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SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Jorge Morbey

O acto de criar tem sido, em todos os tempos, o modo mais puro do exercício pleno da liberdade. Ainda que encarcerado, o indivíduo é livre de pensar e, por isso, de criar. A criação intelectual é, por natureza, livre.

Quando o artista cria, nenhum tipo de limites exteriores sujeita o seu pensamento criador (1).

Todavia, como o intelectual ou o artista são indivíduos situados por coordenadas de espaço e de tempo - Sociedade e Cultura - o acto de criar está intimamente associado aos limites intrínsecos da sua personalidade, moldada pela envolvente matricial de origem, na ordem moral, ética, estética ou ideológica (2).

O intelectual ou o artista assumem-se, em regra, por uma de três vias:

- Pela adesão aos valores matriciais de origem: o produto da sua criação é a representação daquilo que os envolve;

- Pela contestação limitada ao meio envolvente, através da crítica a alguns dos valores instalados, normalmente os socialmente aceites como mais obsoletos, daí lhes advindo a simpatia dos estratos mais progressivos da sociedade e a antipatia dos meios mais retrógrados;

- Pela contestação global, do protesto ao combate, associada usualmente aos movimentos de ideias teorizadoras de modificações sociais violentas de índole revolucionária (3).

Sendo o pensamento e a criação actos individuais e livres, por pertencerem ao foro exclusivo do seu autor, nenhuma produção intelectual ou artística deve ser impedida por terceiros de atingir a audiência a que aquele a destinou (4). Esta é a única instância de apreciação e julgamento: que aplaude, reprova ou se queda indiferente.

Em regra, cada obra intelectual ou artística recolhe simultaneamente aqueles três tipos de reacção da opinião pública, dependendo o seu sucesso ou fracasso do agrupamento maioritário, favorável ou desfavorável, da crítica.

Muitas vezes, os intelectuais e os artistas não recebem da sociedade de que são contemporâneos o justo reconhecimento do mérito das suas obras. Pertencem ao número, restrito em cada época, daqueles que anteciparam o futuro de modo incompreensível para a sociedade do seu tempo que, por isso, os não aceita mas que, passadas gerações, os reabilita e aplaude.

Importa não confundir este fenómeno autêntico de disfunção, entre o agente criador e a sociedade de que é contemporâneo, com o falso alibi, muito em voga no nosso tempo, que pretende fazer passar a mediocridade própria por produção cultural destinada não ao presente mas ao futuro.

O quadro que se traçou, até aqui, respeita às sociedades culturalmente homogéneas e politicamente organizadas em sistema de democracia formal.

Nas sociedades instituídas sob poder político não democrático, como as velhas sociedades de regime monárquico absoluto e as de ditadura de partido único, o poder recorre invariavelmente a instrumentos de repressão da liberdade de expressão eufemisticamente apresentados como mecanismos de protecção da sociedade, sediados modernamente no próprio aparelho do Estado ou colocados na dependência de instituições poderosas, como foi o caso da função repressiva e censória da Igreja Católica, durante séculos, nos países católicos de regime monárquico absoluto.

Em tais sociedades - antigamente em nome de Deus e modernamente em nome da Revolução ou da Tradição - toda a produção artística ou intelectual que não se enquadre nos limites consentidos pelo poder é sujeita a um tratamento radical: apreendem-se ou destroem-se as obras; prendem-se ou matam-se os seus autores.

Tais mecanismos de repressão da liberdade de expressão, eliminados da esfera do Estado quando as sociedades se organizam democraticamente, transferem-se para a Sociedade Civil onde se alojam nos sectores de opinião marcados pelas correntes de pensamento com as quais se sentem afins.

Dois sectores da sociedade estão vocacionados para hospedeiros dos mecanismos repressivo-censórios da liberdade de expressão. São eles convencionalmente designados um, como conservador ou de direita; o outro, progressista ou de esquerda.

Naturalmente que se excluem desses dois segmentos da sociedade os sectores aderentes às correntes de pensamento designadas por socialismo democrático e social-democracia que para além de aceitarem as regras em que se funda o Estado democrático lhes guardam respeito.

Resulta, assim, que mesmo as sociedades organizadas em sistema de democracia formal não estão incólumes à existência da censura e da repressão da liberdade de expressão no seu seio. Não na esfera do Estado, mas a nível da Sociedade Civil. Não necessariamente em forma de estrutura organizada, mas como sentimento organizável a partir de determinadas estruturas da Sociedade Civil.

Este sentimento repressivo-censório tem, no primeiro caso, as suas raízes na repressão da liberdade, pelo poder, exercida directa ou indirectamente, durante séculos. É um sentimento que jaz adormecido na parte do inconsciente colectivo de pendor mais retrógrado. Desperta quando se confronta com uma produção intelectual ou artística conflituante com o seu próprio quadro de valores: morais, éticos, estéticos ou ideológicos; mas também quando pressente ou verifica a indiferença e a rejeição de determinada obra afeiçoada ao próprio quadro de valores que cultiva.

Agita-se, qual trauma de orfandade, na busca inconsciente e estéril de uma força tutelar que reprima e censure a produção portadora do quadro de valores antagónico, ou proteja e apoie e exalte a que veicule o quadro de valores que se professa.

Mas, além do sentimento repressivo-censório de pendor retrógrado, as sociedades formadas segundo o modelo da democracia formal contêm contraditoriamente no seu seio um outro de origem diversa, já não no domínio do inconsciente colectivo, mas que permanece desperto e actuante e tem as suas raízes nas ideologias que enformam os regimes monolíticos. Entra em conflito com a sociedade e com a produção intelectual e artística que não respeita os seus próprios cânones, não de ordem moral, ética ou estética, mas por via de motivações políticas e ideológicas. Classifica-se a si mesmo de progressista e dispensa, ao mesmo tempo que recebe, forte animosidade ao inconsciente colectivo de pendor retrógrado. Não pactuam, e, muitas vezes, não se afrontam. Cada um, por seu lado, visa atingir o poder político democrático que a ambos desgosta por não estar exclusivamente ao seu serviço mas de cuja liberdade beneficiam para o atacar.

Significa isto que a chamada "opinião pública" muitas vezes se mobiliza ou é mobilizada pelos agentes que a modelam, não em função de princípios gerais e abstractos de liberdade de expressão, mas segundo a conveniência em veicular o quadro de valores que se perfilha ou em combater outro que dele diverge ou a ele se opõe.

No fim de contas, não é a liberdade de expressão que se defende, mas apenas a liberdade para aquilo de que se gosta, ou que convém erigir como arma para brandir ao serviço de interesses de grupo, formados na base de afinidades ideológicas, políticas, religiosas ou outras.

E como não se trata de defender a liberdade de expressão mas sim de a usar em proveito próprio e contra o poder político democrático, apela-se à censura e à repressão contra aquilo de que não se gosta, não interessando já a invocação dessa mesma liberdade de expressão que se quer para si mas se contesta se exercida por outrem.

Assim se compreende a contradição que existe quando, por exemplo, os mesmos sectores de opinião que protestam contra o facto de uma entidade recusar, não impedindo, a edição em livro de uma obra, protestem contra a exibição de uma outra em filme.

Mandaria a coerência, se se tratasse da autêntica defesa da liberdade de expressão, que em circunstância alguma houvesse apelo ao exercício da censura...

De solução simples nas sociedades de poder político totalitário e relativamente complexa nas sociedades organizadas em regime de democracia formal, a questão da liberdade de expressão torna--se extremamente complexa nas sociedades culturalmente heterogéneas que, simultaneamente, se organizam em regimes formalmente democráticos.

Abordaremos este aspecto em próxima oportunidade pelo seu interesse e actualidade no que se refere a Macau, procurando interpretar as questões que se colocam ao exercício da liberdade de expressão e no que se refere à posição do Estado face à dinâmica da criação e expressão intelectual e artística.

Jorge Morbey

Presidente do Conselho Directivo do Instituto Cultural de Macau

NOTAS

(1) "O processo artístico em geral pode dizer-se que consiste em dois processos: o imediato e essencial, que foi sempre conhecido pelo nome de inspiração e que psicologicamente caracterizamos como um acesso a camadas mais profundas do inconsciente; e um processo secundário de elaboração em que as percepções e intuições essenciais do artista estão urdidas num tecido que pode ocupar o seu lugar na vida organizada da realidade consciente".

Read, Herbert: "A Arte e a Sociedade", Ed. Cosmos, Lisboa 1946.

(2) "Ninguém negará as profundas inter-relações entre o artista e a comunidade. O artista depende da comunidade - vai buscar o seu tom, o seu ritmo, a sua intensidade à sociedade de que é membro. Mas o carácter individual da obra do artista depende de mais do que isso: depende de um desejo de forma bem definido que é um reflexo da personalidade do artista, e não existe arte importante sem este acto de vontade criadora".

Read, Herbert: "O Significado da Arte" - Ed. Ulisseia, Lisboa.

(3) Há na arte de hoje muitos movimentos de transição, e existe, naturalmente, um corpo de artistas oposto a qualquer movimento. Mas simplificaria a nossa discussão dividir todos esses variados movimentos e exemplos em três grupos gerais, a saber:

I - Arte Académica Burguesa

II- Arte Revolucionária

III - Arte Funcional

O segundo grupo pode ainda subdividir-se em:

1) tipo expressionista; 2) tipo super-realista; 3) tipo abstracto ou não-figurativo. Dividindo assim este grupo intermediário ser-nos-á mais fácil passar das concepções de um grupo para as do outro.

Read, Herbert: "A Arte e a Sociedade", Ed. Cosmos, Lisboa 1946.

(4) "1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais.

4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos".

(ARTIGO 37° da Constituição da República Portuguesa).

desde a p. 9
até a p.