Portugal e o Oriente

TANEGASHIMA
A ILHA DA ESPINGARDA PORTUGUESA

Tanegashima - a ilha da espingarda portuguesa
Os portugueses chegaram ao Japão em 1543 - e a memória deste facto perdura no País do Sol Nascente como um virar de página da Idade Média para os temposmodernos. A data ficou a assinalar a abertura do Japão ao Ocidente, o primeiro impulso para o "milagre japonês". Tão importante como a investigação erudita dos académicos nipónicos, que passou para os compêndios de história epara as salas dos museus, a tradição e a lenda de Tanegashima revive anualmente a memória dos primeiros nambans que aqui chegaram com dois mosquetes ao ombro.

Tudo em Tanegashima nos fala de Portugal. Chega-se ao porto e, sobre o cais, o herói da maior estátua da ilha é o Infante D. Henrique. Chama-lhe aqui, simplesmente, "O Homem do Mar".

A pequena Tanegashima seria hoje mais uma das centenas de ilhas ignoradas do sul do Japão, se o destino não a tivesse ligado à introdução das armas de fogo. Foi a partir das suas oficinas de ferreiros que as espingardas portuguesas, copiadas em série, chegaram às mãos dos generais do tempo. Um deles havia de sair vencedor da guerra civil, que se arrastava há cem anos - e reconstruir a unificação do Japão.

De início, os japoneses não tinham nome para a nova arma. Chamavam-lhe apenas tanegashima. Mais tarde os mosquetes ou cabuzes passaram a chamar-se teppo, e foi este nome que ficou.

400 ANOS, AGORA

Os ilhéus de Tanegashima sabem que a fama da sua terra começou com o desembarque dos mosqueteiros portugueses.

Todos os anos no mês de Julho, o Teppo Matsuri (Festival da Espingarda) mobiliza toda a gente para a mais comovedora manifestação da memória dos mareantes portugueses em terras do Oriente. É a grande festa da ilha, feriado municipal e ocasião para a grande romaria de visitantes das ilhas vizinhas e principalmente de naturais da terra radicados noutras paragens.

A animação começa na semana anterior com a decoração das ruas, a pintura de cartazes, a preparação dos velhos mosquetes e a construção da grande nau de Portugal que há-de levar Mendes Pinto e a sua lendária amante japonesa no cortejo alegórico pelas ruas da capital da ilha. Nishinoomote sai da monotonia de pequena cidade pesqueira e toda ela se vai transformando em palco do Teppo Matsuri.

A festa demora dois dias, às vezes três.

Logo pela manhã, no mausoléu dos "Tanegashimas", que eram os lordes da ilha quando os portugueses chegaram, reúnem-se os notáveis da terra, para a invocação fúnebre de lord Tokitaka, o jovem dáimio que soube arrancar dos portugueses o segredo do gatilho. Preside à cerimónia o grande bonzo da ilha, na presença de Tokikuni Tanegashima, 15° titular do clã, que todos os anos aqui se desloca, de Kagoshima, onde trabalha como engenheiro municipal.

É neste mausoléu mais moderno que se guardam há seiscentos anos as cinzas dos dáimios de Tanega, em pequenos monumentos funerários alinhados cronologicamente. Mas só Tokitaka é chamado a participar na festa. Cobrem-lhe o túmulo de flores silvestres e, em frente, sobre uma mesa improvisada, a refeição ritual aguarda o despertar do espírito. São peixes acabados de pescar, a garrafinha de saké da ilha e uma bandeja de prata com os primeiros frutos do Verão.

Sopra do mar uma aragem fresca que agita suavemente as faias em redor. Tanto pode ser a voz das ondas, ali perto, como o sopro das almas de velhos tanegas, despertas pela litania intemporal do bonzo.

Segue-se a homenagem oficial a Tokitaka, diante da estátua que lhe ergueram no local onde o dáimio assistiu à primeira demonstração do mosquete português. Agora, eternizada em bronze, estampa-se no rosto e no gesto a estupefacção do senhor feudal que, ouvindo o primeiro disparo - diz uma crónica monástica budista - viu logo que "aquele objecto era a coisa mais extraordinária do mundo".

No socalco da colina onde em tempos se erguia o palácio, Tokitaka cinge ainda as duas espadas de samurai e empunha o histórico mosquete, virado para o "Museu da Espingarda", que lhe fica em frente. É outro motivo de orgulho de Tanegashima este museu em forma de caravela, onde se conservam os primeiros exemplares de espingardas fabricadas na ilha segundo o modelo português.

O FESTIVAL DA ESPINGARDA

Tanegashima conserva a tradição de escola de tiro com armas antigas. No Parque Wakasa, em frente do Monumento da Bala, concentram-se os milhares de figurantes do cortejo alegórico, já vestidos com trajes históricos. É um es-pectáculo singular.

O ar de Verão impregna-se da algazarra das cigarras, aos milhões, de mistura com as marchas de John Philip de Sousa (mas ninguém sabe que a alma das bandas militares de todo o mundo é este americano dos Açores).

À volta da clareira do parque, procurando as sombras para apartes gaiatos, acotovelam-se alegremente Fernão Mendes Pinto, em uniforme de oficial da "Sagres", e Wakasa, sempre-noiva de olhar comprometido, piratas chineses de carrapito ao alto e archeiros coreanos de vestidos talares, Tokitaka impante, mosqueteiros antigos em traje de combate, os velhos ferreiros de Tanega, as damas da corte feudal e, por todo o lado, os aventureiros portugueses de bombachas coloniais e enormes bigodes retorcidos.

De Kunitomo e Sakai (a histórica cidade de mercadores que viu nascer Osaka) chegam representações das escolas de tiro. Vão disputar com os mosqueteiros de Tanegashima o concurso de pontaria com arcabuzes de mecha. Depois de Tanegashima, são as mais antigas escolas de tiro do Japão.

A ordem de tiro é gritada por um comandante samurai. Chamam-lhe Kapitan, desde que no século XVI esta palavra portuguesa se espalhou em todo o país.

E vem o discurso do Presidente da Câmara. Perante os convidados de fora (distinguem-se representantes de Sakai, Kunitomo, Okinawa e Tokushima- a ilha de Moraes) ele recorda a história da ilha, a chegada dos portugueses, a recepção amiga que tiveram, o primeiro amor luso-japonês, o que terá contribuido remotamente para a restauração nacional, através da espingarda que dizimou exércitos e apressou o fim das guerras.

Tanegashima assume-se orgulhosamente como princípio do Japão moderno. Os seus heróis são um ferreiro de tesouras, a sua filha Wakasa, o seu namorado F. Mendes Pinto, e um jovem dáimio esperto e liberal.

As imagens "naїves" do cortejo alegórico, onde a história se mistura com a lenda, fazem surgir da memória dos séculos a grande nau de Portugal, com a Cruz de Cristo a vermelho pintada. A bordo lá vai Wakasa, sentada num banko e com a sua kappa de birudo (ou veludo) vermelho, ao lado do piroto Pinto San, com o primeiro catraio luso-japonês e mais os tripulantes chineses, amigos do capitão do mar, percorrendo as ruas de Nishinoomote. À popa da nau (ou será um junco com a Cruz de Cristo?) ondulam ao vento duas bandeiras amigas: a bandeira branca de Tanegashima com as armas de Tokitaka e a bandeira portuguesa, já de cores desmaiadas. (Trata-se da actual bandeira republicana, a única que estes ilhéus conheceram depois das duas visitas do navio-escola "Sagres").

A pé, escoltando a nau, seguem os amigos do capitão: velhos portugueses de quinhentos nos seus trajes de memória antiga, saídos porventura de algum biombo japonês, marcham desajeitadamente, o mosquete ao ombro, a cabeça coberta de chapéus altos, botans dourados decorando o giban e as largas bombachas que ainda se chamam calção (karusan). São os nambans de Porutogaro. Segue-se o grupo dos chineses que trouxeram o kapitan no seu junco, um dia. E a corte de Tokitaka, que vem atrás no seu cavalo alazão.

Lá à frente o cortejo abriu com os carros da rainha de beleza da ilha, seguido das crianças das escolas marchando ao som de charumeras ou charamelas tradicionais (mas um conjunto de pífaros de plástico assobiava "A Ponte do Rio Kwai", desconhecendo - ou talvez não - o sentido que o cinema deu a esta marcha na guerra americano-japonesa).

O povo que espera nas ruas vibra com os figurantes que passam, tentando reconhecer-lhes os nomes, para lá do disfarce antigo. De quando em quando, o cortejo pára, nos pontos de maior ajuntamento, para que os mosqueteiros repitam o disparo dos velhos arcabuzes.

Mas a grande animação é a Teppo Odori (dança da espingarda). Milhares de camponesas de todos os pontos da ilha seguem na cauda do cortejo, dançando horas a fio essa canção tradicional. É uma espécie de "cantiga de amigo", cheia de saudade dos namorados que empunham o mosquete em posição de combate:

"Tem coragem meu amor,

ouve o ritmo desta canção,

para que o teu braço não vacile

na hora da pontaria".

Exibição de mosquetes do séc. XVI, no Festival da Espingarda.

A ondulação dos corpos dançantes, prolongada na voluta dos kimonos, acrescenta ao gesto do tiro uma intenção erótica subtilmente insinuada.

A tarde já vai a meio. Duas horas ou mais leva o cortejo a percorrer as ruas de Nishinoomote, engalanadas a preceito, em que a nau cristã aparece constantemente nos cartazes, nas bandeiras, nas montras decoradas, por vezes um nambam de chapéu alto no meio das bugigangas e dos anúncios da Toyota ou em grinaldas de papelinhos coloridos.

Sobre a tarde, quando o cortejo chega ao fim, é a altura do repasto tradicional, para familiares e amigos. Lá se come o sakana (que parece ter enjoado os primeiros marinheiros chegados ao Japão, a ponto de levarem o nome pouco simpático para Portugal). Este prato de peixe crú é regado com uma tchavan de chá (como o termo chegou aos ouvidos portugueses) porque o vinho chinta (ou tinto) de antigamente há muito que o navio negro, o não traz do Ribatejo.

O que não falta é a têmpora (que afinal não é grande penitência). São peixinhos-da-horta com camarões panados, que os missionários comiam nas têmporas litúrgicas, em que se abstinham da carne de Waka.

Já ali vem a sobremesa, que a festa tem os seus requintes: hoje há bôro de bóbura (ou bolo de abóbora), bisokôitos de amendô com manteika, karumera (ou caramelo) e castela o (portuguesíssimo pão-de-ló, feito com claras de ovos batidas em castelo).

E para rebater, nada melhor que uma golada de saké de satsuma (ou aguardente de batata doce) assim chamada porque o tubérculo terá sido trazido para Satsuma pelos comerciantes portugueses.

Vem a noite. No adro do templo xintoísta, que segundo a tradição da ilha terá albergado os primeiros portugueses em 1543, decorre o arraial japonês. Há tendas de comes-e-bebes, que se vão comprar para comer no chão, coisas simples e frugais, talvez um punhado de kashuu (cajú) pan com manteika e alguma masan ou maruméru (marmelo), que se partem aos bocadinhos com uma ha-ka (faca), a menos que algum artista se valha da katana ou da isupáda (espada) que vai usar no palco.

Danças e jogos de teatro enchem a noite de Verão. A leveza destes camponeses no palco, o requinte das vestes, a doçura das vozes e os cambiantes de luz dos balões de papel, envolvem o visitante num ambiente enfeitiçado. Portugal e a Europa só parecem já uma névoa distante, entre o sonho e a memória.

O DESFILE GIRON

A segunda parte da festa de Tanegashima é o desfile Giron. É um desfile xintoísta e popular, sem as formalidades da véspera. Desta vez a concentração organiza-se em frente do templo que albergou os primeiros portugueses chegados à ilha e também (segundo nos dizem) o próprio Francisco Xavier. (E por que não, se Tanega era um feudo dos Shimazu de Kagoshima, que hospedaram largo tempo o missionário?).

Mais uma vez, a bandeira portuguesa flutua ao lado do pavilhão japonês, assinalando um pequeno monumento dedicado a Portugal.

Finda a breve oração dos bonzos, começa o desfile com solenidade litúrgica. O bonzo-mestre vai à frente recitando uma prece sempre igual. Há uma flauta no ar, acompanhada de alaúdes regionais, música diáfana como a voz das crianças, que seguem num corso ritual, vestidas das cores mais serenas que imaginar se pode.

Já passou o andor xinto, ouro e verde, aliança da natureza com os deuses imortais. Vai aos ombros de possantes latagões, que o fazem oscilar para trás e para a frente, como se fosse um barco a lutar com as ondas: "Oishô! Oishô!". Lá mais adiante, ao chegarem à praia, os rapazes metem-se ao mar, elevando o andor sobre as cabeças. Soltam-se as flores sobre a espuma branca numa oferta ao espírito das ondas. É a sagração do Mar, o rito pagão da comunhão cósmica com as forças da natureza.

O longo desfile vai-se tornando pouco a pouco numa espécie de carnaval. Cada escola da ilha apresenta um motivo alegórico, num concurso de ritmo e fantasia, animado pelos gritos das crianças. Mas a maior parte das construções alegóricas lembram caravelas, decoradas com a cruz portuguesa e imagens de Wakasa e Mendes Pinto. É a história da ilha, as suas lendas e pequenos heróis, sem esquecer a espingarda e a tesoura entrelaçadas, numa alusão à transformação industrial que a ilha atravessou à chegada dos nambans. E para que a vida seja completa, o cortejo xintoísta fecha com um desfile de promoção comercial, encabeçado por um guerreiro medieval.

É Tanegashima inteira, a alma budista do Japão moldando a vida e a festa.

Tudo em Tanegashima gira à volta da espingarda e do romance de Mendes Pinto. Os artefactos locais, para turista comprar, levam a lembrança da espingarda, por vezes associada aos foguetões espaciais da moderna rampa de Nishimura. A espingarda dos nambans é alfinete de gravata, sanefa de janela, rótulo de garrafa de saké, caixa de biscoitos regionais. As bonecas folclóricas representam invariavelmente a "princesa Wakasa" com a espingarda nos braços. E até o sapateiro da terra virou escultor, mas apenas sabe fazer mosqueteiros.

QUANDO OS PORTUGUESES CHEGARAM AO JAPÃO

Foi por acaso que os portugueses chegaram a Tanegashima. Mas de qualquer forma eles chegariam ao Japão mais tarde ou mais cedo, visto que chegaram a toda a parte. Esta observação do historiador Charles Boxer baseia-se no facto de os portugueses, em meados do séc. XVI, estarem presentes em todas as rotas do Oriente.

Desde a conquista de Malaca, em 1511, os mercadores portugueses absorveram rapidamente a experiência dos seus parceiros indianos, filipinos e indonésios, chegando a todos os portos comerciais da Insulíndia, da China e de todo o Oriente. O próprio Afonso de Albuquerque e os cronistas oficiais (como Tomé. Pires, Castanheda e João de Barros) referem-se aos Léquios ou habitantes do sul do Japão. O rei D. Manuel vinha sendo aconselhado desde 1518 a enviar uma armada para descobrir as ilhas dos Léquios. É provável que alguns barcos japoneses demandassem o porto de Malaca e, por outro lado, sabe-se que nunca deixou de praticar-se o comércio entre a China e o Japão, se bem que um decreto imperial chinês dos finais do séc. XV tivesse proibido o comércio oficial. Mendes Pinto, na sua "Peregrinação", descreve em pormenor a feitoria de Liampô, na costa da China, em frente do Japão. Portugueses, chineses e japoneses aí costumavam ancorar e "fazer veniaga" ou intercâmbio comercial.

No entanto, o Japão continuava por explorar antes de 1543, e parece que os portugueses só conheciam (mesmo assim secretamente) algumas das ilhas Riukiu, ao sul do Japão, onde se situa a moderna Okinawa.

A estratégica Malaca era a "cabeça e a chave dos mares do Sul", como a definia Afonso de Albuquerque. Era o posto avançado dos portugueses no Oriente. A partir de Malaca, a talassocracia portuguesa hegemonizava os mares desde o Coromandel, na costa oriental da Índia, até à China e ao grande Arquipélago indonésio.

Tudo servia aos portugueses para descobrir os grandes centros de comércio: o prestígio das naus, a força das armas, as alianças políticas, o emparceiramento com os mercadores locais e mesmo com os piratas dos mares da China. E em todas as rotas do mar, fidalgos e aventureiros, soldados e rufiões, mercadores ricos e missionários inflamados. Não seria a epopeia da cruz e da espada - coisa em que bem poucos realmente pensariam - mas um enorme esforço individualista da nova burguesia portuguesa, mais ou menos enquadrada pela Coroa, em busca de riquezas e do alargamento da Fé.

1 Monumento ao encontro do Ocidente com o Oriente (cabo Kadokura, sobre a praia onde os portugueses chegaram em 1543).

2 Caravela e figuração de portugueses do séc. XVI, no desfile "Teppo".

3 O primeiro tiro dos portugueses no Japão - desenho de Hokusai, um dos maiores artistas nipónicos (1817).

Também havia os marginais do Império, que andavam "alevantados" da autoridade real e escapavam ao controlo de Goa e dos capitães de Malaca. Pouco depois da morte de Albuquerque em 1515, eram já muitos os portugueses deserdados da fortuna que se arriscavam em operações suicidas, tentanto a sorte pelos mares do Oriente, por vezes a soldo de potentados adversos.

Mendes Pinto é um destes aventureiros. A "Peregrinação" relata justamente a sua primeira viagem ao Japão, a bordo de um junco de piratas chineses, que um temporal atirou para a praia de Tanegashima. Terá sido dessa vez que um companheiro de viagem, Diogo Zeimoto, deslumbrou o dáimio com uma espingarda portuguesa. A descrição de Mendes Pinto coincide no essencial com a famosa Teppo-Ki (Crónica da Espingarda) escrita por um monge Zen em 1607, isto é, sessenta anos depois dos factos relatados e algum tempo depois da data em que Mendes Pinto escrevia a sua versão (1578).

A crónica japonesa foi escrita em chinês clássico, a pedido de um neto de Tokitaka, que assim quis glorificar o avô. O monge escritor era cronista dos poderosos Shimazu, de Satsuma, na província de Kagoshima, suseranos de Tokitaka.

A ARMA DA UNIFICAÇÃO DO JAPÃO

Na História militar do Japão, a introdução da espingarda foi determinante. Um dos primeiros generais entusiastas da nova arma foi o grande Takeda ("O Senhor da Guerra", do filme de Kurosawa). Mas era já um guerreiro de idade adiantada e não soube adaptar-se à nova tecnologia. Certa vez, tendo assentado a sua táctica no regimento de espingardeiros, perdeu uma batalha contra um chefe menor, por apego às praxes da guerra medieval. O ritual militar japonês impunha uma série de jogos guerreiros e demonstrações de perícia, antes do começo das batalhas, no terreno neutro entre os dois exércitos. Só depois da praxe, começava a carnificina. Ora as lanças e setas são mais rápidas que a espingarda de mecha: carregar a arma, incendiar a mecha, despejar o polvorinho e apontar leva dois a três minutos. Antes que o mosqueteiro tenha a arma pronta a disparar, já está atravessado pelas setas do inimigo.

Quem logo entendeu a nova tecnologia foi um novo chefe, Oda Nobunaga, um verdadeiro génio militar que apenas começava a levantar a cabeça. Compreendeu que uma arma lenta devia ser uma arma defensiva e que, para ter uma cortina de fogo ininterrupta, devia dispôr os mosqueteiros em três filas, correspondentes aos três tempos do mosquete (carregar pela boca, incendiar a mecha, pontaria). E foi assim que assentou campo em Nagashino, dispondo na frente de combate três mil espingardeiros em três filas, à espera dos cavaleiros e samurais de Takeda.

Esta batalha de Nagashino, em 1575, marca o triunfo definitivo da espingarda contra a velha cavalaria medieval. (Recorde-se a cena dramática do filme "Kagemusha", de Akiro Kurosawa). Estava descoberta a táctica da moderna infantaria, que pouco mudou até à Grande Guerra de 1914 - 1918.

Oda Nobunaga - um dos maiores génios militares do séc. XVI. O primeiro a compreender a nova tecnologia bélica e a reconverter a táctica militar, sai vitorioso das guerras feudais japonesas e reunifica o País do Sol Nascente.

A partir daqui (e passavam apenas 32 anos depois da chegada da espingarda portuguesa) Nobunaga tem o caminho aberto para Kyoto e para a unificação do Japão, que veio a ser consumada pelo seu adjunto Toyotomi Hideyoshi e organizada politicamente pelo "shogun" Tokugawa leyasu, que também fora um jovem comandante de Oda. Três construtores do Japão moderno, três generais que souberam tirar partido da nova tecnologia, num contexto em que uma classe mercantil ascendente e a abertura ao racionalismo ocidental (introduzido pelos jesuítas do Padroado Português) criavam condições para um primeiro salto histórico, que veio a distanciar o Japão de todos os países da Ásia.

"PARECE QUE NOS QUEREM METER NA ALMA"

Os portugueses sempre admiraram o povo japonês. Não é por acaso que o próprio nome do Jampom foi introduzido na Europa por um cronista de Malaca, o conhecido Tomé Pires, cerca de 1515.

E a primeira descrição sociológica da mentalidade japonesa foi feita pelo capitão-do-mar Jorge Álvares, a pedido de Francisco Xavier, que a enviou para Roma, a fim de justificar a Inácio de Loyola a sua decisão de abandonar a Índia e avançar para o Japão. E foi a descrição de Jorge Álvares, de Freixo de Espada à Cinta, que motivou Xavier para a aventura japonesa.

1 Batalha de Nagashino (1575) - assinala historicamente o triunfo da arma de fogo e o fim da Cavalaria medieval.

2 Cena do teatro "Kabuki" (séc. XVIII).

Gravura de Toyokuni mostrando um guerreiro com pistola. O fascínio da arma de fogo reflecte-se nas artes. Os portugueses, com cerca de 70 anos de avanço, foram os primeiros a utilizar pistolas de guerra, depois desenvolvidas pelos japoneses.

"Eu fui três léguas pela terra dentro (diz o capitão-do-mar), vi os montes bem aproveitados e semeados. É terra bem assombrada e graciosa. Gente pouco cobiçosa e maviosa e mui devota aos seus ídolos. É gente mui soberba e belicosa, todos mui grandes frecheiros de arcos grandes como ingleses. É gente mui liberal. Se vais à sua terra, parece que nos querem meter na alma".

Mal chegado a Kagoshima, ali a poucas léguas de Tanega, Xavier escrevia: "A gente que até agora temos conversado é a melhor que até agora está descoberta e me parece que entre gente infiel não se achará outra que ganhe aos japões ". "E se houvera de escrever todas as boas partes que há neles - adianta um companheiro de F. Xavier - antes faltaria tinta e papel que matéria".

Quem vai a Tanegashima tem de visitar Nishimura obrigatoriamente. O cabo Kadokura que domina a praia onde os portugueses chegaram, está cheio de singelos monumentos. Um deles, sem fazer menção de Portugal, assinala o primeiro encontro do Japão com o Ocidente. Mais moderno é o bloco de pedra em homenagem aos pioneiros portugueses, ao lado da lembrança dos marinheiros do navio-escola "Sagres", cuja passagem por Tanegashima nunca mais foi esquecida.

De mistura, uma pedra levantada, à maneira xintoísta, é um monumento comovedor em homenagem aos soldados nipónicos e aos seus inimigos ocidentais, que morreram na última Guerra. E tudo isto é dominado por uma caravela de cimento, que afinal é o miradouro mais alto do promontório. Nenhuma das peças tem grande valor artístico, mas tudo está cheio de história.

Este é quase um lugar sagrado para os tanegas modernos. Para eles não é por acaso que, mesmo ao pé da praia de Nishimura, se ergue a rampa dos foguetões espaciais. Eles dizem que a técnica japonesa começou com a espingarda dos nambans e agora já é foguetão.

Página do manual de instrução de tiro "Trinta e duas posições de pontaria", da Escola de Tiro de Inatomi (1595). Cada gravura incorpora legendas com as instruções técnicas e traçados com os ângulos de mira.

O atirador aparece desnudado, não porque os japoneses assim combatessem, mas para exemplificar melhor a posição correcta dos membros e dos músculos.

O passado tornado agora. Um símbolo apenas - ou mera coincidência do acaso. Mas em Tanegashima, a ilha da espingarda, todos acreditam que o Japão moderno começou por uma história de amor a bordo de uma nau de Portugal. "Tanto quanto sei - diz-nos o "mayor" de Tanega - foi o primeiro casamento entre ocidentais e japoneses. Eu acho que esse casamento apressou a paz em todo o Japão. E o meu desejo, do fundo do coração, é que a amizade entre o Japão e Portugal se mantenha para sempre. Arigato! Obrigado!"

(Extracto do livro "TANEGASHIMA, a ilha da espingarda portuguesa", a ser publicado brevemente pelo ICM e da autoria de Avelino Rodrigues com fotografia de Leong Ka Tai e coordenação de Gonçalo César de Sá).

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