女 E AS SUAS VARIAÇÕES SEMÂNTICAS NA ESCRITA CHINESA

Maria Trigoso*

Os chamados radicais, na língua chinesa escrita, para além da sua função linguística de indicadores se-mânticos, podem ser olhados, também, do ponto de vista da cultura. Em grande parte deles, a ligação é óbvia e concreta, como no caso do radical "água" 氵, em caracte-res com significados líquidos, ou do radical "ervas"艹, em caracteres com significados florais ou vegetais, etc. Noutros caracteres, sobretudo nos que designam con-ceitos abstractos ou sentimentos, a presença dos radicais pode revelar muito da mentalidade cultural subjacente, ou formadora, da língua.

A grande maioria dos caracteres chineses são for-mados por dois componentes, um indicando, aproxima-damente, o som, e o outro, o sentido. A língua chinesa escrita, originalmente constituída por pictogramas (de-senhos representando os objectos) e ideogramas (dese-nhos simbolizando ideias), à medida que se foi desenvol-vendo e enriquecendo, foi passando a assentar numa base fonética. Base fonética essa que, em vez das letras dum alfabeto (designando sons isolados), usa caracteres, que indicam o som duma sílaba.

Em termos gerais, pode-se dizer que o chinês, a dado momento da sua evolução e mercê de muitos fenó-menos de simplificação linguística, passou a comportar um número demasiado elevado de palavras, monossilá-bicas, exactamente com o mesmo som, mas com senti-dos diferentes. É evidente que quando a situação de ho-mofonia começou a pôr em risco a própria eficácia da comunicação, o génio da língua inventou maneiras para remediar a situação.

Foi um processo verificado ao nível da fala, mas que se reflectiu na escrita. Se havia dez palavras com o mesmo som, essas dez palavras foram, incialmente, es-critas com o mesmo caracter.

É a maneira de resolver as questões da "homo-grafia", decorrentes da homofonia, que interessa para a análise dos chamados radicais. Enquanto componentes semânticos dos caracteres, eles são, por natureza, mu-dos. A sua presença, ao lado do componente que fala, ou fonético, indica o campo semântico do caracter.

O verbo deng 登 significa "ascender" (ver qua-dro 1). É uma sílaba no primeiro tom. Exactamente a mesma sílaba, isto é, o conjunto de inicial consonântica, final nasal e tom, primeiro, quer dizer também "lâmpa-da". Mas também é o verbo "calcar". Outra sílaba, por-que no quarto tom, mas com a mesma inicial d e a mes-ma final eng, significa "olhar com os olhos muito aber-tos". Oralmente, só o tom distingue os primeiros três deng do quarto. Porém, a nível da escrita, há quatro ca-racteres diferentes: deng 登, caracter sem radical, cuja forma vai servir de símbolo fonético; com o radical "fogo" 燈 indica a lâmpada; com o radical de "pé" 蹬 é o verbo "calcar"; e finalmente, o radical "olho" 瞪 indi-ca uma actividade ligada ao olhar.

Se quiséssemos encontrar um paralelo, teríamos o caso de "rio" que, ouvido isoladamente e fora de contex-to, não permite saber se é o "rio" de "rir", ou de "Tejo".

Podemos distingui-los, à chinesa: antepondo à forma verbal, por exemplo, boca 口 (ver quadro 2), for-mando uma nova palavra escrita, "boca-rio". O curso de água pode ser marcado pela água 氵, o que dá origem a outra palavra escrita, "água-rio".

Pelos dois exemplos, de deng e de "rio", um real ou-tro inventado, se poderá ver como a tradicional designação de "radical" é particularmente mal escolhida. Efectivamen-te, aquilo que se quer aproximar da ideia de raiz, longe de estar no início, é um acrescento tardio, linguagem falada. Utilizemos a designação tradicional no Ocidente, "radicais" ou, a mais correcta, "componentes semânticos", o que aqui interessa é olhar para as razões subjacentes à sua escolha.

Se para o "rio, curso de água", a escolha da "água" era bastante inevitável, em qualquer tempo ou em qual-quer local, já para o "rio de rir" se pode objectar se "boca" é a ideia mais adequada para denotar o riso. Porque não os dentes 牙, ou outras visualizações-objectivizações? Porque não o coração 心, implicando mais a ideia de sentimento do que de movimento?

O que interessa realçar é que, neste processo de concretização do abstracto, que no fundo é o que está em jogo, os componentes semânticos escolhidos, não só não são inocentes, como estão longe de constituir universais de qualquer espécie. Pelo contrário, subjacentes à asso-ciação que eles estabelecem, entre o seu próprio signifi-cado e o significado do caracter global, estão convenções culturais, pressupostos mentais específicos duma visão do mundo, particular à língua-cultura em questão.

E por isso que a LEITURA do radical mulher, na língua escrita chinesa, se pode revelar tão interessante, do ponto de vista cultural.

A chamada simplificação dos caracteres, levada a cabo na R. P. C., em 1956, pode, em certos casos, ser escla-recedora. Ainda que as alterações, a nível dos radicais, tenham sido poucas, podemos verificar como a troca, dum caracter por outro, representa sempre mais do que a mera substituição duma forma gráfica por outra. Ainda que ocorrida no âmbito, mais estreito, da linguística, a verdade é que a opção entre realidades concretas, com a finalidade de tomar visível um conceito abstracto, na medida em que não pode fugir a uma visão do mundo, passa-se ao nível mais geral da cultura.

Em caracteres complicados (usados em Taiwan, Hong Kong e Macau), rong escreve-se com o radical "fogo" 火 (ver quadro 3), aliás repetido. No processo de redução do número de traços, passou a ser escrito com o radical de "ervas" (ou "flor") 艹. Constatamos assim que a ideia de "esplendor-glória", significados do carac-ter, são, na língua-cultura chinesa, susceptíveis de ser denotados e conotados, quer pela imagem do fogo quer pela imagem da flor. A "leitura" comparada dos dois radi-cais, quer dentro da visão do mundo chinesa, quer das línguas ocidentais, não parece ser muito produtiva. Em termos de diferenças.

O mesmo não se passa no campo semântico da Mulher.

O caracter nu 女(ver quadro 4), além de existir na sua forma plena, isto é, sozinho, em palavras como nuren ou funu, funciona também como componente semântico. O exemplo clássico é o ma 媽"mãe". Pode também funcionar como componente fonético, indican-do, justamente, a pronúncia do caracter, como por exem-plo, com o componente semântico de metal 金, signi-ficando "neodímio".

Todas as listas de caracteres, com o componente semântico nu, apresentadas nos dicionários, misturam, sempre, duas realidades que, contudo, podemos distin guir. A saber: todos os caracteres que, como "mãe", "be-bé", "tia", "prostituta", "leite", etc, têm um significado, concreta, universal e necessariamente, ligado à realidade da mulher. Em oposição a estes, aparecem os caracteres cujo significado não tem uma evidência imediata, nem, por vezes, qualquer relação com a realidade da mulher.

Face a miao 妙 "elegante", é relativamente fácil, a um ocidental, "perceber" a ligação entre a ideia do feminino e as ideias de "elegância-belo-juventude", al-guns dos seus significados. Ainda que, evidentemente, estejamos perante um dado das culturas (chinesa e oci-dental), e não da biologia do sexo feminino. Já perante xi 嬉 "brincar", a mulher deixará os ocidentais surpreen-didos. Ou yu 娛"divertir-se—dar prazer". E será em fun-ção dos seus próprios pressupostos culturais que farão a leitura do sentido mulher para indicar os sentidos de brincar e dar prazer. Sabendo até que ponto foram os homens, não foi o Homem, que fizeram a língua, pelo menos a escrita, ver uma mulher a denotar a brincadeira dá imediatamente para pensar como se pensa na mu-lher... Associações, que alguns chamarão de chavões, género da mulher como objecto de prazer dos homens, sem a necessária e democrática correspondência vice-versa, são inevitáveis. Haverá até quem vá mais longe, interrogando-se sobre o significado da ausência dum componente semântico indicando o masculino.

Haverá, é claro, que questionar os pressupostos das nossas interrogações. Até que ponto correspondem aos pressupostos alheios, subjacentes à escolha daquele componente semântico para aquele significado. Tentare-mos pôr-nos em causa, imaginando, por exemplo, que a mulher foi ligada ao brincar por se tratar duma activida-de infantil. Actividade de que a mulher, enquanto mãe, é também protagonista, actividade que a mulher, enquanto mãe, protege. Além das associações que conseguimos fazer, no contexto da nossa língua-cultura, entre um e outro sentido, outras haverá, decerto, que não nos ocor--terão, porque só podemos imaginar aquilo que a nossa própria visão do mundo nos permite.

Sobre a impossibilidade linguística do caracter "homem", nan 男, funcionar como componente semân- tico, isto numa língua-cultura cujo par yin-yang é a reali-dade primeira em termos culturais e filosóficos, parece mais difícil formular interrogações. Sobretudo para quem é oriundo de línguas-culturas como as ocidentais, nas quais uma parte da humanidade, a masculina, se toma pelo todo. Obrigando a outra parte, feminina, a definir--se como Homem.

Comparando os dois caracteres, constatamos que mulher é um caracter simples, não decomponível em partes. Enquanto PICTOGRAMA, ele pretende repre-sentar, visualmente, a forma duma mulher. De joelhos, explica a História da Língua Chinesa. Em contrapartida, homem é um IDEOGRAMA, logo representa, concep-tualmente, uma ideia. Através da junção dos conceitos de "campo" 田 e "força" 力. Assim, ao concreto visual-mente materializado do corpo da mulher, opõe-se o abs-tracto idealizado do conceito de homem. A mulher é um desenho primário, indecomponível, o homem um dese-nho secundário, logo decomponível em partes-caracte-res. Ora, na escrita chinesa, só os caracteres primários são usados como indicadores semânticos. O caracter "homem" não pode, pela sua própria natureza, gráfico-linguística, funcionar como radical.

A "pessoa", ren 人, representa a figura huma-na, podendo funcionar como caracter isolado, forman-do palavras como nuren ou nanren. Ou como compo-nente semântico de caracteres, nos quais indica as multas e variadas actividades do domínio do humano em geral.

Ao contrário do que se passa nas línguas ociden-tais, é o ren-pessoa, que forma, por justaposição, como é de regra na formação das palavras chinesas, todos os vo-cábulos designando, ao mesmo tempo, as duas metades do todo humano, como humanismo, humanidade. Em contexto linguístico algum encontramos o "homem" ã designar algo que seja comum aos dois campos semânti-cos. Igualdade de base, portanto, entre os sexos.

A par, talvez, duns sobejos duma prioridade fe-minina: a existência de caracteres, de significados, natu-ral e irremediavelmente masculinos, denotados pela mu-lher. Designam relações de parentesco, xu 婿"genro", e zhang 嫜 "sogro" - pai do marido (ver quadro 5).

Postos a par de xing 姓 "apelido", e shan嬗 "evoluir-passar aos descendentes", também marcados com o radical mulher, parecem ser fósseis linguísticos da antiga sociedade matriarcal chinesa.

Uma primeira e provisória hipótese, postulada a partir dos diferentes graus de visibilidade dos dois sexos, na escrita chinesa: enquanto que a mulher é, sobretudo, um corpo, MATÉRIA, yin, o homem é, principalmente,-uma ENERGIA, yang.1

Ou, porque o homem foi o criador da escrita, a mulher foi criada, enquanto radical.

O Xin xiandai hanyu cidian inclui duas centenas de caracteres com nu como componente semântico. Excluindo a cerca de metade que diz, concretamente, respeito ao feminino, ficam outros cem. A sua análise in-dica que a mulher foi usada, sobretudo, para denotar atri-butos físicos ou psíquicos, acções, sentimentos e concei-tos, tidos como POSITIVOS: os significados de cerca de 50 caracteres são do campo do "belo-bom-gracioso-favorável-segurança-doçura-paz-gostar". Paradigmático desta visão é o ideograma e 娥, adjectivo feminino "bo-nita", e o substantivo "mulher bonita", formado pelos caracteres "mulher" e "eu" (女 e 我).

Os significados dos 50 restantes contradizem esta primeira evidência.

Meia dúzia de caracteres com os significados de "hesitante-prudente-envergonhado-virtuoso-honesti-dade", decorrem, naturalmente, do mesmo sentimento linguístico-cultural, subjacente aos primeiros, ligados ao bom e ao belo. Estão numa zona de transição.

Caracteres como ru 如, wei 委 e wei 娓 que, entre os seus significados, contêm os de "conformar-se- obedecer", fazendo ainda parte do processo de idealização da mulher, em função do princípio do prazer do homem, constituem, já, algo que cria as condições para uma alte-ração qualitativa, em termos do princípio da realidade, do POSITIVO para o NEGATIVO. Não é, decerto, em todos os contextos, que a submissão é um bem para quem se submete, nem será em todas as situações que, quem obe-dece se valoriza, sobretudo aos olhos de quem manda...

Diferentemente do campo positivo, o campo ne-gativo parece dispersar-se por mais significados.

Para além do caso isolado, caso antípoda, dum caracter com o significado de "feio" (outro com o senti-do de "estupidez", chi媸), temos o exemplo paradig-mático deste outro lado da lua, emjian 奸, com os sig-nificados de "desleal-artimanha-demónio-mau. A for-ma não simplificada escreve-se com três mulheres 姦(ver quadro 6). O número três, tendo o sentido de muitos, é frequente como método de formação de caracteres com significado colectivo.

A reforma ortográfica, que simplificou os caracte-res no seu número de traços, transformou-o num compos-to fonético semântico, formado pelo radical mulher, para indicar o sentido, e pelo caracter que indica a pronúncia.

O hábito, pelo menos atestado no Sul, de usar o caracter simplificado para designar os sentidos referidos, e a forma complicada para designar o sentido de "vio-lar", parece sugerir que os falantes, neste caso, os escre-ventes, têm consciência do que é que está em jogo, em excesso, no ideograma. Aproveitando-o, em termos de expressividade gráfica, um processo que só a escrita chi-nesa permite.

Outro exemplo de como as simplificações foram, por vezes, mais do que meramente linguísticas. Na me dida em que os linguistas parecem ter procedido a uma Releitura dos componentes semânticos, reordenando-os de modo mais consentâneo com o seu momento históri-co. Não é seguro que seja mais rápido de escrever, ou mais fácil de decorar, esta forma 懶do que esta 嬾, as grafias de lan, "preguiçoso" (ver quadro 7). Na R. P. C., em plena revolução socialista, glorificadora do trabalho, o antigo radical, que ligava a preguiça à mulher, foi muda-do para coração-mente. Um sinónimo, duo 媠, talvez por ser de uso menos corrente, mantém ainda a sua anti-ga grafia. No dicionário, porque entre os falantes-escre-ventes, já vi proceder à mesma substituição, da mulher pelo coração-mente.

A "teimosia" também terá sido vista como típico das mulheres, uma vez que existe xing 婞com esse signi-ficado. Também conotada com a mulher será a "avidez", dada a existência de lan 婪 e fu 妋. Tal como a "arrogân-cia", wang 妄, e a "superficialidade-frivolidade", em pie 嫳.

Os "ciúmes-inveja", 嫉, du 妒e mao媢, são sentimentos marcados pela mulher, ao contrário da gran-de maioria dos sentimentos geralmente marcados pelo componente semântico de coração-mente. Xian 嫌, "de-testar-suspeitar-ser tabu", também tem o componente se-mântico mulher. Tal como vários verbos com significa-dos de "ferir-impedir-perturbar-confundir-negligenciar-insultar", 妨, 嫚, 嬈.

Apesar da dificuldade de, em chinês, falar com rigor em classes gramaticais de palavras, fora do contex-to da frase, talvez seja possível pensar se os exemplos referidos não sugerem diferentes relações, entre o com-ponente semântico mulher, e o significado do caracter completo, consoante se trata de um verbo ou de um adjec-tivo. Quando se indica um atributo, mau ou bom, a mu-lher parece funcionar como a sua alegoria. Já nos verbos, a mulher parece ser o objecto dum agente ausente grafi-camente, mas presente no significado da acção denotada pelo caracter. Com excepções decerto, nem que mais não seja no "ter ciúmes", que, na sociedade tradicional chi-nesa, deveria ser, sobretudo, reservado às mulheres...

Já vimos que a mulher é sentida, antes de mais, como um corpo. Sem o correspondente, e equivalente linguístico, corpo do homem. Daqui decorre que é esse corpo, na verdade, o único existente para denotar a se-xualidade em geral. Por aqui se explicará li 娌"casal", hun 婚 "casar", e yin 姻"casar-relações por casamen-to", significados necessariamente partilháveis pelos dois se-xos. Qu娶 é um ideograma com o significado de "ca-sar", mas só utilizável pelos homens, feito pela junção de "tomar" e "mulher". O correspondente feminino, jia 嫁, é formado por "casa-família" e "mulher" (ver quadro 8).

A mulher denota também o excesso de sexuali-dade: xie 媟 "indecente-obsceno" e yin 婇 "lascívia-excessivo". Outro yin 淫, com o mesmo significado, escreve-se com água, em vez de mulher...

A oscilação entre olhar a mulher como figura posi-tiva ou negativa pode cristalisar num mesmo caracter. Per-correndo os vários significados de yao 妖, vemos da pos--sibilidade em incluí-lo na lista dos positivos, pelo seu sen-tido de "belo", como na lista dos negativos, pelo seu signi-ficado de "demoníaco". Não é o único caso, este, que pare-ce confirmar o que nos mostra muita da Literatura tradicio-nal chinesa — a ambivalência da relação do homem com a be-leza da mulher. Muito desejada e particularmente temida.

Nada que pareça, aliás, radicalmente diferente da ambivalência, que o mesmo símbolo masculino, a MU-LHER, apresenta nas nossas línguas-culturas ocidentais, também em permanente flutuação, ou tensão, entre a idealização e a merdificação. 2

Olhando niao 嬲 (ver quadro 9), será fácil ao lei-tor decompô-lo: uma mulher entre dois homens. O signi-ficado, namorar. Os ocidentais perguntarão, talvez, quem namora quem. E o facto da mulher estar com dois homens, terá ver com a avidez, já referida como seu atributo? Ou é antes a avidez, dos homens em geral, pela mulher, o que está subjacente ao número plural de homens? Como expli-car o outro significado de "provocar-arreliar"? Confunde ou esclarece a relação no interior do triângulo amoroso?

A ligação entre o "brincar", o "brincar-namorar" e o "brincar-arreliar" aparece também em xi 嬉, mais discreto graficamente (os homens estão ausentes, como é habitual). Tudo depende do morfema a que é justapos-to para formar uma palavra.

A contaminação entre o sentido de brincar, e o de namorar, é ainda visível em shua-耍, ideograma forma-do por uma metáfora do masculino, 而("pelos das maçãs do rosto", escreve o dicionários, e pela representação do corpo feminino, 女.

E será a contaminação entre os sentidos de brin-car e arreliar que explica a presença da mulher em shan 姍, suo 娑, com os significados respectivos de "satiri-zar" e "atormentar".

Parece, assim, ser possível acentuar que, não tendo sido as mulheres a fazer a língua, nomeadamente a escrita, o seu imaginário próprio ficou de fora. E que é, portanto, enganadora a grande presença da imagem do seu corpo.

Quem poderá saber o que teria acontecido, se, por absurdo, as mulheres tivessem tido o poder de inven-tar a escrita de coisas por elas nomeadas? Teriam usado o homem como componente semântico de que desejos e de que medos? Uma coisa é certa: à semelhança do que aconteceu com os homens, elas ter-se-iam projectado nas suas escolhas linguísticas. E seria, agora, um homem que se dedicaria, sem escândalo, a LER-SE na imagem gráfica do seu corpo desmultiplicado.

Na realidade não foi isso que aconteceu. E só por isso a mulher chinesa, há milénios que se deixa fazer, refazer e desfazer, forçada a entrar em caracteres, com cujos sentidos já não tem, ou nunca teve, nada a ver.

Também no Ocidente mulher alguma se identi-ficará, naturalmente, com a palavra Homem, que evoca, obviamente, associações masculinas. Daí o sentimento de estranheza que sentimos em expressões do género de "o Homem tem dificuldade em dar à luz". E, no en-tanto, é esta a única palavra, bem como as suas deri-vadas, "humano", "humanidade", etc., de que a mulher dispõe para se definir a si própria e aos seus interesses vitais.3

Ainda que tenha de esquecer a distorção, sob ris-co de perturbar a sua auto imagem. Tal como terá de pôr de lado a consciência da natureza do terrorismo linguís-tico cultural que representa o facto de ter de converter a mãe e a filha, ou as 2 000 operárias duma fábrica, em "ELES", mal entre ELAS se intrometa alguém do sexo masculino, mesmo um bébé recém-nascido.

E assim, a dissolvente presença do sexo masculi-no, nas línguas ocidentais, não parece mais reveladora da relação de poder homem-mulher, do que a sua ausência na escrita da língua chinesa. A verdade é que, em ambas, o sentido do masculino é sempre o olhar, nunca aquilo que é olhado.

Texto apresentado em Maio, no Porto, ao II Con-gresso Internacional da Associação Portuguesa de Lite-ratura Comparada.

BIBLIOGRAFIA

DALE, Spender, Man made language, London, Routledge and Kegan Paul, 1981.

MUSSAT, Maurice, Sou nu king, Paris, Seghers, 1978.

WANG Tongyi, ed., Xin xiandai hanyu cidian, Haikou, Hainan, 1922.

NOTAS

1 Assim formulada a questão, ocorre a distinção, esta-belecida por Maurice Mussat, em Sou nu king, entre "criação e criatividade, na qual se volta a encontrar a dualidade yin-yang, correspondendo, respectivamente, à matéria e à energia." Mussat acentua que "a criação implica a fecundação (...) no seu aspecto matéria yin, enquanto que a criatividade implica o espírito, a inteligência, a imaginação, que é a parte yang do mesmo sistema Chao Inn Tchong Mo." E o autor francês conclui que isso expli-ca a consideração que na China se tinha pela arte e pela poesia (Mussat, 1978, p. 17).

2 Há, evidentemente, importantes diferenças. Sendo a noção de sexualidade, um dos parâmetros fundamentais dos dados tradicionais da cultura chinesa, ela tem um sentido mais lato, e, sob vários pontos de vista, diferente, da do Ocidente. A visão da relação sexual, para além do seu aspecto de fecundação, já de si tão importante, em termos filosóficos, tem também o seu lado de verdadeira actividade benéfica para a saúde e, para a longevidade. A ideia tradicional de que, durante o coito, o homem, yang, tem a possibilidade de se abastecer na nulher, yin, do yin que lhe falta, enquanto que a mulher pode assimilar em si a energia, yang, libertada pelo homem durante o orgasmo, parece perdurar, ainda hoje. Cito parte dum artigo, sobre modos de evitar o cancro, publicado a 13 de Outubro de 1994, pelo jor-nal "Guanzhou Wen Zhai". Entre o comer soja e legumes, dormir bem, etc., escreve: "Para as mulheres já casadas, o esper-ma do marido pode baixar o nível hormonal, o que ajuda a evi-tar os tumoros do foro ginecológico."

3 Na prática, a assumpção sexista de que o Homem é uma espécie de machos torna-se um facto. Erich Fromm decer-to que pensava assim quando escreveu que "os interesses vitais do Homem são viver, comer e ter acesso às mulheres" (Dale, 1981, p.155).

*Estudiosa da Língua Chinesa.

desde a p. 15
até a p.