Macaenses / Antologia

A POPULAÇÃO DE MACAU GÉNESE E EVOLUÇÃO DE UMA SOCIEDADE MESTIÇA

Almerindo Lessa*

Quatro décadas depois do assentamento da ci-dade o número de mestiços era já elevado. O que se compreende. Cem anos passados sobre a chegada de Jorge Álvares, não haveria ainda em toda a cidade uma mulher nascida na metrópole e verdadeiramente só com o advento da navegação a vapor chegariam algumas; recorde-se também que os casados, tendo viajado sem suas donas, ou vivendo com elas, dispu-nham, ainda de escravas, pretas ou não, que emhora destinadas para o serviço doméstico lhes iam, nos intervalos, dando alguns filhos. O hábito vinha de longe, do nosso temperamento, do erotismo dos Trópicos, e exultava com a calma molente da enseada, máxima naquelas noites de luar, únicas no mundo, em que toda ela fica pintada por uma excitante poei-ra lilás. Depois, os modos chineses dobravam a exaltação dos sentidos: «são muito dados às delícias da carne; o mais tempo gastam em banquetes e nes-sas delícias»1.

«[...] Tão devotos são a Vénus, que tém in-ventado novas formas de lhe sacrificar» referia D. Jerónimo Osório2, acrescentanto: «dizem que con-sultam os demónios», e Fernão Mendes descrevia os palácios de Nanquim com este remate: «E ali se acham câmaras onde há leitos de prata e dosseis de brocado. E todo o serviço se faz com moças virgens muito formossas»3. Além disso eram meigas, enla-çando os homens com uma ternura cuja fama chega-ria a Pierre Loti.

Não se punha, como na sociedade brasileira escravocrata daquela mesma época, a necessidade de auxiliar as explorações agrícolas com braços ti-rados dos ventres das escravas; não eram já, como nas ilhas de Cabo Verde, as mulheres procurando o amor de um homem branco afim de terem filhos dele e por eles ou pelo casamento uma promoção social. A terra era pouca e menor ainda a sua agri-cultura: a única ocupação era o comércio. A vida escoava-se entre jurubaças e chincheios. Em casa os filhos nasciam como as flores nascem nas coli-nas, prodigamente, como consequência fatal do amor ou do simples pólen erótico. E nasciam mes-tiços.

O holandês Jan Huygen van Linschoten4 en-contra em 1596 «a ilha e cidade de Macau habitada por Portugueses misturados com Chineses[...]»; portugueses casados, comenta Carolina Michaelis de Vasconcelos5, quer dizer «cidadãos» e «não sol-dados». No Sul da China, em plena zona tropical, tínhamos criado um «caramuru» plebeu.

À falta de mulheres brancas da metrópole aquelas que connosco mantinham relações mais ou menos legais eram malaias, chinesas, hindus e al-gumas mestiças mas só depois. Houve mesmo al-guns casamentos com japonesas tanto mais que também lá no Japão-eram frequentes («a Cristanda-de que os portugueses tinham antigamente neste império do Japão era muito grande e estendida por todo ele com muitos casados com mulheres japone-sas, e já quase feitos naturais»)6, mas devem ter sido em número escasso, pois só a partir de 1614, ano do primeiro êxodo da sua cristandade para Ma-cau, tomaram importância. Tanto assim que, no ano de 1636, recebeu 287 mulheres e crianças, par-te delas mestiças luso-nipónicas, expulsas de Nagasáqui; e outra leva em 1638. A lista dos de-funtos seculares enterrados até ao ano de 1742, dentro da antiga igreja do Colégio da Madre de Deus, vulgarmente chamado de S. Paulo, indica que algumas dessas mulheres, se não todas, estive-ram casadas com portugueses7.

Registaram-se também cruzamentos com ne-gras, porém espúrios, só entre as classes mais po-bres, pois mesmo com mulheres alforriadas deveri-am na China mostrar-se biologicamente anti-natu-rais e socialmente como que anárquicos; no século XVIII ainda podia ler-se no Ou-Mun-Key-Léok: «quanto às mulheres há duas espécies, brancas e negras, dispondo-se respectivamente em senhoras e escravas»8. Além daquela estratificação das profis-sões pelas cores da pele, sem significado nacional, mas que dois séculos depois seria material de análi-se para certos críticos do nosso colonialismo9, veri-ficavam-se ainda no processo as oposições emocio-nais que levariam o folclore patoá a crismá-los de «indecentes»; no século XIX corriam quadras como esta:

Casamento fêto

Na ponto de lenço;

Quem casa co preto

Tem poco sintimento10.

Também se não conhecem entre cafres e chi-nesas, e creio que as mulheres da nação mais fe-chada do mundo não se mostrariam em verdade conformes àquelas «negras novidades»11, embora a sua existência fosse conhecida desde o século XI, quando os barcos das jóias os tinham levado da África como escravos. Além de que nessa circuns-tância, mais ainda que ao defrontarem-se connosco, haviam de pesar as diferenças de cultura. No Norte do Brasil tais cruzamentos, embora raros, ainda se revelaram em sucessivas gerações de cafusos, fi-lhos de negros da Costa e índias da região, pois que tais negros, quase todos islamisados, eram portado-res de uma cultura superior à dos autóctones, que mal saíam do período neolítico12. No Kuangtung, porém, a formação cultural da chinesa sobrelevava a dos pretos que levávamos como escravos ou para lá rumavam fugidos aos holandeses13. De resto, tal resistência já se esboçara com as índias do México, culturalmente num nível muito superior ao das suas irmãs sul-americanas.

Neste ambiente, a maior parte das mulheres que os portugueses tiveram inicialmente em Macau foram levadas por eles próprios da área malaia, de toda a Insulíndia, até de Ceilão (a Taprobana de João de Barros e de Luís de Camões), e cuja popu-laridade datava do romântico episódio da nossa pri-meira expedição, salva da chacina pela denúncia de uma delas e a colaboração de não sei quantas mais que «[...] se ocupavam de perguntar e saber por os homens da guerra e dos naturais; do que tudo fazi-am aviso aos nossos, que tudo sabiam quanto se ordenava; porque estas mulheres de Malaca são muito entregues ao bem querer tanto que tomam vontade com um homem, que não estimão perder por ele a vida»14.

Já constituíam, pois, uma paixão nossa. **Fernão Lopes dizia serem pela maior parte formo-sas; «[....] são baças, andam vestidas de mui bons panos de seda, derredor de si umas camisas curtas, e são pela maior parte formosas»15, escreveria também Duarte Barbosa16. Na época era frequente ouvir fa-lar-se de homens casados em Malaca e já S. Francis-co Xavier partira de lá sem poder fazer grande se-menteira nos seus moradores, «que além de serem casados (tinham) três ou quatro mancebas, e muitos meia dúzia»17. Um século depois, entre 1640 e 1700, o número de mulheres da Oceania levadas para Ma-cau subiria paralelamente ao comércio com Solor, com Timor e com Flores, que veio substituir, embo-ra precariamente, aquele que o interregno filipino nos fizera perder com Malaca e com Manila. Há que considerar ainda a força de pressão migratória e consequentemente o raio matrimonial, que Sempre foram grandes em todo o sul do Pacífico. Por isso, também os estudos de geografia linguística revelam que o elemento exótico predominante no patoá de Macau é de origem malaia e que a influência chinesa só interferiu com importância vocabular nos séculos XVII e XVIII18. Quando os portugueses se instala-ram em Macau, o papiá (falar cristão de Malaca) que já era uma espécie de língua franca do Oriente, veio permitir que aí continuassem a entender-se euro-portugueses, chineses, malaios, africanos, mouros e hindus. Até 1863 o serani (cristão, em malaio) ficou mesmo a língua diplomática do Sião. Ora o seu ensino, apenas oral, fazia-se sobretudo pelas mães e foi o grande número que delas houve na cidade que lá fixou tantos vocábulos; hoje ainda o seu crioulo surge, nas poucas expressões existentes, misturando palavras portuguesas, malaias, japonesas e chinesas, numa construção gramatical própria da língua sínica, mas dominada por termos malaquistas.

Vista de Macau, do Forte de S. Paulo. Gravura de Madeley, c. 1840 (Museu Luís de Camões)

Além disso a própria comida, o vestuário e certos hábitos que ainda há anos existiam entre os portugueses de Macau denunciam tal influência. As-sim, os doces característicos da cidade, como sejam o aluar, o dodol, o ladu, etc; vários petiscos entre eles o lapá; os utensílios caseiros como o parão (facalhão que se usa na cosinha); o buião (bilha, jarro); o daiong (pá para remexer a massa com que se vai preparando o aluar), etc.; o sarong (saia que sob a denominação de saraça se usava juntamente com o dó, cobertura da cabeça), a baiana (precussora dos actuais pijamas), o cutão (corpete), o tudum; e o hábito, que existia entre as velhinhas, de mascarem a areca envolvida com folhas de betle, são todos de proveniência malaquista19.

Já o nosso cruzamento com chinesas foi difí-cil e praticamente só com mulheres humildes, pois as das classes superiores, mal se nos adaptariam, fora dos capitães ou dos grandes mercadores. Já dei a entender como mais do que as barreiras físicas ou económicas seriam os modelos culturais que as difi-cultariam: «em uma palavra é uma nação mui políti-ca e urbana, nem se acha nos mesmos aldeões aque-la rusticidade que se vê lá nos nossos» escrevia, em 1737, a Ribeiro Sanches o Padre André Pereira, acrescentando, «... pelas ruas não se vê homem al-gum que olhe com reflexão para mulher e muito menos dizer-lhe alguma xanfreta ou palavra menos modesta... »20. Os seus apurados costumes surpreen-diam os viajantes: «as mulheres chinas são tão reti-radas que não há portugueses de ver nenhuma... são castissimas para connosco, entende-se a gente grave e mulheres de mercadores... »21; «quanto ao traje das mulheres chinesas não posso dizer muito porque não vi nenhuma à excepção das da classe pobre22; as mulheres são muito atavidadas... »23.

O que explica porque é que nos primeiros séculos só pudemos conviver com mulheres rapta-das ou compradas: «assim continuaram alguns anos, e depois se foram deixando ficar na dita Ilha comprando mulheres com quem se casavam»24. Só que não foramos nós a introduzir esse comércio que já era prática corrente, que faziam os cortesãos do Imperador e os comerciantes ou agentes políti-cos dos reinos do Sul, embora na realidade as auto-ridades chinesas se lhe oposessem. Há referências a essa proibição já em 1517, anterior portanto às nos-sas viagens regulares a Cantão. Só que aos olhos chineses nós agravávamos tal comércio com dois horrendos biológicos: o de nossa branquidade e o das nossas barbas.

Naquela «safra» dávamo-nos também a nós próprios, como justificação moral, andar a salvar al-mas para Cristo, embora os padres não acreditassem: «compram esta droga (as mulheres) em várias pro-víncias do Oriente, com o pretexto de as fazerem cristãs... cada um sustenta em sua casa um conven-to de mulheres»25 mas para uso próprio. Que na Chi-na, a compra ou o rapto, eram em verdade as opções que nos restavam. De outra forma não podia ser. Em Cantão, apenas por abraçarem uma chinesa na rua ficaram alguns portugueses na cadeia, situação bem diferente daquela que por esses mesmos anos de 1520 a 1580 sucedia com as ameríndeas do Brasil (consoante já aludi) as quais ardentemente, mesmo as de nobreza, se davam aos brancos adventícios; e de que não encontro correspondência na história da nossa fixação na China. «No principio... os Portu-gueses tomaram ali mulheres chinesas, e, assim fo-ram a pouco e pouco povoando e multiplicando a mesma Macau». As facilidades com as escravas chi-nesas, cafres e timorenses continuaram, e não seria solução desterrá-las embora ainda em 1667 se te-nham expulso 40 timorenses (muitas das quais iriam morrer no mar à vista da Cochinchina). O que era certo era que a cidade enxameava de mulheres (12 00 em 1681), «sendo muitas delas muito prolificas, pois dão filhos à luz sem maridos que lhe deem o seu nome»26.

Assim, com mulheres obtidas por escravidão ou rapto, e depois batizadas, se fizeram as barreganias macaenses. Contudo esses modos acaba-ram por irritar os chineses e como as suas reclama-ções prejudicassem o comércio de Goa esta alerta Lisboa e Filipe I, em 1595, depois de considerar «o comércio que os seus vassalos de Macau (tinham) de muitos anos a essa parte nos ditos reinos e portos da China com tanta quietação e familiaridade, de (bom) resultado e grandes proveitos... », «mandava e de-fendia» que «nenhuma pessoa de qualquer qualidade e condição que fosse trouxesse da China nem com-prasse, nem por outra alguma via houvesse em seu poder Chim algum assim homem como mulher... ». É certo que, com o tempo os Vice-Reis de Goa seri-am mais comprensivos: «do transporte de meninas Chinas dou as ordens necessárias (sobre o) desagra-do do Imperador, mas não supounho tanto perigo, se viessem crianças de sete a oito anos, porque o que V. P. considera ainda mal se pode recear em um único homem que viesse em uma Náo». Na verdade moças chinas embarcavam ou eram embarcadas para Goa mas, cumprindo as ordens recebidas, o Senado devolvia-as frequentemente para os países de ori-gem, entregava-as de novo aos pais. Por vezes apressava-se mesmo a remete-las aos mandarins de Cantão, que se queixavam desses raptos. Mas o pro-cedimento estava enraizado: e o mais que se conse-guiria seria proibir de comprar e levar para fora da cidade meninas com mais de 8 anos.

«As mulheres portuguesas, as mais delas são chinas ou têm parte disso», informava, em 1625, o irmão laico que dirigia a botica do Colégio de S. Paulo27. O mesmo viu Março d'Avalo; («os portu-gueses casaram com mulheres chinesas e desta for-ma se tornou (Macau) gradualmente povoada) e Peter Mundy, que a visitou em 1636 na armada in-glesa*** de John Weddel, referiu-se demoradamente a essas mulheres e aos filhos desses matrimónios: «A casa do dito senhor António de Oliveira Aranha, na-tural de Braga, capitão-mor da viagem do Japão em 1629, residindo lá havia dois anos e que era um dos quatro vereadores da cidade, com mobília, diverti-mentos, era semelhante à outra, diferindo apenas no facto de que éramos servidos por criadas, mulheres chinesas, na sua própria casa, compradas por ele, como acontecia em quase todas as casas. Disseram-nos que nesta cidade só havia uma mulher nascida em Portugal; as esposas eram chinesas ou de raça mestiça casadas com portugueses. »

«Os chineses pobres vendem os filhos para pagar as suas divídas ou para se manterem (isto é de algum modo aqui tolerado) mas com a condição de os alugarem ou contratarem como criados por trinta, quarenta ou cinquenta anos dando-lhes depois a li-berdade. Alguns vendem-nos sem quaisquer condi-ções levando-os durante a noite embrulhados num saco e secretamente e separàndo-se deles por dois ou quatro reais de oitavo por cada um. »

«Nessa ocasião havia em casa três ou quatro crianças muito bonitas filhas do dito senhor António ou de seus parentes, que excepto em Inglaterra não poderiam ser encontradas em qualquer parte do mundo pela sua linda aparência e compleição, fican-do-lhes os trajes muito bem, adornados com lindas jóias e enfeites caros sendo os principais trajes kimonos ou casacos japoneses que lhes davam muita graça. »

«A falta de esposas portuguesas os europeus deixaram depressa as companheiras vindas de Malaca ou da Índia para se unirem às japonesas e sobretudo às chinesas, de que eles apreciaram as qualidades28». De resto, as europeias faltariam. Em 1637, como vimos, quando Petter Mundy29 visita Macau só lá havia uma mulher da metrópole; europeias também só uma inglesa casada em Malaca com um mestiço português. O Padre Afonso San-chez que viveu em Macau em 1582 e 1583 escrevia a Filipe II: «os portugueses de Macau casam-se com mulheres diversas mais facilmente que com portu-guesas, pelas muitas virtudes que as adornam». Nos arquivos paroquiais de 1785 a 1793 também se en-contram casamentos de raparigas da Cochinchina com portugueses de Macau30.

Juan Baptista Roman, feitor de Manila, regis-tou igualmente o facto de todos os portugueses terem em casa mulheres chinesas: «todos os diverti-mentos desta cidade residem nos seus habitantes; nas suas amplas, fortes, ricas e bem mobiladas casas, suas mulheres e filhos ricos em jóias e toilletes, seu número de escravos (os homens na sua maior parte cafres de cabelo encaracolado e as mulheres chine-sas)»31. Mulheres de Kuangtung, sempre compradas ou raptadas, apesar das resistências das nossas auto-ridades (ainda em 1614, D. Jerónimo de Azevedo, Vice-Rei faria nova proibição) ou das de Cantão, as quais porém só em 1749, quando o Código Penal Chinês começou a ser aplicado na cidade, passaram a ter algum efeito. No entanto, acentue-se que se tratou sempre dum tipo especial de servidão com vistas mais ao gineceu que ao trabalho, ou pelo me-nos igualmente aos dois. Quem ler desprevenida-mente a lei constitucional de 23 de Dezembro de 1856 que declara extinto para todo o sempre, em Macau, o estado de escravidão pode supor que ele lá existiu como processo económico-social idêntico ao que foi aplicado no Brasil. Puro engano: com os chineses foi sempre diferente. Anexados por registo ou batismo, continuaram livres. Por isso mesmo não existem na legislação de Macau documentos como aqueles que vários Reis, desde D. Pedro a D. José, ordenaram sobre as liberdades dos índios do Grão Pará e do Maranhão. Além de que as mulheres da China deviam na verdade constituir a parte menor desses cruzamentos, embora me pareça, insisto, que mais que na África, que na Índia, ou no Brasil fosse lá que o fundo erótico nacional encontrasse as mais fortes provocações. Difíceis pelo recato, mas de uma beleza estranha, elas, que já haviam impressionado Marco Polo, que Fernão Mendes encontrou «mui formosas», que Frei Gaspar da Cruz achou «mui be-las», das quais o padre Álvaro Semedo escrevera que «de modo particular ganhavam nas províncias do Sul [...] o título de formosas [...]»32, concorriam com as malaquistas.

Tomé Pires bem comentara logo: «As mulhe-res parecem castelhanas, têm saias de refugo e coses e sainhos mais compridos que em nossa terra, os cabelos compridos enrodilhados por gentil maneira em cima da cabeça e lançam neles muitos pregos de ouro para os ter e a redor pedraria, quem a tem, e sobre a moleira jóias de ouro e nas orelhas e pesco-ço, põem muito alvaiade nas faces e arrebiques so-bre ele e são alcaforadas que Sevilha lhes não leva a vantagem e bebem como mulheres de terra fria, tra-zem sapatos de pontilha de seda e brocados, trazem todas abanões nas mãos, são da nossa altura e delas umas tem os olhos pequenos e outras grandes. E narizes como hão-de ser»33.

Mais tarde, as relações administrativas e co-merciais existentes com a Índia (acentuar-se-iam no século XVII) promoveriam também a fixação de al-guns arménios e goeses (indus e parses) que acaba-ram por constituir famílias ainda hoje representadas tanto na cidade como nas nossas minorias de Hong Kong e de Xangai; e que além dos genes que carre-garam enriqueceram até com novos motivos o voca-bulário e os usos e costumes macaenses: o molho de camarões conhecido por balichão tornou-se habitu-al; o fruto do tamarinho apareceu no preparo de vári-os acepipes; o consumo dos achares na ementa diá-ria, a fim de despertar o apetite, principalmente, na estação calmosa; na indumentária caseira entrou o uso das chinelas, dos chiripos (tamancos), das cabaias e das ceroulas34. Uma quadra popular ainda hoje lhes faz alusão:

Nhonha najinela

Co fula mogarim

Sua mãe tankaréra

Sua pai canarim35.

«Desta fusão das gentes variadas conserva a colónia ainda os indeléveis traços em todos os seus aspectos e em todas as suas manifestações, desde o vestígio fisionómico, mais ou menos acentuado, nos traços em maior destaque do tipo natural, saliente, da sua população autoctone, desde os laivos da men-talidade de um ou de outro, desde as modalidades da linguagem, em suma, desde os carácteres físicos e morais que denota essa população, até à diversidade da sua cozinha, dos seus costumes, usos e hábitos, da nomenclatura dos locais existentes, em tudo sem excepções»

Ao cair do século XVI, entre 1595 e 1602, a cidade alcança grande opulência. A população cres-ce, os subúrbios são verdadeiras aldeias, a agricultu-ra desenvolve-se e seus navios só pagam ancoragem ao Imperador da China. «Os moradores... comerci-am e têm continuo trato com os Castelhanos de Manila, nas Ilhas Filipinas, aonde todos os anos vão uma e duas vezes com grandes enchentes de sedas, almíscar, pérolas, e outras semelhantes fazendas que todas são preciosas [...]»36. Além do comércio geral, o do ouro é tão grande que perturba a economia indígena. Por isso, os accionistas da Companhia Ho-landesa das Índias, têm-lhe os olhos em cima37.

Mas não se conhece cidade de evolução demográfica mais incerta, enchendo-se e esvazian-do-se consoante as barreiras que alternadamente lhe vamos pondo nós ou os mandarins; e eles bem mais. Assim, as autoridades de Cantão que desde 1613 espiam o nosso crescimento conseguem um decreto de Pequim proibindo a domiciliação de japoneses e, de novo, a compra de chineses, e, outro, limitando a edificação de prédios, muito embora os saguates lhes façam desviar os olhos das construções que por toda a parte, em S. Paulo, na Guia, no Monte, em S. Francisco, em Bomparto, na Barra e na Penha os moradores vão erguendo e logo o Senado cerca de fortalezas, tanto que em 1619 já se podia considerar uma pequena praça forte. O que, felizmente, desco-nheciam os seus inimigos.

Em 1621, a população andava por setecentos ou oitocentos euro-portugueses e mestiços e uns dez mil chinas, sendo a maioria dos nossos comerciantes e não soldados: «de poucos anos a esta parte se casa-ram aqui muitos portugueses bons cavalheiros [...]», escrevia um cronista anónimo. Na metrópole reinava Filipe II e por toda a parte os Holandeses, aliados com os ingleses desde 1619, estendiam contra nós a guerra que os opunha à Casa Áustria e, sob o pretex-to de defender a liberdade dos mares, assolavam os barcos e as terras que tínhamos em África, no Brasil, na Insulíndia e na China. Desenvolvendo-se para o Norte dispunham desde 1610 de uma feitoria no Ja-pão, não muito longe de Nagasáqui (de onde os daimios nos fariam sair em 1639), e procuravam agora ocupar Macau para se apropriarem do comér-cio do continente, bloquearem a saída de Fuquien para a praça de Manila, cortarem a nossa navegação, e converterem a seu turno a cidade numa fortaleza capaz de se defender contra o mundo inteiro (segun-do as palavras deles próprios).

Depois da experiência duma pequena Compa-nhia, a Wilde Vaert, que fizera bons lucros com fa-zendas compradas directamente no Oriente, haviam fundado em 1602 a Companhia das Índias Orientais (com o capital de 6 800 000 florins, muito importan-te para aquela época) destinada inicialmente ao co-mércio das Molucas mas que dentro em pouco es-tenderia os seus olhos para as costas do Japão e da China;**** tanto mais que ao financiar os ataques con-tra Macau38serviria, ao mesmo tempo, os interesses dos Países Baixos39.

Desde 1580, data da chegada de J. H. Van Linschoten40 a Goa, que estes tinham começado a surripiar-nos cartas de navegação (e P. Plancius, ti-nha feito já o mesmo em Lisboa) e a espiar os movi-mentos das nossas feitorias. E como Macau era, na realidade, o maior obstáculo a essa expansão, tentam ocupá-la41.

Em 1601 já procuram mas sem resultado, es-tabelecer-se na ilha dos Pescadores42, e dois barcos, o Amesterdão e o Gonda, comandados por Jacob Van Neck, pairam alguns dias nas nossas águas, a experimentar o nosso aparelho militar.

Em 27 de Setembro chegam mesmo diante da cidade, mas logo são interceptados e parte da tripu-lação (com excepção de cinco marinheiros que são enviados para Goa) perece na forca. Contudo J. V. Neck também consegue levar consigo alguns prisio-neiros, que sob tortura lhe denunciam os arranjos militares e as armas de que dispõe a cidade43. No ano seguinte voltam, capturam-nos um galeão e dis-pararam até sobre o casario44.

Em 25 de Fevereiro de 1603, o apresamento da «nau da China» no estreito de Singapura45, e os lucros que rende o seu espólio fazem subir o interes-se da Companhia pela nossa cidade embora ocasio-nem também a propósito da liberdade dos mares46 uma das mais célebres polémicas da história do di-reito internacional.*****

Em 1607 o almirante Matelie tenta um de-sembarque, sem êxito47. Mas embora estas expedi-ções não resultem, os moradores, sentindo-se ame-açados, erguem novas defesas, as quais a seu turno alarmam tanto os mandarins que ainda elas estão, em 1613, por acabar e já eles, alegando que os jesuítas preparam um exército contra o continente (e que só um deles, o Padre Caetano, alberga no Seminário uma tropa poderosa e bem armada) mandam sair os chineses da cidade; e só vem a tranquilizar-se ao verificar que pouco volume for-mam agora os portugueses e os seus escravos, e que a tropa denunciada eram os seminaristas. Con-tudo, sempre aproveitam a oportunidade para im-por que os nossos barcos de guerra passem a pagar imposto de tonelagem (como já cobravam aos de comércio), se não admitam trabalhadores japone-ses, se não construam mais casas, e se proiba o desembarque de comerciantes solteiros.

No ano seguinte (1614) o comissário do Co-mércio Marítimo, Yu Ngan-sin, obtém que o Senado mande gravar em pedra a proibição de os portugue- ses comprarem mulheres ou homens. Chegam mes-mo a pensar empurrá-los todos para uma das ilhas.

Entretanto também o alarme chega a Lisboa que em 1615 expede para lá Francisco Lopes Car-rasco, como governador e técnico de fortificações. Pelo seu lado, Manuel Tavares Bocarrro (que have-ria de ser capitão-geral da cidade de 1650 a 1664), já tem em actividade, com mão-de-obra chinesa, uma fundição de canhões de bronze tão importante que abasteceria mais tarde todas as nossas praças do Ori-ente (até de Goa os outros Bocarros fundidores lhos pediriam) e mesmo a própria metrópole durante as campanhas da Restauração e da Guerra Peninsular. Os espiões holandeses diziam ser lá construída anu-almente bela artilharia tanto de aço como de metal. E era tempo, pois que nessa ocasião já a feitoria inglesa do Hirado e a Companhia Holandesa das Ín-dias, faziam aparelhar de sociedade três esquadras (com mais de 13 navios, patachos e galeotas) para o assalto de Goa, Manila e Macau. A que lhe é desti-nada, e bem poderosa, chega na Primavera de 1622. Desfralda as suas bandeiras, mas os holandeses, que desejam em exclusivo o saque da cidade, dispensam o auxílio inglês e em 22 de Junho decidem-se sozi-nhos. Estão minuciosamente informados (ao que jul-gam) das suas defesas e sabem que temos nessa altu-ra muitos moradores feirando em Cantão ou ocupa-dos com um novo surto de pirataria.

Do dia 23, Jan Pieterszoon Coen, famoso go-vernador-geral, ordena o ataque. Um exército de seiscentos europeus, incluindo três companhias bem curtidas pelas guerras da Flandres e duzentos japo-neses, hindus e malaios, sob o mando do general Hans Ruffijn, desembarca protegido pelo fogo da esquadra (dirigido pelo almirante Kornelis v. Revijersen, ou Reverszoon, ou Cornélio Regres, como escreveriam os nossos) sobre os baluartes.

Só «tinha a cidade nesse tempo oitenta ho-mens capazes de pegar em arma, com seus moços, mas sem capitão que os governasse, porque o Go-vernador Francisco Lopes Carrasco se tinha rëcolhi-do a Goa e não tinha vindo outro, e o capitão mor da viagem do Japão não estava na terra, razão porque a cidade era governada somente pelo Senado... »48; porém, antes dos holandeses consegue desembarcar nela um dos ditos capitães do Japão (em vida cinco vezes repetiria o cargo), Lopo Sarmento de Carva-lho, bragantino de origem mas macaense por laços de família, pois na cidade casara em 1615 com uma «moira, filha de uma lascara moira e de um cristão novo»49, de quem tinha filhos. É ele quem improvisa a defesa, ajudado por uma das suas bandeiras, de que morreriam uns 12 a 13 homens, por outro solda-do, o capitão João Soares Vivas, e um natural da terra, Tomás Vieira (que em 1627 viria a ser capitão general, governador da cidade e, de novo, combaten-te contra os holandeses).

À armada e aos oitocentos inimigos só pudé-ramos opor com alguma ordem militar cincoenta mosqueteiros e cem casados, mas com eles também quantos chinas, malaios, hindus, cafres, tanto ho-mens como mulheres, gente livre e escrava, estavam dentro dos muros. Entre os defensores destacar-se-ão António Rodrigues Cavalinho, e uma cafra, edi-ção local de Brites de Almeida, a célebre padeira de Aljubarrota, «que vestida em trajo de homem» ma-tou vários holandeses com uma prong. Alguns es-cravos foram alforriados em prémio da valentia pos-ta no combate50; outros tinham-no sido antes, como estímulo. Abraçando-se com eles e os seus mestiços a cidade repetia, do outro lado da terra, as façanhas daqueles nordestinos que também quase sozinhos, apenas com seus negros, seus mulatos e seus cabras, expulsavam do Brasil os holandeses, também em Macau surpreendidos pela valentia com que os rejei-tavam aqueles «moradores mulatos, mamalucos, to-dos negros»51; ao que se deve acrescentar, e essa foi a chave do triunfo, todos uma nação! Ainda hoje existem famílias descendentes de alguns dos holan-deses vencidos pelos arcabuzes dos comerciantes e pelos canhões disparados do Monte pelo jesuíta Jerónimo Rho.

Já na luta se haviam distinguido outros pa-dres, como Adam Shall von Bell e Bruno e nela deve ter intervido todo o esquadrão da Companhia52. Mas se digo que a vitória foi dos moradores de Ma-cau, é que penso como Jaime Cortesão que «o segre-do daquela e das vitórias sucessivas e, mais do que isso, do temor infundido aos holandeses, esteve nas origens e na organização social e política da cidade, fundação urbana puramente democrática, e que aproximava Macau, sob esse aspecto, dos grandes burgos medievais»53.

Depois do triunfo o Aitão (hai-tao), general do mar na província de Cantão, presenteou os cida-dãos negros com duzentos picos de arroz e o vice-rei de Cantão enviou parabéns ao Senado, ao mesmo tempo que levantava as reservas anteriores sobre as artes de defesa, nas quais agora empregávamos tam-bém alguns loiros prisioneiros54. O nosso prestígio militar sobe tão alto que o rei de Sião faz montar para si uma guarda pessoal de Portugueses e dessa disposição surge no Oriente um novo estabelecimen-to, em Aiuthia, onde os nossos logo se casam com mulheres nativas. Uma vez mais.

Contudo, no ano seguinte ao grande assalto de 1622, só tinha a cidade ao todo oitocentos e qua-renta cristãos, sendo quatrocentos e trinta e sete visinhos e estrangeiros (estravegantes)55 e quatro-centos e três jurubaças, que deviam ser na sua quase totalidade mestiços luso-chineses, luso-malaios, ou luso-japoneses, unidos pelo casamento cristão. O que continua a ser pouca gente, embora em 1635 António Bocarro, cronista-mor do Estado da Índia escreva: «é uma das mais nobres cidades do Oriente [...] e de mais número de casados [...] oitocentos e cinquenta portugueses, e seus filhos são muito mais bem dispostos e robustos que nenhuns que haja nes-te Oriente; todos têm uns por outros seis escravos de armas de que os mais e melhores são cafres e outras nações [...] Além deste número de casados Portu-gueses tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, chinas cristãos que chamam jurubassas de que são os mais, e outras nações, todos cristãos [...] Tem além disso esta cidade muitos ma-rinheiros pilotos e mestres portugueses os mais deles casados no Reino, outros solteiros que andam nas viagens de Japão, Manila, Cochinchina, desses mais de cento e cincoenta» «[...] Têm mais cento e cincoenta soldados em que entram dois capitães de infantaria e outros tantos alferes e sargentos [...]»56.

Plantas primitivas das Fortalezas de Na. Sa da Guia e de S. Tiago ou da Barra. (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa).

Por isso, em 12 de Abril de 1639, Margarida de Áustria insiste com o vice-rei da Índia que au-mente o mais que puder aquela modesta guarnição, termine as obras de defesa e leve os moradores, com a ajuda de Manila, a deitar fora da Formosa os ho-landeses57, e em 16 de Março de 1640 volta a instar com o vice-rei para que se intensifique em Macau a fundição de artilharia58. Mas também do outro lado o inimigo, instalado em Castel Zeelândia, na Ilha For-mosa, não desiste, desenvolvendo os seus preparativos e a sua espionagem, tanto que em 1638 Haia recebe uma descrição pormenorizada das nossas mu-ralhas e dos seus três fortes (formando um triângulo estratégico) cujo poder de fogo analisa minuciosa-mente59. Mas nesta luta de retaguardas, de polícia secreta, também Macau se precata, tem seus olheiros (casados, padres jesuítas60 ou comerciantes chine-ses), como Salvador Dias61 que em 1626 chega da Formosa com a informação de que os holandeses procuravam agora peitar o governo de Cantão para que nos obrigasse a derrubar os fortes. O que nos levou não só a acelerar essas defesas mas ainda a alertar em Pequim o próprio Imperador, avisando-o de como os japoneses, seus inimigos naturais, esta- vam de conserva com os holandeses no assalto ao estuário. O que era grande cartada, pois os próprios holandeses sabiam e o haviam dito em carta secreta para Batávia, e a propósito da possível tomada de Macau pelas armas, que se devia também ponderar se com isso, e a ajuda nipónica, não se iria fazer ofensa aos chineses ou se eles o permitiriam62. Mas tanto o comandante geral, como os homens do Sena-do, os jesuítas, os comerciantes, sentem que têm de defender-se sozinhos, pois os mandarins, de braços cruzados, aguardam os acontecimentos. Goa tam-bém está longe e as suas estradas policiadas pelo inimigo.

O vice-rei determina então um governo mis-to: civil, militar e religioso, composto pelo vigário-geral Fr. António do Rosário, os cidadãos Pedro Fernandes de Carvalho e Agostinho Gomes e o capi-tão-general D. Francisco de Mascarenhas, que che-gara em 1623 com duzentos mos-queteiros e os mais vastos poderes até então concedidos a um capitão da cidade. Porque Lisboa, embora ainda mais longe, também continuava atenta aos seus problemas. Severim de Faria, pai do jornalismo português, es-creveria no primeiro número do primeiro periódico nacional: «[...] O General Francisco Mascarenhas cercou a cidade de Macau, fortalecendo-a conforme a prática moderna, introduzindo na Cidade o modo da Milícia de Europa. Despediu os Castelhanos, que de (Manila) tinham vindo de socorro contra os ho-landeses, por não serem necessários, e fazerem já demasiada demora. Com os chinas estão os nossos em grande amizade, por que vendo o Rei a liberali-dade com que os de Macau o socorreram, para a guerra dos Tártaros, mandando-lhe artilharia, muni-ções e oficiais destes misteres, agradecido, deu previlégio (aos moradores de Macau) de naturais da China e licença para se fortificarem contra os holan-deses, e juntamente os declarou por seus inimi-gos»63. Sublinhe-se deu aos moradores de Macau o privilégio de naturais da China, e declarou também por seus os inimigos dela!64 O que não impede, sempre seria assim, que em 1631, quando já tínha-mos perdido a rota do Japão, nos fechem o comércio do estuário. Única sorte era serem então os proble-mas internos da China bem maiores que os nossos, e os Ming precisarem outra vez de nós. Por outro lado, a captura de Coxinga faria desanimar os holandeses, tanto mais que só em 1653 os primeiros barcos da Companhia conseguiriam também chegar a Cantão. É mesmo de um deles, ancorado ao largo de Macau, que deve ter sido feito o desenho panorâmico de Vingboons. Em 1660 já voltam a organizar em Batávia uma esquadra, a qual, embora com o pretex-to de destruir os piratas que assolam os seus estabe-lecimentos na Formosa, leva como carta de prego o encargo de, pelo caminho, conquistar Macau. Ao que, porém, nem sequer se atreve.

Também, percebendo que a presença holan-desa seria sempre mais incómoda do que a nossa, Cantão encoraja agora as obras militares da cidade, embora sob a condição de se deixar sempre livre o istmo da ilha. É que nós éramos, nós continuaría-mos (bem o sabiam), os compreensivos co-habitan-tes do estuário; connosco seria o condomínio, a co-existência cultural, o cruzamento das raças; com eles o apartheid: ora, «os chinas são inimigos de lhe entrarem nações estrangeiras em suas terras».65 Além disso, viam a cidade empenhar-se numa obra cara, de cerca de um milhão de cruzados e custeada apenas pelos seus homens e as suas mulheres, que « [...] para estes excessivos gastos acudiam com suas jóias e peças ricas, por a cidade não ter dinhei-ro nem rendas de que se valer naquela urgente ne-cessidade»66.

Mas outros a espreitam. Agora são os ingle-ses que procuram cercá-la desde Cantão e desde Pe-quim, aonde enviam em 1637 Jonh Weddel, como embaixador67; o qual saindo de Goa em 7 de Janeiro com uma esquadra de 4 navios chega a Macau em 27 de Junho do mesmo ano, credenciado para o Go-vernador Domingos Câmara de Noronha e à nossa ilharga pretende negociar directamente com Cantão. Em Setembro, como o intimem a sair, tenta resistir, defrontar até as tropas do vice-rei chinês, mas acaba por pedir a protecção do Governador e abandonar o porto com o rico comércio já realizado, cujo mon-tante resultou numa prejudicial alteração de preços nas mercadorias além da pesada multa que os mandarins impuseram à cidade. Weddel sai em De-zembro levando consigo, clandestinamente, cento e quarenta portugueses que dessa forma procuravam, mais as suas fazendas, furar o bloqueio. É certo que se passavam maus dias e que já desde 1638, estando «a cidade cada vez em maior crescimento de mora- dores, e muito povo meúdo», se tornava difícil o seu sustento. Sofria então um dos momentos mais críti-cos da sua história. O pouco dinheiro de que uns e outros dispunham andava comprometido em negóci-os. A partir de 1640, quando o Japão, as Filipinas e Malaca ficam cortados do seu comércio, a situação piora, apesar de cerca de oito mil habitantes anda-rem absorvidos pela navegação e as tarefas milita-res68. Por fim chegaria a peste para fechar, com lógi-ca bíblica e milhares de mortos, o seu apocalipse. Desce o pano sobre uma das grandes cenas da Pá-tria. Mais do que as guerras, a perda do comércio do Japão, em 1639, tanto o de importação para Lisboa como o de distribuição pela China, fora o golpe mai-or, fatal mesmo, no desenvolvimento daquela as-sombrosa feitoria, onde nos tempos doirados iam ca-sar homens de todo o nosso mundo oriental, tão substanciais aí eram os dotes. Diogo do Couto diz que o ouro nipónico entrara às toneladas e com ele se haviam feito a Catedral de S. Paulo e as fortifica-ções de 1612 e 1638. Não fora tanto assim, pois vimos atrás como as mulheres tiveram que concorrer para elas com as suas jóias e outros adornos, mas constituíra sem dúvida, uma grande fonte de riqueza, tanto que logo na sua primeira passagem comercial pelo Japão, Jorge de Mascarenhas, tirara o dobro do rendimento duma viagem a Cantão. Se as relações se tivessem mantido por mais cinquenta anos Macau teria alcançado a celebridade de uma Ofir ou de uma Jerusalém do tempo de Salomão69. Assim, fechando-se, só nos trouxe mais encargos financeiros e mais bocas, fugidas aos japoneses e aos huguenotes.

Mas se a paz de Cromwell (1654) e a nossa separação da Espanha deveriam ter-nos garantido o sossego com a Holanda, a verdade é que a guerra de corso continuou. Tanto que em 1 de Novembro de 1644 ainda a Câmara subscrevia um protesto para Batávia, e mandava o morador António Varela, «pessoa de partes e importância», resgatar um dos saques. Os sofrimentos da cidade cresciam.

Em 1647 os soldados, com o pré em atraso, amotinam-se e roubam. A cidade apela ao mesmo tempo (1653) para a Virgem Padroeira, que a salve da miséria, e para o vice-rei de Cantão, que lhe per-doe o foro do chão. No ano seguinte está tão pobre que se não encontra quem lá queira ir como capitão-general. Em 1662 a proibição do comércio marítimo com toda a China e os perigos que se correm no mar mais agravam a fome. E em 1666 atendendo às re-presentações da cidade o vice-rei António de Melo de Castro determinava que as viagens da China pas-sassem a ser feitas no estilo de frota, em combóio, «porque juntas se defendem melhor, e porque se destrói o Comércio com chegar umas primeiro, que outras — que como é império tão largo, se vão mui-tas embarcações, descem muitos mercadores com que se levanta o preço às mercadorias, que levamos, e se abaixa as que compramos, e pelo contrário se vai só uma, ou duas [...]»70.

É que, com o Sul senhoreado pelo holandês, as ligações com Malaca, com Solor, com a Índia tornavam-se mais trabalhosas, fazendo rarear e enca-recer o comércio: «Quando os portugueses vão de Goa para Macau, caminham ao longo da costa do Malabar até ao Cabo Camorim depois pelo meio-dia de Ceilão, e de todas as ilhas as mais meridionais; e vão passar pelos estreitos, que ficam na vizinhança da Ilha de Bale, e navegam ao longo de Macassar e das Manilas até Macau. Este caminho é mui traba-lhoso, e todavia são obrigados a fazer estes grandes rodeios, porque os holandeses os impedem de passar pelos estreitos de Malaca e da Sonda; e até muitas vezes os vão esperar nas alturas de Cochim, e da ponta de Gale na costa da Ilha de Ceilão»71. O Se-cretário do Estado, Francisco Correia de Lacerda, bem recomendava em 1678 que os portugueses e espanhóis mantivessem boas relações e cordialmente se entendessem na defesa comum dos assuntos co-merciais. Mas em vão.

Toda a primeira metade do século XVIII continua um sudário de lamentações e de pobreza. Rareiam o comércio e os forasteiros (em 1666 a tropa reduzia-se a cento e quarenta casados natu-rais da terra), aumenta a população indígena, a cri-se alimentar é grande, o erário exausto. Como em 1691 o Senado se achasse em muito desespero (sic), os homens bons convocados assentavam em 27 de Novembro que ele tomasse por empréstimo o dinheiro preciso, «que eles, ditos homens bons se obrigavam a tirar a paz e a salvo o dito Senado para não ficar devendo cousa alguma». Mas se tal empréstimo se fez, em breve também se esgotou, até porque as despesas, só com pão, eram cada vez maiores, como era cada vez maior o número de bocas chinas para sustentar. Todos assentavam nes-se conhecimento: «os Chineses são em número muito maior que os Portugueses (e estes são quase todos mestiços e nascidos nas Índias ou em Ma-cau»)72; em 1696 atingem mesmo tal volume, tor-nam tão caros os mantimentos, que o Senado chega a redigir um bando para os botar fora73.

O Governador queixa-se dos ordenados em atraso. O próprio Santo António, capitão honorário da cidade, pede um adiantamento sobre os soldos, tanto vencidos como futuros. O bispo continua sem cobrar as côngruas (questão antiga) embora a cidade se preocupe de que o seu antiste não passe necessi-dades. Em 1710, numa carta ao vice-rei, escrita a 23 de Outubro, explica que a sua ruína resulta simulta-neamente da falta de moradores, da desunião dos poucos que tem, das opressões e roubos que sofre e da decadência do comércio, que os próprios corsári-os se atrevem a embargar. Senhores do escambo ter-restre, único abastecimento dos moradores, os chine-ses aproveitam a sua penúria para aumentar o valor do dinheiro que só emprestam a juros tão altos, 30 e 40 por cento, que num último esforço o Senado or-ganiza, ele próprio, um monte de piedade a juros legais74. Mas também ele próprio se atrasa ou protela em satisfazer os empréstimos que levanta dos parti-culares pelo que alguns se queixam ao Rei que, por intermédio do vice-rei e capitão-general da Índia, manda ao Ouvidor que entregue esses dinheiros, «por não ser justo que a título de empréstimo se prejudiquem as partes». Mas onde estava a riqueza? Onde cobrar moeda? Tudo íamos perdendo, enquan-to outros se preparavam para nos substituir, como lá longe, os de Bruges, onde éramos comerciantes pri-vilegiados desde 141175, mas que a partir de 1718 só receberá dos nossos barcos sal da metrópole e açú-car do Brasil, pois montara uma Companhia própria para o comércio do Oriente76. «O miserável estado em que a cidade se achava (era tal) que muitos mo-radores dela pretendiam mudar-se com suas famílias para outras terras por lhes não permitir a penúria em que esta se achava o habitar mais nela. »

Porém em 1719, «como as forças humanas lhe não podiam pôr remédio acudiu a Misericórdia Divina com inspirar o Imperador da China proibisse a navegação sínica, deixando só livres os nossos bar-cos». Então a cidade multiplica a sua tonelagem, prepara quatorze ou quinze navios e sonha outra vez «estabelecer uma Grande República, com muitos au-mentos». Disposta a tudo, amplia o volume dos saguates a dar aos mandarins e resolve pagar toda a dívida do rei do Sião77. Mas a renovada prosperidade não chegou a durar dez anos. Em 1728 a miséria volta de novo e «a necessidade em prata em que se acha para as suas precisas e prementes despesas não tem solução porque embora escogitados todos os meios para se poder adquirir alguma se não desco-briu por estarem exaustos assim os moradores todos, como os cofres de onde se costumava valer em se-melhantes ocasiões78; e que eram a Casa da Miseri-córdia, o Colégio de S. Paulo, o Cofre dos Orfãos79, os depósitos dos defundos80, dos credores falidos»81.

Procura-o mesmo em toda a parte «aonde se achasse»82, mas não o consegue nem empenhando a juros de dez por cento os ganhos da terra ou os direitos futuros do mar83, ou socorrendo-se dos par-ticulares ricos84, ou dos dinheiros à ordem dos mis-sionários85. Por economia acaba com as rondas da noite, mesmo com o risco de facilitar assaltos ou questões entre escravos e chinas86, e isso numa oca-sião em que a tropa, «sem pontualidade, bisonha e pouco dada à obediência e à prontidão», pouco po-deria ajudar.

Os provedores eleitos devolvem ao Senado o pão de ouro que era de estilo receberem87; e os mais abonados, ou com maior crédito, emprestam algum dinheiro88, que mesmo vencido não é cobrado89; já antes, eclesiásticos e seculares haviam subscrito lis-tas de subsídios90. Os moradores também não que-rem os cargos91, que têm de ser postos a concurso por editais92. Funcionários famintos empenham os objectos de prata do Senado e o próprio estandarte93. A miséria é tamanha que a cidade nem sequer pode suportar as despesas de um emissário que vá a Lis-boa expô-la e procura um «sujeito que à sua custa queira fazer esse grande serviço»94. Pela primeira vez nada pode obrar pelos outros irmãos e ao saber os sofrimentos porque passa Goa, oprimida pelos maratas, só lhe consegue mandar «o sentimento que lhe fica»95. Consciente de que sem meios e sem mo-radores seria o fim96, que «barcos, mulheres, filhos, cabedais, gente e comércio, são as últimas colunas em que se estribará»97, única esperança de conserva-ção, não permite que qualquer dessas coisas ou pes- soas saiam da cidade******. A mercancia dos portos de-clina e com as viagens do Japão continuando suspensas; as de Timor meio perdidas desde que as embarcações chinesas tinham passado a transportar livremente o sândalo; e o comércio de Manila a fa-zer-se directamente com Cantão ( e por isso os navi-os parados por não haver portos), o Senado resolve então franquear o mar, autorizar os barqueiros a irem aonde mais conta lhes dê98, pedir ao Governo de Timor que só permita a saída de sândalo nos barcos da cidade (comprometendo-se a seu turno a abastecê-lo com toda a fazenda que necessite)99 e ao rei que lhe conceda uma navegação em cada ano para o Brasil: «porque além de ter vários portos de grandioso contrato são terras nossas e os moradores daquelas partes ansiosamente desejam de que desta terra haja barcos que para aqueles portos naveguem [...]»100. Com espanto verifica contudo que segue onerada pela alfândega de Goa, à qual custava, mes-mo depois da decisão do Rei, deixar de cobrar rendi-mentos sobre os barcos de Macau, e que fechando os olhos, continuava utilizando um foral já derrogado101.

Mas em 1732 o Senado continua a dever a toda a gente102: aos militares, ao Bispo, ao Governa-dor, aos próprios empregados, sendo indescritível por isso mesmo o espanto com que dez anos depois (1742), ainda carregado de dívidas, recebe do Rei uma provisão para não só actualizar a côngrua do Bispo como aumentá-la, pelos direitos dos navios103, com 600 mil réis a um conto. Lisboa parecia querer desconhecer o estado em que a cidade vivia, empe-nhada com toda a gente atemorizada pelos boatos de que os chinas iam aproveitar a situação para a liqui-dar104. Já de há muito que os vereadores se queixa-vam dos «gastos contínuos com os chinas, que nun-ca cessavam»105 e nem nos anos piores se dispensa-vam do foro do chão, ainda que o tivessem de rece-ber por partes. Também as fainas da navegação eram cada vez mais dispendiosas porquanto o recrudesci-mento da pirataria continuava a obrigar os barcos a seguirem em combóio106. A miséria era cada vez maior. Só entre 1731 e 1757, um quarto de século, a cidade expõe vinte e sete vezes em Goa essa situa-ção. As sessões do Senado tornam-se tumultuosas. As actas estão cheias de frases candentes como: «a grande consternação e penúria em que se acha», «a decadência desta Cidade e todo o Comum», «a grave decadência em que está constituído este Senado» ou «o miserável estado em que se acha reduzida esta Cidade»107, levando até os vereadores, o Governador e os Prelados a subscrever de novo dos seus bolsos «para acudir e remediar de algum modo a urgente necessidade que padeciam tantas mil almas sem te-rem as mais delas com que passarem ainda que mi-seravelmente a sua vida»108.

A quebra da balança faz retrair o estabeleci-mento, que em 1764 abandona inteiramente a ilha da Lapa. Mas os receios de que tamanha fraqueza desperte a cobiça dos inimigos, piratas chineses ou de outras nações da Europa, leva-o, fazendo das fraquezas forças a comprar armas que reparte pelos moradores, para que possam defender a terra e os barcos109.

Contudo, fruto das glórias passadas, ainda guardávamos algum prestígio, tanto que em 1785, o rei de Talangana por supor eminente a guerra com os holandeses (dado que o governador de Batávia tinha proibido a entrada no seu porto das nações Portuguesa, Inglesa, Francesa, Dinamarquesa e Im-perial)110 pede-nos auxílio militar e convida-nos a ir lá edificar fortaleza e levantar igreja.

No século XVⅡ, além dos transitários para o Japão e dos comerciantes da costa, já na cidade vivi-am muitos funcionários idos da Metrópole; o Ouvidor (este desde 1580) e depois de 1623 o gover-nador, o vedor da Fazenda, escrivães e praças de guarnição. Alguns já levavam mulheres; a quase to-talidade, porém, e sobretudo a gente nova, continua-va a arranjá-las na cidade ou nas terras vizinhas. Macau era um mundo sexualmente cosmopolita, onde os cruzamentos seguiam fáceis, pois só nos meados desse século, com o desenvolvimento da ci-dade e do seu porto, cada vez mais «escala geral de todas as mercadorias»111, surgiu uma pequena bur-guesia de descendentes, com preconceitos de classe, ambicionando até títulos nobiliárquicos (influência certamente de Goa) e recusando ostensivamente cru-zar-se com mulheres orientais, livres ou escravas. Mas foi surto descriminativo de pouca dura, já que posteriormente algumas filhas de chengkaus (nome dos chineses com «verdadeira fé»), quase todos já com apelidos portugueses, entroncaram nas linhées luso-macaístas, e, também que eu saiba, nunca na cidade se manifestou, como na Índia ou em Cabo Verde, aquela atitude de «apagamento histórico dos antepassados», como René Ribeiro112 chamou, com grande propriedade, aos brancaranas por requeri-mento. E poucos ou nenhunas macaenses revelam hoje pudor por qualquer das suas raízes, mesmos sem saberem como elas são múltiplas e pluricontinentais.

Um grupo emblemático da paisagem citadina de Macau do Século passado: mulheres macaenses de dó, acolitadas por umbela. Desenho a tinta da China de George Chinnery (c. 1836).

Também entre 1662 e 1664, os contactos com os naturais da ilha voltam a sofrer dificuldades por-que Pequim, agora sob o Governo dos tártaros, para evitar o convívio do Sul com os piratas de Cheng-Cheng-Kung, ou Coxinga, que desde a Formosa e de Cantão procurava restaurar os Ming, obriga a popu-lação a um repregueamento de dezassete quilóme-tros para o interior, mas, em verdade, sem grande efeito no volume geral do nosso convívio porque logo outros povos costeiros, Fuquinenses e Hakkas, desceram do Norte para os arrabaldes e para a pró-pria cidade. Só que os mandarins aproveitariam a ordem imperial para tentar que a abandonássemos nós próprios (pesariam ainda os receios de contactos marginais com o referido Coxinga, que tinha uma irmã em Macau casada com o português António Rodrigues) e nos internássemos. Seria uma espécie de êxodo diluidor que, com alguma coragem, uns quantos saguates e a ajuda dos padres de Pequim, se conseguiu evitar.

Raízes múltiplas e pluricontinentais? Sim, porque só a exaltação dos sentidos continuava gran-de. Menina púbere tinha logo noivo e mulher sozi-nha estava sempre em perigo, embora para proteger os costumes usassem os Governadores dos mais exemplares processos (em 1707 mandara um deles pregar num cepo as mãos dum euro-português que no campo violara uma timorense). Numerosos docu- mentos atestam que prossegue a convergência racial. Na relação113 da morte que tiveram os quatro embai-xadores que em 1640 a cidade mandou ao Japão, e com os quais perderam a vida pelo menos 57 pesso-as, figuram naturais de dezasseis nações: portugue-ses (16), castelhanos (3), índios (1), chinas do Conti-nente (13), chinas de Macau (4), bengalas (8), cafres (3), etc., além de dois mestiços luso-chineses, numa revelação bem clara do catolicismo das nossas cris-tandades. É significante verificar a naturalidade das dezassete principais figuras desse martírio, represen-tadas num quadro existente no Leal Senado: dos quatro embaixadores, dois viúvos, eram um de Cochim e outro de Mesão Frio, e os outros dois, um de Tomar e o outro de Lisboa, tinham casado em Macau. O capitão, solteiro, era de Lisboa, bem como o piloto porém este casado em Goa; dos onze mari-nheiros, três eram de Lisboa, e os restantes do Porto, Barcelos, Bemposta, Cascais, Viana, Ovar, Ormuz, e Macau, sendo que sete casados nesta última cidade e um em Manila. Os restantes solteiros. Todos univer-sais.

Quarenta e cinco anos depois a lista114 da gen-te mandada ao Japão para aí entregar «sem mais interesse que o amor de Deus e o serviço do Rei» os doze sobreviventes dum barco que (na ilha deserta de D. João) tinha dado à costa*******, inclui oficiais, sol-dados e marinheiros de várias origens étnicas: me-tropolitanos, macaístas, cafres, timorenses, goeses e chinas, o elevado número de metropolitanos indican-do a importância atribuída à missão, que foi em ver-dade arriscada, como também já fora difícil defender esses náufragos dos mandarins de Cantão, os quais em 1688 acabariam por instalar na cidade uma al-fândega (Ho-Pu) que com o pretexto de evitar a su-bida dos barcos só visava aumentar os impostos e meter mais um pé dentro do nosso comércio. A cida-de era um mundo de conexões biológicas e culturais: políticas e militares com Goa, comerciais com Ti-mor e com Batávia (estas desde 1686, a partir da exportação de chá), de trânsito e de comércio com Malaca (onde em 1639 ainda vivia uma colónia de 300 portugueses), e seguia dispondo de homens categorizados em todos os ofícios incluindo a Medicina, com que cimentava o seu próprio prestígio, tanto que em 1693 tinha dois cirurgiões emprestados na corte de Pequim115.

Em 1719 Kang-si levantou todas as medidas que pudessem dificultar a navegação de Macau e como agradecimento o Senado presenteou-o com Vi-nhos, doces, tabaco, etc., o que alguns chineses reto-maram como um tributo. A resolução provocou um aumento de cerca de 75 por cento no movimento de navios, porém em 1725 outro imperador, Yung-Ching, reduzia para 25 o número dos nossos barcos, cota que ainda continuou a parecer elevada aos olhos de Cantão. Admitia-se que continuassem a ser reparados nos estaleiros de Macau, mas tanto esses como os que os substituíssem não podiam aumentar de tonelagem, regime que subsistiria até 1849, e só no caso de a frota vir a ser inferior, poderia então ser completada com navios de Manila ou de Portugal.

Também a habilidade comercial dos ingleses contribui para desorganizar a nossa economia. A de-les e a dos holandeses. Tanto que em 1728, João Saldanha da Gama, vice-rei da Índia, sugere que a cidade estabeleça a seu turno uma corporação do género daquelas prósperas Companhias. Contudo, inexplicavelmente, ao mesmo tempo que os morado-res procuram adquirir o exclusivo do comércio com Manila e Batávia, a Coroa determinava (1746) que os estrangeiros pudessem ter domicílio em Macau, o que se tornava não só difícil mas também doloroso de cumprir dado que as várias feitorias estrangeiras de Cantão (de franceses, espanhóis, suecos, dina-marqueses) só periodicamente aí podiam residir.

Mas se foram grandes as dificuldades em nos casarmos na China o certo é que, e apesar delas, desde a primeira hora nos enxertámos na sua própria carne. Não seria mesmo de aceitar (não é a imagina-ção um modo de conhecimento?) que a primeira mestiça luso-chinesa de que reza a história tenha sido aquela Inês de Leiria que, em 1543, em Sampitai, nas margens do grande canal, mostrou a Fernão Mendes um braço tatuado com uma cruz e lhe disse ser filha de Tomé Pires e de uma chinesa com quem ele casara?

«Uma mulher que estava ali presente à volta de outras muitas... desabotoou a manga de umjubão de cetim roxo que trazia vestido, e arregaçando o braço nos mostrou uma cruz que nele tinha esculpi- da como ferrete de Mouro, muito bem feita, e nos disse... e isto disse-o na linguagem Portuguesa,... quando ela ouviu e entendeu daqui que nós éramos cristãos, toda banhada em lágrimas se despediu da gente que ali estava, e nos disse, vinde cristãos do cabo do mundo... e começando a encaminhar con-nosco para sua casa... onde nos teve todos os cinco dias que aqui estivemos fazendo-nos sempre muitos agasalhos e tratando-nos com muita caridade. Aqui nos mostrou um oratório em que tinha uma cruz de pau dourado, com uns castiçais e uma lâmpada de prata, e nos disse que se chamava Inês de Leiria e que seu pai se chamara Tomé Pires, o qual deste reino fora por Embaixador a El-Rei da China, e que por um alevantamento que um nosso capitão fizera em Cantão, houveram os Chins que era ele espia e não embaixador como ele dizia, e o prenderam com outros doze homens... E que a seu pai lhe coubera em sorte ser seu degredo para aquela terra, onde se casara com sua mãe, porque tinha alguma coisa de seu, e a fizera cristã, sempre em 27 anos que ali estivera casado com ela, viveram ambos muito catolicamente... »116

Se a nossa primeira mestiça luso-tropical da China foi filha do nosso primeiro Embaixador, que melhor demonstração se poderia pedir, então, da nossa capacidade de contacto e de amor com aquele povo? Certo, que se torna necessário admitir, para isso, que Tomé Pires não morreu no cárcere (como dizem João de Barros, Lopes de Castanheda e Cris-tóvão Vieira), que sobreviveu à tragédia (é a opinião de W. F. Mayers) e que permaneceu na China, por ordem do Imperador, até provecta idade (segundo Gaspar Correia e Fernão Mendes Pinto); tão-pouco os dados desta história concordam com as datas ofi-ciais da sua prisão (1521) e da sua morte (1524) e com o tempo decorrido, de 22 anos e não 27, entre 1521 e 1543. Como se isso pudesse invalidar Fernão Mendes. A existência de Inês de Leiria estava de tal modo gravada nas suas recordações que mais tar-de117, em 1582, a confirmou aos jesuítas G. Maffei, J. Rebelo e G. Gonzalez, que o procuraram no retiro de Almada para ouvirem informações sobre a cris-tandade da China. E nessa ocasião, rebuscando mais na memória disse, ainda, que também na cidade de Kuang-si (Cansi) havia outro português, e nada me-nos que Vasco Calvo, casado com uma chinesa e com filhos, dois rapazes e duas raparigas. Albert Kammerer considera que Fernão Mendes exagerou a sua sorte ao pretender ter encontrado no interior da China os únicos dois portugueses que lá viviam; mas a China «estrangeira» era relativamente curta. De resto, para mim, menos do que a verdade absoluta da notícia, importa que ela sublinha como a consciência nacional, os cronistas e os repórteres do século, ad-mitiam esses mestiços e aceitavam, sem reservas, a condição ou a cor desses cruzamentos em todos os degraus da sociedade (não é tradição japonesa que ele próprio Fernão Mendes, teve um filho de Wasaka, filha do ferreiro a quem ensinou a fabricar mosquetes de modelo português?). Paul Pelliot118 numa nota a um dos seus últimos trabalhos, já póstu-mos, frisa que Tomé Pires nunca esteve privado de companhia feminina, que só mais tarde os mandarins venderam as suas mulheres e que já com as pessoas que o acompanharam até Pequim seguia uma senhora comandadeira, a senhora comandanta, sua mulher porventura, e porventura, julga ele, uma euro-portuguesa; mas eu penso que tal mulher ape-nas «politicamente» devia ser portuguesa. De raça, inclino-me antes que malaquista ou indiana. Leonel de Sousa, fundador da cidade, já chegara casado em Chaúl, então nossa mais poderosa estação naval e, como disse já, muitos mercadores e capitães vinham com mulheres desde Ceilão.

Ao abrir do século XVIII a cidade conta mais de vinte mil almas quase todas cristianizadas, pois mal chegam a cinco por cento as que permane-cem pagãs, mas o número de euro-portugueses é cada vez mais baixo, pelo que também tende a des-cer a massa de cruzamentos euro-asiáticos: «as fa-mílias portuguesas serão hoje cento e cinquenta; o número de todas as almas cristãs (é porém de) dezanove mil e quinhentas das quais dezasseis mil são mulheres. Vivem (ainda) dentro da cidade mil gentios, oficiais e comerciantes. »119 Treze anos de-pois (1713) o número de chineses continua tão des-proporcionado que os Senadores são convocados na Casa da Câmara, «para lhes ser presente o gran-de dano que tem havido na cidade e o mais que poder seguir de aí em diante por causa da multidão (deles) que vivem derramados por muitas casas, chalés e boticas»120, chegando então a discutir-se se não seria melhor deitar fora os prejudiciais e que-brar-lhes até as habitações. Mas da leitura das actas (onde uns aconselharam que apenas se aceitasse metade, ou menos ainda; outros que se respeitas-sem os mercadores e homens de ofício, «gente de bem e honrada»; e os mais que se procedesse à simples limitação de certas áreas de comércio ou zonas residenciais e à proibição de os cristãos lá viverem), o que se conclui é o grau de intimidade existente entre eles e os moradores europeus.

Em 1748 o Senado volta a preocupar-se com o aumento da população chinesa e a promiscuidade em que com ela vivem os portugueses. E esta cons-tante subida de gente tropical, chineses de nação e mistos de várias raízes, ainda parecia maior, como digo, pelo pouco volume da população branca, que decrescia entre outras razões pelo grande número de raparigas macaenses que professavam121. O que le-vou até o vice-rei da Índia a assinar em 7 de Maio de 1718 as providências já referidas e a Misericórdia a abrir, dois anos depois, no seu Recolhimento para meninas órfãs, um serviço de dotes para casamento.

Também cresce o número de inocupados e vadios, tanto euro-portugueses como cafres e mesti-ços, pelo que Lisboa autoriza em 1719 que alguns sejam cativos e feitos soldados. O que um século depois, em 1828, um filho da terra voltaria a pro-por122, pois não vinham soldados e os apelos aos voluntários ficavam sem eco.

A população chinesa continuava sob o con-trole directo do mandarim de Heang-shan, que de-legava uma parte desses poderes no mandarim (Kiun-min-fu) da Casa Branca, o qual com o au-mento dessa população se tornou mês a mês mais exigente, embora a arma com que mais nos amea-çasse — o corte dos mantimentos — se volvesse desse modo perigosa, por ser também genocida. Por isso os mandarins passaram a outras, exigindo honras militares e civis quando nos visitavam, proi-bindo a construção nos terrenos sagrados ou próxi-mo dos pagodes, impedindo certas importações (em 1830, por exemplo, de enxofre e de salitre), ou não consentindo que os chineses transportassem cristãos em palanquins (1833). Em contrapartida, mais compreensivos, desde 1793 que nós tínhamos abolido as medidas camarárias de 1711, respeitantes aos seus domicílios. Eram agora livres de construir e de negociar. É certo que procuráva-mos também aumentar a ocupação branca: assim, de vez em quando, os cidadãos perfilhavam colec-tivamente uma orfã, ampliavam (1783) os Recolhi-mentos para as meninas desamparadas, ou aceita-vam comerciantes de outros reinos da Europa; mas essas manobras demográficas preocupavam a seu turno os mandarins, que em 1724 determinam que a cidade não possa exceder o número de estrangei-ros que já tem, e o próprio Imperador, que em 1726 proibe que se aumente o número total de morado'-res. Mas os motivos, tanto de um lado como do outro, foram sempre de natureza policial e não de sangue, mais de política económica que de política de segregação. Assim, se a Coroa por uma Carta de Lei de 5 de Maio de 1785 proibia formalmente todos os negócios com os estrangeiros, noutra de 1793 logo explicava que o princípio admitia excep-ções, como as referentes aos sobrecargas das Com-panhias: se em 1728 se viu o Senado desnaturalizar e expedir para Manila, Batávia e Madrasta numero-sos cidadãos, e, em 1733 a Igreja protestar, com veemência, contra o progressivo tráfego de mulhe-res, o certo é que em 1735 o jesuíta Du Halde re-gistava que o número de chineses era cada vez mai-or e que os portugueses continuavam a ser quase todos mestiços. Também em 1749, o Governo de Goa estabelecia em noventa e quatro o número má-ximo de artífices chineses especializados (70 artis-tas, 10 carniceiros e 4 ferreiros) e em cem o contin-gente de cúlis. Estas ordens, porém, como outras determinações anteriores ou posteriores, de Goa ou de Lisboa, sobre o volume de estrangeiros (assim voltaria a suceder em 1773, como remota consequência da acolhida dada em 1763 aos arménios e em 1772 a uma companha de húnga-ros), só com grandes deficiências foram sendo cumpridas. Por isso é que em 1808 e 1810 novas disposições legais do Governo-Geral da Índia, de 6 de Maio e de 7 de Março, respectivamente, estabe-leciam que se a admissão e moradia dos estrangei-ros continuava ser prerrogativa do Leal Senado, a ela devia proceder-se, contudo, nos termos gerais das instruções publicadas. O mesmo sucederia com as exigências chinesas, por exemplo, quando em 1832 o mandarim Tché-T'ong lançou um edital proibindo as chinesas de viverem em casas europeias «traficando femineidade» porquanto os navios que chegavam a Cantão eram logo aborda-dos por barcos carregados de mulheres «para fa-zerem delas escolha»123.

Em 1743 o número de chineses com domicí-lio permanente, homens e mulheres, já anda por três a quatro mil, cifra que os Portugueses só atin-giriam trinta anos depois, em 1776, embora o nú-mero de mestiços fosse já tão elevado que a Coroa determinara dois anos antes que entre os almotacéis do Senado lhes deviam pertencer sem-pre, pelo menos, seis lugares, ordem que seguia a linha da nossa política de indiscriminação.

Pelo seu lado, as autoridades de Cantão ti-nham, desde 1736, reforçado a sua presença com um mandarinato próprio.

É certo que o número de europeus e naturais vivendo em adição de usos e costumes — já que será sempre ilusório falar, estatisticamente, de chi-neses assimilados à cultura luso-cristã — cria con-fusão às duas comunidades: «vivem os chineses misturados com os europeus» lamentava-se o mandarim numa chapa de 1743; «gastam os portu-gueses o dinheiro em vãs ostentações orientais», rebita o Senado em 1744; e nesse mesmo ano (a 31 de Dezembro), publica até um bando proibindo os filhos da terra de usarem umbelas e perucas. Mas tantos se nos encontravam já enlaçados pelo casa-mento, em tantos os antepassados haviam podido gozar daquelas distinções, tantos como bons portu-gueses se haviam comportado nas crises da cidade, que logo o vice-rei anula o édito dos Senadores124.

Em 1725 o vice-reitor da Igreja do Japão, Padre Jacob Greff, numa resposta ao Senado pro-põe «que se não conduzam de Timor nem de qual-quer outra parte escravas para os habitantes da ci-dade pois antes seria bem aliviá-la da demasiada gente feminina e que se providencie para que te-nham que fazer as mulheres», — acrescentando — «que há tantas na cidade». Na mesma ocasião frei João de São Nicolau escreve ser grande o número de orfãos desamparados. Reacendia-se o costume de comprar raparigas (chinas e das navegações do Sul, sobretudo timores; mas também japoas e goesas) e agora eram já os próprios macaenses que o faziam, bem como os chineses domiciliados, e isso apesar dos esforços das duas autoridades. A «pressão feminina» era tida como uma das causas de perturbação da cidade. Tanto que o bispo frei Hilário de St. a Rosa não hesitaria mesmo em lançar pena de excomunhão sobre alguns revendedores e a Coroa não lhe ficaria atrás, pois ainda em 1759 e sobre uma exposição feita quatro anos antes pelo bispo D. Manuel Mendes dos Reis, determinara que o Senado considerasse «bárbara e nula a referida escravidão». Mas não só a ordem ficou ineficiente, pois ainda no século seguinte (1832 - 1870) os mandarins continu-afiam a queixar-se de que até os mouros compravam mulheres, tanto pucelas como já paridas, «e delas tinham filhos»125, como não alcançava a escravatura das negras e das timorenses havendo casas que pos-suíam dezenas delas. Além disso, sempre a Coroa procurou defender igualmente os direitos dos com-pradores, pelo que mais tarde D. João V determina-ria que o Pai dos Cristãos, nome porque era conheci-do o jesuíta que missionava os chineses e catecúmenos da cidade (gozando por isso de especi-ais regalias e de grande audiência no Senado), não pudesse retirar aos legítimos possuidores, sem pré-via autorização do Ouvidor Real, as chinesas que houvessem sido vendidas por seus pais. Ainda era tolerado que tivessem chinesas em casa, rapari-guinhas (amuis) para o trabalho doméstico. Mas não as poderiam vender.

«Para bem e conservação desta cidade e evi-tar careas com os Chinas, que sempre redundão em perda deste comum» resolviam pôr Editais ou lançar bando público, para que «nenhuma pessoa de qual-quer condição pudesse vender atais ou amuis a fo-rasteiro algum, nem mandar para fora da terra, sob pena de perderem os ditos atais e amuis, ou a valia deles e pagarem cem taeis de pena (e todo que for impossibilitado para a dita satisfação será castigado corporalmente como a este Senado lhe parecer) a qual quantia será aplicada para a reedificação das fortalezas desta cidade».

Vê-se, portanto, que nos três primeiros sécu-los continuou chegando gente de todos os quadrantes e gente que podia ficar e construir famí-lia, uma vez que respeitasse as leis do Reino. No livro do Registo das Ordens há cópia de um ofício do Conde da Ega, vice-rei da Índia, com data de 26 de Março de 1763, determinando que se deixassem até ficar os arménios. Aos moradores juntava-se a população flutuante dos cais e com o intercâmbio comercial apurara-se, ainda, uma outra classe social, a dos intérpretes ou línguas, também chamados jurubaças, jurerbaças ou jurumbaças126. Na maior parte já mestiços, foram igualmente absorvidos. To-das essas enxertias continuavam, é certo, levantando questões e tantas que no célebre colégio de S. Paulo o exame dos casos morais ou de consciência incluiu sempre problemas sexuais entre cristãos e infiéis, de tratos e contratos entre mulheres e homens que che-gavam já casados em outras partes, da validade dos casamentos não cristãos anteriores (que não sendo considerados matrimónios libertavam a pessoa para o casamento cristão), da compra de mulheres ou do seu abuso. Nas casas portuguesas continuava viva a intimidade entre os filhos dos patrões e as «bichas», termo dado na cidade às mui-tsai, raparigas chinesas trabalhando como criadas, mas já resgatadas pelo batismo e que «realmente criavam muitos filhos pró-prios e alheios».127 É certo que na opinião da Igreja elas não passavam de escravas disfarçadas por uma adopção religiosa, e por isso mesmo o Pai dos Cris-tãos sempre que podia as soltava. Mas também é verdade que quando o rei proibiu a sua existência o mal ficou pior, pois saíram das casas onde viviam paternalmente para uma prostituição disfarçada em pedintaria — esmolando de casa em casa e por mui-tas ficando dias ou meses... como se fossem casa-das. O que levou até o bispo Dom Alexandre Pedrosa a propor ao Governador que proibisse anda-rem a pedir de porta em porta as mulheres com me-nos de 25 anos (a seguir pediria mesmo que a proibi-ção alcançasse qualquer mulher até aos 40) e este último (Diogo F. Salema Saldanha) a repetir as ex-pulsões para Timor. Nas crises de miséria, viuvez ou desamparo viu-se também mulheres cristãs ou não, brancas ou de cor, sujeitarem-se sem resistência até aos gentios, demonstrando, assim, como era errado o conceito de que só as escravas e as filhas das escra-vas facilitavam com moradores e viajantes. A misé-ria conduzia à fome, à exploração económica, ao tráfego da própria carne. Os usurários aproveitavam—se cobrando nos empréstimos sobre penhores feitos a essas mulheres desamparadas ganhos superiores a 35 por cento! O que levaria este último Governador a propor à Câmara a instalação de um Monte de Piedade com juro legal máximo de 5 por cento.

Em 1746 o Imperador volta a proibir a resi-dência de viajantes nos portos do estuário, mas com a habilidade tradicional o Senado consegue que a ordem seja revogada meses depois, tanto assim que dez anos passados já se voltam a encontrar na cidade comerciantes franceses, espanhóis, dinamarqueses, suecos, holandeses e ingleses. Também mais cin-quenta anos rodados (em 1795) o Suntó de Cantão retirava outra vez (quantas já o fizera) a ordem que proibia a fixação de chineses na área de Macau.

Mas que voltas! Se em 1750 os mandarins tinham conseguido tornar efectiva a ordem de 1724 limitando a residência de estrangeiros, em 1776 éramos nós que dizíamos pelo Supremo Tribunal de Lisboa «que de forma alguma se deixassem es-tabelecer na cidade». Mas, como sempre, o Senado, só usou as leis gerais consoante lhe parecia serem ou não serem úteis à República (assim procedera por exemplo em 1748 ao contratar contra os despa-chos de Lisboa um cirurgião estrangeiro) e só foi cumprindo tanto os decretos como as chapas de modo aleatório. Tinha aprendido os métodos chine-ses. Se em 1718, como resposta às limitações co-merciais do mandarim da Casa Branca, decide que só possam habitar connosco duzentos chineses, fos-sem artífices ou trabalhadores não qualificados (cúlis), a verdade é que tal proibição não chega a ser cumprida. Também se algumas vezes fechámos nós próprios as portas de Macau, ou seja da China, aos estrangeiros (como ainda sucedeu em 1733 quando o governador António e Amaral Meneses, apoiando-se nos pareceres de quatro bispos, impe-diu que a cidade se abrisse aos que vinham expul-sos de Cantão), isso fizemos não por xenofobia ou por preconceito racial mas pelo temor de se perde-rem os costumes cristãos. De resto, logo em 1777 outro governador, que foi na circunstância o bispo D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães, dava tal ordem por injusta e terminada.

Durante o século XVIII aumenta o número de comerciantes europeus, os quais, embora os regula-mentos das suas Companhias lhes proibissem casar com mulheres do Oriente, aí as arranjavam e delas tinham filhos. No século XIX, o comércio do anfião, do chá e do tabaco, traria novos contingentes da Ín-dia e da América que acabaram, igualmente, incluí-dos no património populacional.

De resto, sempre a cidade, obra de comerci-antes e por conseguinte obra livre, recebeu e soli-citou até a presença de quantos estrangeiros lhe pudessem prestar serviço, em troca dos quais o Senado lhes garantia, como se vê em vários con-tratos, «o goso dos previlégios e honras permiti-dos aos portugueses».

Também o número de europeus nacionais variaria com os movimentos militares, já que além da própria guarnição da cidade, nela faziam escala, por vezes demorada e juntamente com os degreda-dos, os oficiais e soldados, conscritos ou voluntári-os, para Solor e Timor.252 Então as esperas e os transbordos permitiam amantismos e casamentos tanto que, por mais de uma vez, a última em 20 de Abril de 1872, se determinou que os militares e degredados ao retomarem o seu destino, «com eles levassem as suas mulheres». Em 1776 os cronistas já referem três mil europeus de várias nações; no ano seguinte (1777) é o próprio Bispo quem infor-ma que a população da cidade deve andar por seis mil cristãos portugueses, mestiços e chinas, e vinte e dois mil gentios. Outro censo, esse anónimo de 1780, dá uma população cristã livre composta exactamente de cento e oito portugueses da metró-pole e cinco mil nhons e nonhas (mixtos masculi-nos e femininos). Portugueses reinóis, mestiços, chinas, estrangeiros, sempre gente de todos os la-dos. Em 1785 Goa mandava mais artífices, pedrei-ros e carpinteiros, esboços de novas corporações. Havia frutos desses novos contingentes? Sempre. Nas listas das pessoas inoculadas em 1806, quando os médicos Francisco de Balmis e Domingos José Gomes iniciam pela primeira vez na China a vaci-nação anti-variólica128, figuram nomes de crianças filhas de portugueses, de naturais da cidade, de chinas da terra, de chinas das províncias vizinhas, de convertidos da Insulíndia e ainda de soldados de Goa, e de escravos cafres, timores, malaios e de outras zonas da Oceania, sem contar as expostas. Todo um mundo racial! E isto apesar das dificulda-des levantadas pelas autoridades chinesas, pois apesar dos continuados serviços prestados à sua se-gurança (ainda no ano anterior, de 1809, organizá-ramos a seu pedido, contra o pirata Apochá, uma esquadra tão forte que alguns cronistas chegam ao exagero de nela incluir mais de 16 000 homens e 1 200 bocas de fogo, volumes exagerados para a po-pulação e o poder de que dispunha a cidade), ape-sar disso, as mesmas autoridades, sempre movidas por motivos de polícia, exigem que se suspenda a construção de novas casas, a reforma das velhas, e sobretudo a entrada de mais negros; e o vice-rei de Cantão que se pare a entrada e a conversão de mais chineses. Isto quando as limitações do comércio já tinham diminuído a tal ponto os nossos contactos com os países do Sul, que em 1817 não se encon-trava na cidade um único língua para os negócios da Cochinchina.

A história da guerra contra o Apochá, é ilucidativa. Em 1805 tendo morrido durante uma tempestade o grande pirata Chong-yee, que assola-va as costas de Kuangtung, a viúva entregou o seu comando a um dado A-Pau-Tsai ou Apochá, contra o qual o Senado armou a pedido de Cantão, um brigue comandado por F. V. Pereira Barreto, por alcunha o Tigre do Mar, que o derrotou numa ac-ção que impressionou vivamente não só os chine-ses mas também as companhias europeias que nes-sa altura negociavam em Cantão (o ridículo que os ingleses quiseram lançar sobre ela já era uma ma-nobra comercial). Mas entretanto, A-Pau-Tsai, ar-vorando-se em condestável da legitimidade dinásti-ca, conclamou o país, incluindo todos os piratas, contra a intrusão dos tártaros. As hostilidades reco-meçam e de passo ele foi atacando os navios es-trangeiros, inclusivé os barcos de guerra ingleses. De novo armaram os macaenses com o dinheiro da cidade uma forte esquadra******** e antes dela se fazer ao mar o Senado e os governos de Cantão e de Quang-si concluíram em acordo********* cujo parágrafo sexto estabelecia taxativamente que quando a expedição estivesse finalizada, daria particular atenção ao Es- tado de Macau, de forma que ficasse restituído aos seus antigos privilégios129.

Ampliou-se a esquadra com mais navios********** e depois José Pinto Alcoforado, que era o chefe, en-trou em correspondência com A-pau-tsai, de quem era amigo, sugerindo uma rendição sob a protecção da nossa bandeira. Ao que ele respondeu, em 26 de Dezembro de 1809, propondo-nos a seu turno uma aliança militar e grandes recompensas no fim da campanha130.

Leais, porém, ao poder instituído rejeitámos a proposta e abrimos a guerra. Apochá foi derrota-do e sob a promessa de vir ser nomeado depois mandarim das forças marítimas, entregou-se à cida-de, apesar de dispor ainda de uma armada tão gran-de que as crónicas falam em doze mil homens e cinco mil mulheres muitas das quais se devem ter igualmente refugiado na cidade, já que em 1810 vemos o Senado preocupado na criação de estabe-lecimentos para mulheres dissolutas. Não que só elas o fossem, mas porque certamente fizeram cres-cer o seu número. Macau cumpriu a sua palavra, mas os mandarins não só nos não devolveram os antigos privilégios mas antes, pelo contrário, reno-varam toda a chave de restrições. Mais do que nós, porém, sofriam-nas os estrangeiros de Cantão que em 1830 ainda estavam privados de terem consigo mulheres dos seus países ou sequer mestiças portu-guesas contratadas como serviçais ou amas de lei-te131; ainda em 1832 os mandarins mandaram punir algumas línguas que os auxiliavam a subverter essa lei. E quando as dificuldades lá sobem, numerosas famílias retraem-se sobre nós.

Trinta e sete anos depois (1867) tínhamos em convivência connosco sessenta famílias estrangeiras: inglesas (17), espanholas (24), italianas (3), france-sas (4), peruanas (4), americanas (3), holandesas (1), prussianas (3) e chilenas (1). Mas se os mandarins aceitavam que os estrangeiros rejeitados de Cantão fossem ficar em Macau, então temia a Igreja que a sua presença fizesse subir a corrupção. A par disso, os chineses já eram tantos que a cidade poderia di-zer-se um estabelecimento chinês sob administração portuguesa. Sua raiz amarela era a única que conti-nuava crescendo. Nas Providências dadas em 1784 por D. Maria I e assinadas pelo Ministro do Ultra-mar Martinho de Melo e Castro, e que refletem um sólido conhecimento da situação administrativa da cidade, lê-se que a guarnição era mesquinha, de uns 70 a 80 homens, muitos deles orientais ou mestiços, mas que nela vivia uma grande quantidade de famí-lias chinas de nação em número três a quatro vezes superior às cristãs, portuguesas e chinas. Só a raiz mista ia também crescendo e essa multiplicação de descendentes conduziu, a seu turno, a uma tal consciencialização política que o Senado aproveita o triunfo do liberalismo para pedir, nas Constituintes de 1820, além da cessação dos subsídios que a cida-de ainda dava aos governos de Goa e de Timor, que nos empregos, tanto civis como militares, apenas fossem colocados os seus naturais.

Em 1822 contava 4315 cristãos, sendo 2 071 mulheres das quais 473 com menos de 14 anos; 537 escravos de ambos os sexos; e cerca de 8 000 chine-ses. Mas uma referência de 1825, contando sem dú-vida os chineses vivendo fora dos muros, já fala de 22 500 almas. Em 1827 o número de chineses ultra-passa 40 000, cifra que irá aumentar pela evolução político-económica que vai processar-se.

Só depois de 1614, quando se tornou perigosa a do Japão, é que se instalaram com periodicidade comercial as viagens dos outros europeus para Ma-cau e Cantão; dos ingleses desde 1684, dos america-nos desde 1784, dos holandeses desde 1729 (as ten-tativas de 1604 não resultaram) e dos franceses des-de 1698. Nos fins do século XVII instala-se a rota do ópio, entre Bengala e a China, primeiro de modo clandestino mas que no século seguinte formaria, oficialmente, a viagem dos opium clippers. É que em menos de quinze anos a China derrotada pela Inglaterra vira-se obrigada, por força do tratado de 29 de Agosto de 1842, a abrir ao comércio europeu algumas cidades litorâneas, como Amoi, Funchau, Ning-Pó e Xangai e, o que mais importou para nós, o porto de Cantão; 1513, 1554 e 1842 são, assim, as datas-chave na história das relações do Ocidente com o Celeste Império. No ano seguinte, como ré-plica de Macau, funda-se Hong Kong. Em resposta nós declarámo-nos, em 1845, porto franco e quando os ingleses se estendem pelos novos territórios ela-borámos também um projecto de expansão continen-tal, nosso mapa cor de rosa, que não passou dum sonho. A face da Ásia tem outro desenho. Tanto que ao acabar do século os destinos da China já não se discutem em Pequim, tratam-se em Londres, em Pa-ris, em Berlim e em Moscovo que a dividem em esferas de influência comercial e militar. À espreita está Tóquio. Isso duraria praticamente até à revolu-ção de Mao Tsé Tung.

Outra fonte de novos genes resultou do re-gresso de famílias de cúlis (Ku-li) emigrados, entre 1851 e 1875, para as Américas, sobretudo para o México, o Chile e o Peru: no período de quatro anos, entre 1868 e 1872, saíram 57 883 almas; e entre 1850 e 1873 trinta navios entraram no porto de Ma-cau só para o seu transporte. Tal emigração resultou da necessidade de ir buscar a outros reservatórios humanos a mão de obra que a extinção da escravatu-ra africana tirara aos motores das potências coloni-ais. A Inglaterra ainda dispunha dos coolis da Índia e por sua autorização lá se iam abastecer também à França e a Holanda. Mas como não eram suficientes, a importação de chineses começou então por Singapura, mas desde logo incluindo gente de Ma-cau, onde ainda os foi buscar o próprio Brasil (a primeira vez em 1855) apesar do receio logo posto por alguns dos seus políticos dos possíveis cruza-mentos entre chineses e brasileiros132. Macau, como os portos de Cumsingnoon, Amoi e Swatow, só fornecia directamente para as costas americanas do Pa-cífico, sobretudo para o México, Cuba, o Peru, e o Chile, e de início quase exclusivamente homens. Quando, porém, uma mais ampla legislação passou a permitir também a emigração de mulheres, que nas novas zonas de trabalho começaram a empregar-se em serviços domésticos, como criadas, logo surgi-ram crioulos chineses.

Esse mercado, que bem se parecia com uma agência de contratos forçados e alguns teóricos cha-maram até uma forma de escravidão, foi regulamen—tado sucessivamente em 1853, 1855, 1856, 1859, 1860, 1868, 1871, 1872, 1873 e finalmente proibido em 1874, data a partir da qual muitas famílias volta-ram já cruzadas com ameríndios (Márgidas e Centrálidas, da América do Norte e do Centro, e Ândidas, da América do Sul), ou até com mestiços hispano-ameríndeos, para se diluírem, de novo, no sangue macaense; e numa percentagem que me pare-ceu ser importante, pois só numa primeira série re-gistam-se 15 138 remigrados. E é curioso referir que aquela emigração levantou graves questões de direi-to, violentas campanhas de Hong Kong contra Ma-cau, e repetidos relatórios do Parlamento Inglês (ne-las interveio como consul Eça de Queirós), as quais só vieram a acabar quando a Inglaterra, alegando fins proteccionistas e humanitários, monopolizou esse tráfego a seu favor, fazendo com os cúlis como procedera com os cafres.

O problema não era totalmente novo, pois os chineses naturais de Macau sempre apresentaram forte tendência para a emigração, para a Oceânia, para Singapura, etc., e só a comunidade existente em Manila, verdadeira extensão da província de Fuquien, possuía, em 1643, três procuradores. Em 1857 e 1858 houve também um pequeno engajamento para Moçambique destinado à pescaria de pérolas em Bazaruto, à domesticação de elefantes e à cultura de canela, noz de moscada e craveiros girofe, mas ignoro se tais chineses regressaram a Macau e em que condição de cruzamento. Hoje exis-tem ainda no Continente algumas comunidades por-tuguesas: em 1927, a de Hong Kong compreendia 2 238 pessoas e a de Xangai, 1861.

Casa de arquitectura corrente de estilo ocidental. Cena de rua em Macau, 1841. (Reprodução Diazzo de um desenho a tinta de George Chinnery.

Colecção Museu Luís de Camões).

Data de 1850 a emigração política dos chi-neses do interior (nesse ano de Cantão e em 1869 de P'eng-Lám) que iria prolongar-se, embora por motivos variáveis, até aos nossos dias. Desde en-tão, a chegada desses homens sem paz, ou à procu-ra de uma outra paz, e de que o exemplo maior viria a ser o próprio Sun-Yat-Sen, nunca teve fim. Também com a última guerra aumentou o contin-gente dos soldados europeus e africanos e deu-se um repregueamento de famílias de descendentes habitando Cantão e Xangai, o qual quebrou as últi-mas barreiras sociais, até porque traziam mulheres de rara beleza. Muitas delas deslocaram-se posteri-ormente para os Estados Unidos da América. Con-tudo, só num dos refúgios que visitei em 1960 ain-da viviam 316 luso-descendentes, incluindo 208 adultos (98 homens e 110 mulheres) e 108 crianças (52 masculinas e 56 femininas). Nas suas moradias não havia qualquer barreira social, o convívio das jovens com europeus era muito íntimo e algumas estavam grávidas. Tais ondas de refugiados conti-nuam a alterar a composição genética da cidade. Uma última demão está a ser dada pelo turismo. Macau continua uma encruzilhada de culturas e de sangues.

**Francisco Ferrão, que naufragou na Indonésia, quando alguns anos depois morreu em Ternate deixa uma viúvajavanêsa e dois filhos. Em 1545 uma princesa de Macássar apaixona-se por um fidalgo, D. João de Heredia, foge para a sua caravela e ele leva-a para Malaca onde se casam. Na mesma cidade de Macássar, um comerciante português de grande importância casa com a irmã do Sultão; e é desta cidade que em 1660 alguns portugueses fogem para Macau e alguns com suas mulheres. Segundo a lenda também o fim da nossa fortaleza de Ende, que foi destruída em 1630 foi o termo de um romance de amores exóticos entre uma floriense e um capitão, romance que o Presidente Soekarno descreveu num sandiwara (poema). (A. Pinto de França, Influência Portuguesa na Indonésia. Studia. 33. Dez. 1971, pp. 151 -234.)

***Formada pelas naus Dragon, Catherine e Sun, primeira representação naval da Companhia das Índias ao Imperador da China.

**** Do seu lado, e com o tempo isso nos ajudaria, a Companhia Inglesa (East India Company) fundada em 31. XII.1600 recebera da rainha Isabel o monopólio desse comércio o que a poria em desavença (competições) com a sua associada das Índias Holandesas.

***** Era a nau Santa Catarina, de 1.400 toneladas, com 750 pessoas a bordo, incluindo umas cem mulheres e crianças, e que ia de Macau tão carregada que o seu leilão renderia três milhões e meio de florins.

******Princípio geral que todos os responsáveis entendiam. Tanto que dezoito anos depois, a 22 de Abril de 1757, o Arcebispo Primaz de Goa, escrevia para o Senado que «obrigasse os moradores (até) os mais opolentos a ficarem nela e que de nenhuma forma consentisse em que alguns deles, com suas famílias mudassem para outra parte sem expressa licença, nem ainda havendo a de Sua Magestade, sem o nosso cumpra-se». (O sublinhado é meu.)

*******No nosso código não figuravam nem o direito de albinágio, nem o de detracção, nem o de naufrágio.

********Sendo principal contribuinte o Conselheiro Miguel de Arriaga Brum da Silveira, a quem mais tarde por isso mesmo, o Príncipe Regente reconduziria no lugar de Ouvidor e daria mercês por duas vidas.

*********Assinando os mandarins Shon-Kev-chi, Pom e Chu, pelos chineses e aquele Conselheiro e o procurador José Joaquim de Barros, pelo Senado.

**********Inconquistável, sob o comando de José Pinto Alcoforado; Pala Conceição sob o comando de Luís Carlos Miranda; Indiano, às ordens de Anacleto José da Silva; o brigue Princesa Carlota, dirigido por António J. Gonçalves Carocha; S. Miguel, por José Feliz Remédios e Belizario, por José Alves.

NOTAS

1Fernão Mendes Pinto. Peregrinaçam. vol. c. 116 e 143, Portucalense Ed. Porto, 1945.

2D. Jerónimo Osório. Da vida e Feitos d'EI Rei D. Manuel, cap. III, Lisboa 1806, p. 215.

3As referências de Femão Mendes Pinto aos costumes sexu-ais dos chineses, fazem dele, com Duarte Barbosa, no livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente, o Garcia de Rezende da Miscelania e D. Francisco Manuel de Mello (Epanáfora Amorosa), um dos criadores da sexologia com-parada.

Para uma psicografia erótica da Nação Chinesa ao tempo dos Ming, ainda por fazer, haverá também que consultar cente-nas de desenhos espalhados por todo o mundo. Só G. Gulik dá referência deles na Austrália (Universidade de Sidney; Hospital do Rei Jorge); na Bélgica (Universidade de Lovaina); em França (Biblioteca da Sorbona, Biblioteca Nacional, Museu Guimet); na Alemanha (Universidades de Bona, Hamburgo e Munique); na Inglaterra (Museu Britânico, Bibliotecas das Universidades de Oxford e Cambridge, Biblioteca da Escola de Estudos Africanos e Orientais, Universidade de Londres); na Holanda (Biblioteca Real de Haia, Biblioteca e Museu de Leiden, Biblioteca das Univer-sidades de Amsterdam e Utrecht); na Índia (Academia Internacional de Cultura Indiana, Biblioteca Central de Arqueologia em Nova Delhi, Museu do Estado de Baroda); na Itália (Instituto Italiano para o Médio e Extremo Oriente); na Suécia (Museu de Antiguidades Orientais, de Estocol-mo); na Suíça (Instituto Antropos, de Friburgo); e nos Estados Unidos (Biblioteca do Congresso, Galeria de Artes de Washington, Museu Metropolitano de Nova Iorque, Museu de Belas Artes de Boston, Instituto de Psicoanálise de Chicago, o Instituto de Pesquisas Sexuais da Universidade de Indiana e, nas Bibliotecas das Universidades de Chicago, Columbia, Califórnia, Michigan, Harward, Yale, Stanford e Washington-Seattle). Acrescento que se podem procurar ainda nos reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa e na Sociedade de Geografia de Lisboa.

4Jan Huygen v. Linschoten. Itenerário, Voyage ofte Schipveert van J. H. v. L. naer Cost Oft Portugaels Indien, Amsterdão, 1596.

5Num comentário ao estudo de Wilhelm Storck. Vida e Obras de Luis de Camões. Versão e anotações de Carolina Michaélis de Vasconcelos. Ed. ad Acad. Real das Sciencias, Lisboa, 1897, p.583.

6Boletim Eclesiástico de Macau, Abril de 1937 (pp. 726 -400); Padre Manuel Teixeira. Macau e a sua Diocese, Macau, 1937. v III, pp. 211 - 226. (O número de luso-japoneses deve ter sido grande e alguns vieram fazer estudos eclesiásticos em Macau como o jesuíta Pedro Marques (1575 - 165?), que nasceu em Nagasáqui, introduziu o Evangelho na ilha de Ainão e missionou também no Japão, ignorando-se se apostatou ou não em consequência das torturas.

7Referência pessoal do P. Videira Pires.

8Tcheong-u-Lam e Iam Kuong-Iâm. Ou-Mun-Kei-Léok (Monografia de Macau) traduzida por Luís Gonzaga Go-mes, Macau, 1950.

9N. Wernek Sodré. Introdução à Revolução Brasileira. Rio de Janeiro 1963, p. 157.

10Marques Pereira. Tay-Ssi-Yang-Kuo. I, II (11): 704. 1889. Graciete Batalha in Estado actual do dialecto macaense (Rev. Port. Filolog. Coimbra 9(1/2): 177 - 213, 1958) recolheu no crioulo de Xangai outra versão:

Ramalhete fêito

Na ponta do lenço

Que Càzá cõ preto

Te grande sintimento.

11Assim se lhe refere o padre Francisco de Sousa, (Oriente conquistado...) a propósito do pagem cafre que o Padre Visitador Alexandre Valignani levava consigo em 1579. Contudo a novidade seria apenas para aquela geração, porquanto o Império já tivera escravos pretos. Ler The importation of negro slaves to China underde T'ang dinasty (A. D. 618 - 90?) in Catholic Univ. of. Peking Bull. 7: 37 -59, 1930.

12Manuel Diegues Junior. Regiões Culturais do Brasil. Rio, 1960. p.195.

([...] descendiam dum modo geral de povoadores de cultura neolítica, dos quais se fixaram primordialmente entre osindígenas brasileiros os traços somáticos de mongolóide e os traços culturais dos ciclos secundários. Conheciam embar-cações, usavam o arco e a flecha, pescavarn. A estes quadros culturais veio juntar-se, ou justapor-se, ou sobrepor-se o elemento lusitano.)

13António Fialho Ferreira. Relaçam da viagem, que por ordem de S. Mg. e fez A. L. L., deste Reino a cidade de Macau na China: e felicissima aclamação de S. M. El Rei Nosso Senhor Dom João o IV, que Deos guarde, na mesma cidade, e parte do Sul. Lisboa, 1643. Refere a existência em Macau de negros fugidos de Batávia.

14Gaspar Correia. Lendas da Índia, 1. II, t. 2, p. 221, ed. de Lisboa de 1860.

15Fernão Lopes de Castanheda. História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, l. II, c. 112, p. 355, Coimbra, 1924. ed. Lisboa 1833.

16Duarte Barbosa. Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente. Madrid, 1563, p. 204 da ed. de Lisboa de 1946. (Natural de Lisboa, cunhado de Fernão de Magalhães e como este assassinado pelos selvagens de Zebu, Duarte Barbosa escreveu o seu livro em 1516. Editado primeiro em italiano, a cópia portuguesa foi incluída em 1812 na «Colec-ção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios portugueses ou lhes são vizinhas» publicada pela Academia Real das Ciências.) Em 1928, saiu uma nova edição em Lisboa, com notas de Augusto Reis Machado.

17JosephWicki. Documenta Indica I,253-255, Roma, 1948.

18Graciete Batalha. Língua de Macau. O que foi e o que é. Série de 11 artigos publicados no Notícias de Macau, em 1958, e reproduzidos, com alterações em 1974, num opúsculo: Língua de Macau. O que foi e o que é. Havia setenta e sete anos que J. Adolfo Coelho ao estudar os dialectos românicos ou neo-latinos da África, da Ásia e da América se ocupara também deste. J. L. Hart Milner, consagrara em 1883 um capítulo da sua Gramática prática da língua portuguesa, impressa em Macau, à pronúncia viciosa de algumas pala-vras. Em 1892 J. Leite de Vasconcelos repos o seu estudo no Congresso Internacional dos Orientalistas.

A pressão do vocabulário chinês parece ser em geral fraca. Assim é que apesar da China ter estabelecido relações, muito cedo, com os povos malaio e javanês poucos termos aí deixou implantados. E as razões seriam as diferenças de raças e religiões, o carácter fechado e orgulhoso do chinês, as reais diferenças existentes entre os génios desses idiomas e, sobretudo, o contraste entre o chinês e o malaio gramatical-mente simples e claro.

Ler aeste propósito o apontamento de A. Marre «De l 'introduction de termes chinois dans le vocabulaire des Malais» in Mélanges Charles de Harlez. Leyda, 1896, pp. 188 - 193, e «Malais e Chinois; coup d 'oeil sur leurs relations mutuelles anterieurement a l'arrivée des Portugais dans les Indes Orientales», referido na mesma colectânea.

Morais Barbosa entende que a construção do patoá macaen-se sofreu forte influência caboverdiana, o que me parece estranho dado o pouco volume da sua presença demográfica. (J. Morais Barbosa. A língua portuguesa de Macau. Coloc.

Prov. Port. Orient. V. 2 p. 147, 157 Lisboa. 1968)

19Luís Gonzaga Gomes — Informação pessoal.

20Carta de 10 de Maio de 1737. Ref. por Arthur Viegas. Ribeiro Sanches e os Jesuítas. Amigo ou Inimigo ? Rev. de Hist. 9 (36):264, 1920.

21António Bocarro. "Descrição da cidade de Deus na China" in Livro das Plantas de todas as Fortalezas e Povoamentos do Estado da Índia Oriental, Mss B. M. 1635.

22PeterMundy. Descrição de Macau em 1637, Mss Revol. A. 315, Bodleain Lyb, Oxford. Ed. Hakluyt Soc. Londres, 1919.

23De uma geografia quinhentista anónima, escrita entre 1540 e 1557, existente no Arquivo dos Marquezes de Fronteira e que Luciano Ribeiro supõe ter servido a João de Barros ou ter sido escrita pelo próprio autor das Décadas. Ver Studia, 7: 151-318,1961.

24Ms BPE CV/2, 7 Fols. 75 L. 27.

25Padre Francisco de Sousa. ob. cit.

26Alexandre Hamilton — A new Account of the East Indies. Edimburg, 1927.

27J. Caetano Soares. Macau e a Assistência, p. 28, Lisboa 1950.

28Pe. Manuel Teixeira. Os Macaenses,. p. 32, Macau, 1965.

29The Travels of Peter Mundy in Europe and Asia. (1608 -1667), 5 vols. Londres, 1907 - 1936. No vol. III, parte 2. a, pp. 156-316 (tradução port. em Major C. R. Boxer «Macau na época da Restauração», Macau, 1942, p. 51 - 75. (Benjamim Videira nota que talvez por isso a mãe fosse japonesa, a não ser que Peter Mundy confundisse o kimono com a cabaia chinesa.)

30Fernão Mendes Pinto. Ob. cit., v 7., 1 221, p. 60.

31Tratado em que se cõtam muito por extêso as cousas da China, cõ suas particularidades e assi do reino dormuz, cõposto por el R. padre frey Gaspar da Cruz da orde de Sam Domingos. Évora, 1569. p. 132.

32P. Alvaro Semedo. Relação da Grande Monarquia da China. Trad. de L. Gonzaga Gomes. Macau, 1956: I v, p. 70. Escrito à roda de 1637 e impresso a primeira vez em 1643, a primeira edição francesa — Histoire Nouvelle de la Chine — foi impressa em Lyon em 1667.

33Tomé Pires. Summa Oriental, Londres, Hakluyt Society, 1944, p. 393.

34Luís Gonzaga Gomes. História de Macau, cap. XX (obra inédita). E ver também, J. A. F. Morais Palha. De Portugal a Macau através da História, Macau, 1929, p. 109.

35Recolhida por Graciete Batalha em 1962. (Mogarin, refere o Conde de Ficalho nos comentários dos Colóquios de Garcia de Orta, é o nome de uma flor com que se enfeitavam as mulheres indianas; e tancareiras o das mulheres tripulan-do barcos chineses. Graciete Batalha comenta a propósito: « [...] quatro versos e por mercê de três palavras apenas toda uma síntese do que foi Macau: com os termos mogarim e canarim fala-nos da vigorosa presença de Cabo Verde e da Índia Portuguesa dos tempos idos e com o híbrido tancareira até ao Macau que conhecemos hoje. (Aspectos do Folclore de Macau. Bol. Inst. Luís de Camões v2, t2, 1968.)

36Petição de António Fialho Ferreira ao rei D. João IV, Ms AHU Índia p. 1641, rep. por Alberto Iria in Navegação Portuguesa no Indico no século XVII, Lisboa, 1963, p. 79.

37Instruções do governador-geral holandês de Batávia, Jan Pieterszoon ao Almirante Komelis v. Reyerszoon, ref. por C. R. Boxer — Macau na época da Restauração (Macau three hundred years ago), Macau, 1942.

38Graaf, H. J. de — Le role du «Pasisir» javanais (Côte Septentrionale). dans les échanges entre l'Europe et les Moluques. Studia, Lisboa, 11: 413 - 425, 1963. Sobre o expansionismo holandês no Sudeste Estasiático e a história da «Vereenigde Oost-Indische Compagnie» pode ler-se George Masselman. The Cradle of Colonialism, Londres. 1963.

39Nederl. Kolon. Arch. Dan Haag. Mss. Macau. 566 - 567. «Quanto ao comércio, os habitantes navegam na época das monções, sendo a maior parte deles Chineses para Manila, porém para o Japão só os Portugueses que conhe-cem as marés e para ali levam as suas manufacturas, seda branca crua, roupas de algodão e cânhamo, porcelanas e outros belos artigos; vermelhão, mercúrio, liga de chum-bo e estanho ou, alúmen e diversos outros materiais. Eles partem de Manila em Abril com três a quatro navetas ou juncos com a monção do Sul, voltando geralmente no mês de Outubro; os de Macau velejam cerca de meados de Julho, e mais tarde, para o Japão e regressam no mês de Novembro com a monção do Norte, sendo geralmente 4,5 a 6 navetas ou embarcações, que no regresso trazem apenas prata, e cada um para a sua casa alguns curiosos trabalhos de prata e de laca e outros artigos vitais.

Nesta viagem ao Japão não é permitido ir senão àqueles que para tal são designados pelo Conselho, cujos nomes são inscritos em listas afixadas às esquinas das ruas principais. No caso de alguém desejar então dar alguma coisa em comissão às referidas pessoas é também lá anunciado; e paga ao dito aventureiro, para salários e provisões, a comissão de 5 por cento, e assim quando permanece no Japão ele recebe pela prata 2 por cento. Até ao ano de 1630, a citada viagem não era feita por nenhum particular, mas unicamente pelos próprios conselheiros da cidade de Macau, cujo benefício ou adiantamento vai para pagamento aos soldados e conservação das fortifica-ções e similares. Um tal Lopez Carmiente Carnavallo, tendo partido para Goa solicitou ao vice-rei que lhe fosse permitido só a ele fazer a viagem por três anos sucessivos, ou que se dignasse conceder tal coisa, assim como ele finalmente se pos também de acordo com o dito vice-rei em acrescentar que sem ordem sua a ninguém era permi-tido navegar para o Japão ou Manila, o que lhe trouxe também um enorme lucro. E como isso agora diz respeito ao rei, e não à cidade de Macau, os lucros não são tão grandes como no passado; decorridos que foram aqueles três anos, o vice-rei enviou para lá um superintendente dos bens reais.

Em tempos anteriores ou antigos eram todos os anos levados de lá para o Japão em barcaças grandes 2 a 3 000 picos de seda. Navegam ainda da referida cidade anual-mente navetas e juncos, fragatas e embarcações mais pequenas para Tonquim, Quinão, Xompa (Siompa), Cambojda, Macassar, Solor, Timor e outros lugares, visto que vão buscar lucro que a todos é consentido, mas que se faz com grande perigo para ser tirado das nossas embarca-ções. No ano 1631 um tal António Lobo empreendeu esta viagem para Macassar, Solor e Timor com permissão do rei, pensando colher uma enorme quantia de dinheiro, porém os habitantes de Macau não se resolveram a deixar o citado António fazer sozinho aquela viagem, em prejuízo deles, pelo que a dita autorização nunca foi posta em prática, tendo cada um liberdade de a efectuar sem que ao rei seja pago algum tributo por isso.

O mandarim chinês recebe de cada navio imposto de ancoragem, que é pago pelo capitão, todavia os mercado-res com o pagamento do seu frete estão isentos dele. Dentro de Macau não se fabricam manufactos, nem arti-gos, porém tudo o que serve para a referida viagem tem de ser trazido de Cantão em juncos e embarcações. Para isso, efectuam-se ali dois mercados anuais, altura em que alguns mercadores de Macau recebem o encargo de, para si próprios ou para outros, adquirir as mercadorias; eles também ajustam para o próximo mercado aquelas manu-facturas que julgam virão a ser necessárias, dado que eles ficam também às vezes por lá 4 a 5 meses. Para aqui não é permitido, como se disse, vir ninguém, mas unicamente os comissários nomeados que embarcam num grande navio, chamado lanteia, que são chatas largas e côncavas de 300 a 400 dasten> (medida de arqueação de navios correspondente a cerca de 2 toneladas), sem nenhum coberta; depois tem no meio um passeio como as galés; não navegam muito para além dos rios e em cada porão são carregadas todas as mercadorias e, com capachos de palha, que são lá feitos, são devidamente preservadas. Os referidos comissários preparam a bordo das lanteias as suas cabinas e beliches, visto que durante o tempo em que lá transaccionarem precisam de estar recolhidos. Levam para lá prata e trazem de volta artefactos, auferindo dois por cento. A razão por que os Portugueses lá em Cantão não alugam nem compram casas é devida a que, embora os Chineses sejam de índole cobarde, eles são, não obs-tante, na sua própria terra destemidos e mal-intenciona-dos, e assim para evitar que surjam afrontas e questões permanecem nos seus barcos. Quando eles chegam aos arredores de Cantão, prendem as suas lanteias a uma ilhota, lançam ferro no rio voltados para a cidade, na qual se ergue um grande e belo pagode, que tem uma escada superior, donde eles levam um presente ao vice-rei, e na ausência deste ao governador, tal como juntos haviam decidido segundo um costume antigo; e a quantia é nada menos do que quatro mil reais, e às vezes mais, só para obterem o consentimento para o comércio livre. Tendo-o conseguido, entregam o seu dinheiro aos mercadores para os tecelões aprontarem os teares e as ferramentas; ajus-tam as mercadorias que desejam; segundo estes contratos pedem autorização para poderem organizar mercado pú-blico com iguais homenagens (presentes) como acima se fez. Esta licença serve para que cada Chinês que tenha algo para vender, seja seda, artigos de seda ou outras mercadorias, possa trazê-lo e negociá-lo livremente na-quela ilha, procurando assim carregar completamente as lanteias, que são em geral duas. Quando elas estão carre-gadas, eles têm de pedir novamente autorização para poderem partir, que é o mais difícil e penoso de tudo, visto que sem chapa ou selo do vice-rei não é permitido navegar rio abaixo, o qual sabendo que era o tempo de navegar para Macau, fá-lo perder e forja desculpas; agora ele está enfermo, ninguém lhe pode falar; depois, está fora na sua casa de jogo a divertir-se e detem-nos, para obter maiores presentes e tirar maiores proveitos, e isso até finalmente terem de resolver presenteá-lo com outro tanto, isto é, 8 000 reais, além de outras dádivas menores, que eles têm de fazer; além disso, na descida do rio junto a um sítio chamado Antão têm de desalfandegar as suas lanteias; navegam constantemente em comboio com algumas ‹choas›, que são embarcações chinesas de 10 remos, tendo cada uma dois remadores, com cerca de 20 solda-dos. Estas ‹choas› são 10 a 12, e quando existe algum perigo vão em maior número.

Também aqui vêm diariamente algumas pequenas embar-cações chinesas a que chamam ‹berchas› (ou ‹riscos›, já que navegam à sua própria responsabilidade), pois se elas fossem levadas por outros Chineses ou denunciadas eles seriam mortos sem remissão, dado que a ninguém é consentido navegar sem o , pagando o imposto régio. Nesta cidade de Macau há algumas excelentes lojas, assim como grande número de Chineses que andam em volta das casas com fardos e tecidos de seda, para os vender; e quando sabem que um estrangeiro chegou do mar e que traz prata correm para lá diariamente, para vender a sua mercadoria, em tão grande número e tão diligentemente que é preciso pô-los à força fora da casa, pois são uma nação muito ávida de dinheiro e sempre à busca de ganho. Finalmente deve dizer-se que Macau pode bem considerar-se a melhor, a mais rendosa e a mais forte cidade das paragens do Índico, fazendo-se nela o comércio de oiro segundo o toque, prata fina, seda branca crua, inúmeros artefactos e panos doirados, pérolas, rubis, almíscar, mer-cúrio, liga de chumbo e estanho (‹tintumago›), porcelanas finas, raízes da China, fuibardo, etc. »

40Jean Huges Linschoten (nascido em Haarlem em 1563) foi quem revelou aos holandeses os caminhos do Extremo Oriente, entregando-lhes os roteiros que em Lisboa, em Goa, em Macau e na Terceira conseguira subtrair aos nossos segredos. Quando regressa, em 1589, com menos de trinta anos e mais de doze de aventuras, compila as suas observações de viagem, autênticos diários de navegação com descrições de usos e costumes indígenas, corografias, cartas de terra e mar, roteiros de viagem, e cálculos de navegação, que edita em 1591 e foram logo depois verti-das para inglês e alemão e em 1599 para latim (Nacigatio ac Itinerarium in Orientalem sive Lusitanorum Indiam) e em 1610e 1619 para o francês: Histoire de la Navigation de Jean-Huges de Linschoten Hollandais aux Indes Orientales contenant diverses Descriptions des lieux jusque a present decouverts par les portugais. Noutra edição de 1638 anunciavam-se expressamente as rotas portuguesas. Estava em Sevilha em 1579, quando imprevidentemente o Arcebispo Fonseca o levou como secretário para Goa. Apropriou-se então de segredos do Governo, de alguns roteiros e outros documentos de navegação, que uma vez na Holanda publicou em 1596. A seguir ao célebre Itinerário, com a designação de Reys-Gheschrift van de Navigaten der Portugalosers in Orienten inhoudende de Zeevaert soo van Portugael naer Oost Índien weder naer Portugael, divulgando muitos dos nossos segredos marítimos. O interesse que despertou na Europa pode medir-se pelo número de edições que se lhe seguiram, no país e em França. Os seus desenhos revela-ram-se, por outro lado, tão correctos que comparando-os com os modernos, Albert Kammerer pôde localizar mui-tos pontos indecisos dos nossos cronistas e completar a história das escalas portuguesas da navegação da China. Morreu em 1611, com 48 anos.

Pelo seu espírito de aventura já foi chamado de Marco Polo holandês (Charles McKnew Parr. The Dutch Marco Polo, New York, 1964). Entre a bibliografia portuguesa sobre o autor e o seu Itinerário indique-se: J. Barassin. Jean Hugnes Linschoten, Studia, Lisboa, 11:251-255,1963, H. Houwens Post. J. H. v. Linschoten administrador da casa do Arcebis-po de Goa e espião da Holanda: 1538 - 1587, Ocidente, 58 (263): 123-130,1960.

Depois de Jean Huges Linschoten, outro holandês, Cornelius Houtman, 1. ° piloto holandês do Oriente conseguiu, embora isso lhe custasse a liberdade, novas cópias de roteiros, que foram juntar-se à colecção de «25 cartas de todo o universo» que a Companhia comprara ao cartógrafo português Bartolomeu Lasso.

41Bijdragen tot de Taal — Land — en Volkenkunde van het Koninklijk Instituut voor Taal. Land en Volkenkunde, B. K. I.48:598,1898.

42De Jonge, Opkounst, II, 243.

43Valenkyn, IV, Tsjina, 5.

44P. Fernão Guerreiro. Relaçam anual, Lisboa. 1605. Ref. do t. II, p. 9 da ed. de Coimbra de 1931, Mss B. N. Paris. Colecção Dupuy, códice 39,1. °, 124, 134, Relation de la Victoire réemportée par les Hollandais sur les Portugais aux Indes orientales, pres de Malaca, 1616.

45Marcello Caetano. Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos. Da liberdade dos mares às Nações Unidas, Lisboa, 1963, p. 1.

46W. P. Groenveltt. De Nederlanders en China (1601 - 1621). LaHague1898, pp. 11-19.

47BPE Mss. Res. 364 - 67.

48Boxer, C. R.. Breve Relação da vida efeitos de Lopo e Inácio Sarmento de Carvalho grandes capitães que no século XVII honraram Portugal no Oriente, Macau, 1940.

49C. R. Boxer. A derrota dos Holandeses em Macau no ano de 1622, Macau, 1938.

50Acta do Leal Senado: Rellação da vitória q' a Cidade de Macao na China teve dos Hollandeses aos 24 de Junho no anno de 1622 e foi tresladado no anno de 1754: São 23 lanchos carregadas de homens de armas, que com grandes curriadas desbaratam os poucos portugueses que os esperam: 60 a 80 portugueses e uma escassa centena de filhos e homens da terra, mal protegidos por um vale de areia, que fogem para a cidade. Enquanto duzentos ho-mens ficam desembarcando a artilharia, os outros mar-cham a descoberto sobre a cidade. E é então que ao repique dos sinos de todas as igrejas e o padre Rho disparando sobre eles uma grossa peça do Monte de S. Paulo e outras mais pequenas, são atacados pelos nossos com tanta decisão que se desbaratam, perdem o tino, procuram reagrupar-se dentro das searas e por fim, fo-gem, em desordem, tão soltamente para as barcaças onde uns cem se afogam ao quererem subir. Outros se matam entre si, lutando com as tropas que estavam nas praias e não os querem deixar fugir. Por fim, fogem também, deixando ao todo 300 mortos, afogados e feridos: e «seriam muitos mais se os cafres e moços de serviço se não ocupassem em os despojar e degolar a todos, como fizeram em honra de S. João Baptista em cujo dia estes hereges ficaram mortos no campo». O espólio que deixam é também grande, incluindo artilharia, bandeiras, tambo-res e cerca de mil armas.

51«Moradores, mulatten, mamlucquen, brazilianen, alls negros», segundo um relato holandês de 1645 referido por Gilberto Freyre in Casa Grande e Senzala, 9. ḁ ed., Rio, t. 2, 1958, p.478 e 558.

52A comunidade de S. Paulo não contava com pessoal fixo. Julga-se, no entanto, que teria em média uns 40 a 60 jesuítas ocupados nas obras do colégio e do Seminário além de outros em trânsito para o Japão e para os «reinos amigos». Como escreveu Jaime Cortezão, a propósito dos Padres Matemáticos no Brasil (Studia, Lisboa 1: 144, 1958), «o homem nacional irrompe através de roupeta, por vezes num irreverente contraste com a austeridade da regra religiosa».

53Jaime Cortezão. História de Portugal, ed. de Barcelos, v. 3, p. 382.

54Chinese Repository, I. p. 370.

55Listra de lajente efectiva que ay em esta Cidade assy vesinos como extravagantes, forasteros, e gente de la tierra. Anno 1625. BPE Mss 1625 CXVI/2 - 5/ fol. 225.

(Comentando este passo, o P. Eusébio Arnaiz concluiu pela existência de 1700 lares cristãos e atribuindo um número de 15 pessoas cristãs por lar, incluindo os escravos, deduz para o ano de 1653 uma população cristã de 25 000 fiéis.)

56António Bocarro. Década XIII da História da Índia, ed. Ac. Sc. Lisboa, 1876.

57Mss BPE CKV/2, 1 Fol. 159 (Atlas Bocarro).

58Mss BPE CV/2, 7 B.

59«Cercada por muralhas; tem três montes com os seus fortes construídos sobre eles, como num triângulo. O mais importante e o mais forte destes castelos é chamado de S. Paulo, onde o general António de Mascarenhas, ao tempo capitão da cidade, residiu; tem 34 peças de artilha-ria, todas de metal, a mais pequena das quais pode disparar 24" de ferro. O segundo forte, denominado de Nossa Senhora da Penha de França, possui no interior uma ermida e seis peças ligeiras de 6 a 8" de ferro. O terceiro forte, designado de Nossa Senhora de Guia, eleva-se no exterior; não oferece vantagem, somente que este monte domina os outros em altura; está munido de 4 a 5 peças de artilharia; tem também uma ermida dentro das suas muralhas. Dos ditos montes e fortes a cidade é alertada com o repicar dos sinos sempre que algum navio é enxergado ou avistado, do mesmo modo logo que do forte ou do monte de Nossa Senhora se divisa alguma vela repica-se igualmente o sino. Além disso, esta cidade possui quatro baluartes em baixo, três dos quais situados à beira da água ou do mar, e o quarto do lado da terra.

O primeiro é chamado o baluarte de São Tiago da Barra, onde tocam os barcos; é bastante sólido e bonito; visto ao longe é como se fosse uma outra cidade, por causa dos seus grandes edifícios e casernas dos soldados que dentro dele se encontram; tem em cima um reduto para servir de refúgio sobre o monte. Aqui existem 16 peças pesadas, das quais 5 são de boca muito larga, para dispãrarem pedras; as restantes são de 24" de ferro. No interior deste baluarte ergue-se ainda um outro reduto, de paredes altas, com seis peças, de grande alcance. Todos os barcos e juncos que queiram entrar nesta barra ou abrigo têm forçosamente de passar por este forte dentro do compri-mento de entre 3 e 4 lanças ou a largura de 60 pés, visto que os Portugueses fecharam todas as restantes entradas, a fim de levá-los com maior segurança para o dito local. Ao capitão do principal baluarte é dado o governo, pelo rei ou em seu nome, sobre o qual o general daquela praça não tem poder para nomear um outro senão na ausência do primeiro e somente a título provisório; e tem de esperar a aprovação do rei ou outra que para o efeito lhe possa ser enviada. Esta plataforma está situada no lado do Sul.

O segundo baluarte, denominado de Nossa Senhora do Bom Parto, situado a sudoeste, que possui 8 peças metá-licas, está do lado do monte da Penha de França. A cerca de meio tiro de mosquete dali fica uma fábrica de pólvora, onde se fabrica pólvora para canhão; deste lugar começa uma meia lua, que serve de dique de mar, com uma ponta a meio sobre a qual em ocasiões de perigo se podem montar três peças de artilharia. Está cercada exteriormen-te por uma muralha, porém não muito alta; estende-se até um outro baluarte chamado de S. Francisco. Este lado do mar entre os dois citados baluartes está cheio de belos e graciosos edifícios. Na praia do mesmo faz-se o mercado da madeira.

O terceiro baluarte, de S. Francisco, é maior que o de Nossa Senhora do Bom Parto, está equipado com doze peças metálicas, uma ponta deste baluarte entra muito pelo mar. No ano de 1632 foi construída na base deste baluarte uma plataforma, na qual está montada uma colubrina que dispa-ra 48" de ferro e lança até ao extremo de Kaclean, ilha situada a cerca de 1,5 milha dali. Este baluarte estende os seus muros para terra, marcando o termo da cidade do lado do mar.

O quarto baluarte, denominado de S. João, estende-se em direcção à terra; nele existem três peças perto do portão de terra, chamado de S. Lázaro, e esta muralha sobe pelo monte em direcção ao forte de S. Paulo donde a muralha prossegue até um convento dos Jesuítas. Para além dele ergue-se uma construção de lindas casas com paredes muito espessas e fortes, que a livram bastante do mar, visto que há ainda uma ponta de terra saliente, com recifes que em caso de necessidade pode ser munida de um canhão e servir de baluarte, mas neste caso é desnecessário desde que, por virtude da seca, não seja possível aportar ali com embarcações grandes».

60«Relaccão nominal dos Sacerdotes, que se achavam no Império da China em o anno de 1668 a quem os Portugue-ses devem a sua estabilidade na Península de Macao e por isso de eterna recordação. »

B. M. Mss 28.461Eg.1646,164. (Eram trinta ao todo e de seis nacionalidades: 5 portugueses, 8 italianos, 6 franceses, 5 espanhóis, 4 holandeses e 2 alemães.

61Relação da Fortaleza, poder e trato com os chinas, que os olandeses tem na Ilha Formosa dada por Salvador Diaz natural de Macao, que lá esteve cativo e fugio em huma soma em Abril da anno de mil e seiscentos e vinte e seis. Brit. Mss. Mss. 28.461. Eg. 1646, 164.

62Kristoff Glamann. Dutch-Asiatic Trade (1620 - 1740). The Hague. 1958, pp. 230 - 231.

63Relação Universal do que sucedeo em Portugal, e mais Províncias do Occidente e Oriente, desde mes de Março de 625 até todo Setembro de 626. Contém muitas particulari-dades, e coriosidades. Ordenada por Francisco d'Abreu natural da Cidade de Lisboa. Com todas as licenças neces-sárias. Braga, 1627, p. 7.

64Descrição da situação e gravura da cidade de Macau, com as suas fortalezas, assim como com o seu comércio e os costumes dos seus habitantes, tal como é observada no ano de 1638. B-Kristof Glamann. Dutch-Asiatic Trade (1620-1740). The Hague. 1958, pp. 230 - 231.

65BPE/Mss CXV/2 - 1 Fol. 159 L. 13.

66BPE — Mss CV/2 - 7 Fol. 751.

67B. M. Add. MS. 20,875.

68P. Eusébio Arnaiz. Macau mãe das Missões no Extremo Oriente. Trad. port. Macau 1957, p. 39.

69Numerosos autores aludem ao seu fausto e à sua riqueza. Ver entre outros. Kaempfer in History of Japan; J. Costa Nunes, Padroado Português do Oriente, Lisboa, 1922, e A. Eduardo da Silva, Tese do ISEU; «Podiam-se carregar os navios com pães de ouro... » escrevia ainda em 1790 Diogo do Couto (Diálogo do Soldado Prático, Lisboa. 1790, p.155).

70Carta do vice-rei António de Melo e Castro ao Rei Afonso VI. Ms AHU India. Papeis avul. 1666.

71Observations géographiques sur le voyage de François Pyrard, par P. Duval géographe du Roi de F rance (1666), cit. por Alberto Ida, ob. ref. pp. 175,176.

72J. B. du Halde. Description de l'Empire de la Chine et Tartarie Chinoise, Paris, 1735, v. 1, p. 234.

73Memórias de Macau. Ms BNL II,157 v.

74Acta do Leal Senado de 24 Setembro de 1773.

75Inventaire des Archives de la ville de Bruges. Bruges, 1876, t. 4, pp. 407, 508.

76L. Gilliodts, van Severin. Cartulaire de l 'Ancienne Estaple de Bruges, Bruges, 1904, t. 3, pp. 707, 708.

77Leal Senado, Actas de 10 de Outubro de 1919 e 31 de Agosto de 1920. O nosso comércio perde mesmo alguns dos seus melhores apoios. Assim, Bruges, onde desde 1200 vendíamos mel, peles, cera, coiros, grão, azeite, figos, uvas e desde 1387 beneficiávamos de salvos condutos (em 1411 os nossos mercadores emprestam à cidade, que está em guerra, gros-sas quantias, e recebem dela uma carta de privilégios com 48 artigos, e em 1438 Filipe de Bruges concedia-nos direito a construir mesmo um consulado) desinteressar-se-á do nosso comércio. Ainda nos compra sal, frutas, açúcar e certos produtos do Brssil, mas procura montar a sua própria Companhia para o comércio do Oriente.

78Leal Senado. Acta de 26 Fevereiro 1728.

79Leal Senado. Acta de 18 Agosto 1728.

80Leal Senado. Acta de 31 Janeiro 1733.

81Leal Senado. Acta de 30 Março 1730.

82Leal Senado. Actas de 18 Agosto 1731 e de 9 Dezembro 1733.

83Leal Senado. Acta de 6 Março 1728.

84Leal Senado. Acta de 20 Dezembro de 1732.

85Leal Senado. Acta de 5 Janeiro 1737.

86Leal Senado. Acta de 26 Março 1735.

87Leal Senado. Acta de 31 Dezembro 1733.

88Leal Senado. Acta de 9 Janeiro 1735.

89Leal Senado. Acta de 19 Outubro 1735

90Leal Senado. Actas de 20 Setembro e de 25 Outubro 1713.

91Leal Senado. Acta de 25 Setembro 1734.

92Leal Senado. Acta de 6 Outubro 1734.

93Leal Senado. Acta de 6 Setembro 1741.

94Leal Senado. Acta de 5 Novembro 1733.

95Leal Senado. Acta de 6 Janeiro 1740.

96Leal Senado. Acta de 3 Janeiro 1739.

97Leal Senado. Acta de 4 Janeiro 1739.

98Leal Senado. Acta de 28 Dezembro 1727.

99Leal Senado. Acta de 16 Outubro 1723.

100Leal Senado. Acta de 23 Dezembro 1711.

101Leal Senado. Acta de 14 Janeiro 1732.

102Leal Senado. Acta de 14 Outubro 1733.

103Leal Senado. Acta de 19 Dezembro 1742.

104Leal Senado. Acta de 20 Abril 1744.

105Leal Senado. Acta de 12 Outubro 1690.

106Leal Senado. Acta de 21 Maio 1713.

107Actas de 8 de Julho, de 20 de Setembro, 6 de Novembro e 31 de Dezembro de 1752.

108Acta de 6 de Abril de 1752.

109Acta de 16 de Setembro de 1752. Se em 1767 o comércio melhora um pouco («esta república se acha hoje com o seu fundo, que há muitos anos a esta parte o não poderam fazer os antepassados [...]», lê-se numa acta de 12. XI. 1767) isso foi sol de pouca dura.

110Memórias de Macau, Ms. B N L t. II, 102 v.

111Luís Silveira. Ensaio de Iconografia das cidades portu-guesas do Ultramar, Lisboa, v. III. Ásia Próxima e Ásia Extrema, Lisboa s/d. p. 459.

112René Ribeiro. On the amaziado. Relations ship other problems of the family in Recife (Brasil). Am. Soc. Rev., 10:44-51, 1945.

113Relacion del ilustre y glorioso martyrio de quatro Embajadores Portugueses de la ciudad de Macau con cinquenta y siéte christianos en la ciudade de Nagasaki del Reyno de Japon a tres de Agosto del ano de mil y seiscientos y quarenta. Manilla, 1641. (Reimpressa em Lisboa em 1643 e 1650.)

114 «Lista de toda agente q. partio p. a Japão na Fragata São Paulo, a levar os Japões, sem mais interesse q o amor de Deos, e Serviço de Sua Alteza, cabem comum desta Cidade do Nome de Deos de Macao. Partio em treze de Junho de 1685. » Acta da Camara, de 10 de Março de 1685. (Ao todo 47 pessoas, entre casados, viúvos, solteiros, uns da metró-pole, outros de Macau e de Goa.)

115Um deles, António Batista Lima, foi o primeiro china de nação, enviado como bolseiro para Goa e Batávia à custa da Companhia de Jesus.

116Fernão Mendes Pinto. Peregrinaçam, vol. III, cap. XCI, vol. 3, pp. 81 - 83 da ed. do Porto de 1945 (conforme a de 1614).

117Christovam Aires. Fernçao Mendes Pinto. Subsidios para a sua biografia e para o estudo da sua obra, Acad. Real Scienc, Lisboa, 1904, pp. 1-10.

118PaulPelliot. Nota6, pp.85-86daT'oungPao(38), 1948.

119Francisco de Sousa. Oriente Conquistado. II P. Conquista IV, p. 11.

120Acta de 21 de Maio de 1713.

121A iniciativa do primeiro convento de freiras foi do capitão-mór António Fialho Ferreira, filho da terra, antigo aluno dos jesuítas, que para tal fim pediu para Manila seis religiosas clarissas. O convento inaugurou-se em 1633 e a primeira noviça macaense foi a própria filha do capitão-mor, «ornada de formosura e gentileza», como refere o P. Euzébio Amáiz escrevendo sobre textos da época.

122A. Guimarães e Freitas. Memórias sobre Macau. Coimbra. 1928. Ocupando em Coimbra o cargo de governador civil, escrevia nesse opúsculo: «a cidade, essencialmente comer-ciante, e empregando em seu comércio marítimo uma escassa porção de naturais, contém sempre um grande número de vadios, que podiam ser aproveitados na carreira das Armas [...]». É curioso verificar que a ideia de uma polícia mercenária paira sempre um pouco nas preocupa-ções da cidade, pois que em 1823, a 11 de Abril, há um ofício de Goa a desconselhar o Senado de contratar um grupo de praças em Bengala (a 100 patacas por cabeça) e sugerir antes, calorosamente, que se convide a mocidade macaense a inscrever-se.

123A 23 de Janeiro de 1733.

124«Sobre não ter lugar as ordens do Senado para que os Cap. dos Navios fosse occupados sómente por Portugueses de Nação ou geração, e sobre a proibição d'uzar de cabeleiras e sombreiros aos que não fossem Portugueses, que não foi conforme. » Ordens do Governo Superior de Goa. 13 de Maio de 1745.

125Registo de Documentos Sínicos, in Mosaico. 8 (44 - 47):54,1954.

126É em Cristovão Vieira e Vasco Calvo que se encontram os exemplos mais antigos do termo: jurabaça e jurubaça. Juribasso, referido por outros é uma forma apócrifa, mas nas actas do Leal Senado aparece também a forma jerobaça. O termo deriva do malaio-javanês Jüru bahãsa, de jüru, «perito», «mestre» e bãhasa, do sanscrito bhãsa, «língua», termo que nós também empregamos e divulgamos com o significado de intérprete. Ver a propósito a nota 49 p. 114de obra de Paul Pelliot cit...

127Em pouco mais de cento e cinquenta anos, exactamente 161, notava-se um evidente progresso legislativo sobre aquela passagem do título LXIX do Livro V das Ordena-ções Filipinas de 1553 que impedia, sob pena de prisão, que no Reino entrassem ciganos ou pessoas que pelos trajes, a língua e os modos, parecessem ser Arménios, Gregos, Arábios, Persas ou de outras quaisquer nações sujeitas ao Turco.

128A iniciativa precedeu de meio século a planificação naci-onal da vacinação que Lisboa só em 17 de Agosto de 1857 ordenava para Macau.

129Os governos de Cantão e do Kwang-si só em Abril de 1910 confirmaram parte destas disposições.

130«[...] na vossa companhia poderei rápidamente restaurar o Império. E quando estiver no poder, dar-vos-ei duas ou três provincias [...], » Ref. Mosaico, 6 (33 - 34): 124 - 125, 1953.

131Registos Sínicos. Mosaico, 7 (37 - 38): 25 - 26, 1953.

132J. Xavier Pinheiro. Importação de Trabalhadores Chins. Memoria apresentada ao Governo Brasileiro. Rio de Ja-neiro. 1869, p.21.

*Nasceu no Porto em 1909. Licenciado em Medicina na Universidade do Porto, onde foi assistente. Médico e Profes-sor ilustre, tem o seu nome associado a diversas iniciativas de envergadura nacional e internacional. De formação humanista, é espírito dedicado a múltiplas investigações e interesses. É doutor em Ciências pela Universidade de Toulouse. Foi bolseiro do Instituto para a Alta Cultura (d. 1942). Director, fundador e colaborador de diversas revistas médicas, em Por-tugal, Brasil, França e Espanha. É autor de cerca de trezentas obras de temática médica, antropológica e literária. Reitor da Universidade Internacional de Macau, dedicou à sua antroposociologia uma das suas obras de maior fôlego histórico-científico, publicada em 1974 como tese na Universidade de Toulouse, com o apoio do Centro Nacional de Pesquisa Científica de França (CNRS) e o título "L' Histoire et les Hommes de la Première République Démocratique de 1' Orient. Anthropobiologie et Anthroposociologie de Macao". O texto agora integrado na RC é um extracto selecto do capítulo III, da edição em Português (Macau, Imprensa Nacional, 1974), publicada com o título de "A História e os Homens da Primeira República Democrática do Oriente, Biologia e Sociologia de uma Ilha Cívica".

Título e adaptações são da responsabilidade da redacção.

desde a p. 97
até a p.