O novo texto da série “Dimensões do Cânone” volta a tratar de um tema musical, apresentando aos leitores em língua portuguesa mais uma obra do literatus chines Ji Kang (223-263), o “Qin Fu” – ou “Sobre a cítara qin”. Esse poema reveste-se de importância fundamental, em dois sentidos. Em primeiro lugar, é um exemplo primoroso de écfrase (poema descritivo de um objecto de arte) que utiliza plenamente os recursos da forma poética “Fu”. Alem disso, com cerca de 2000 caracteres, o “Qin Fu” é o primeiro tratamento detido da cítara Qin, que pode ser considerada o instrumento musical por excelência do intelectual chinês, oferecendo-nos pistas sobre sua ideologia e padrão de convivência. “Sobre o Qin” serve de introdução ao tema, ao relatar a origem lendária do instrumento, seu processo de feitura, suas características sonoras, seu repertório mais famoso, sua relação com a poesia/canto e seu papel no “convívio elegante” dos intelectuais. Além disso, a écfrase de Ji Kang consegue ultrapassar as limitações do meio poético, realizando uma exposição filosófica/estética do instrumento. Como não poderia deixar de ser, o poema serve de veículo para os ideais estéticos e de vida de Ji, aludindo ao pensamento taoista clássico de Laozi e Zhuangzi e refletindo a voga literária do “Estudo do Mistério”. Tal abordagem não implica em distorção, contudo, uma vez a cítara chinesa esteja indissoluvelmente ligada a esse contexto cultural.