Poesia

O LIVRO DE TAO

João C. Reis*

O pergaminho de 206-195. O estado em que foi encontrado o manuscrito conduziu facilmente à invenção de novos de novos caracteres e novos conceitos, muitos dos quais, naturalmente, ao arrepio do genuíno pensamento de Lao Zi.

Este chamado Livro de TAO (e da Virtude) - Tao Te Ching - e a figura, hoje, porventura, menos enigmática do seu Autor, Lao Zi, ou Velho Mestre, alcunha, passada a heterónimo, e de heterónimo a nome - de Li Ehr Tan, ou Lao Dan - têm suscitado, desde recuados tempos, mais generalizadamente desde há cem anos a esta parte, vivas controvérsias, que vêm dividido eminentes académicos, tanto chineses como ocidentais. Prende-se a primeira com a figura histórica, ou não-histórica, do Filósofo, e se anterior, ou ulterior, no tempo, a Confúcio (o Venerável Mestre); e uma segunda, com o próprio livro, se obra original de uma só mão, ou compilação de vetustos textos, integrais, ou parciais, designadamente do Livro das Mutações, do Livro das Odes, e outros - elaborados três centenas de anos depois da morte de Lao Zi. A tese presumida seria a de que discípulos de Zi teriam recolhido o essencial dos ensinamentos de livros mais tardios, e de eventuais lições, do Velho Mestre - e daí, terem fabricado o livro que corre sob a epígrafe Tao Te Ching.

Até onde esta presunção corresponderá à verdade, é matéria que depois se verá.

Um problema primordial coloca-se, desde logo, com esta proposição: de onde, ou de quê, teriam os discípulos de Lao Zi recolhido os ensinamentos do Mestre? A tradição oral, adrede mencionada, certamente não repetiria, ipsis verbis, ao fim de trezentos anos, a obra unívoca, encadeada e fluente, tal como a conhecemos, ainda hoje, e conforme alguns detalhes, porventura significativos, que vão adiante arrolados A conclusão que uma curialidade elementar pressuporá é, assim, a de que, no seu próprio tempo, um livro tenha sido escriturado por Lao Zi, e que foi daí que os taoistas das gerações seguintes elaboraram (por cópia ou restauração do exemplar princeps, como se diz) as segundas vias, editadas então no século IV. E fundaram uma religião.... Existem pormenores, além de opiniões abalizadas, que se conformam com esta asserção.

As dúvidas levantadas quanto à existência de um livro antigo poderão, em certa medida, parecerem pertinentes, como se verá, mas são hoje cada vez mais aqueles que perfilham, e os factos que, pela positiva, a abonarão, uma realidade, que diversos indícios verdadeiramente virtualizam - a de ter sido, de facto, Lao Zi quem, no seu tempo, escreveu o primeiro Livro.

Não é inverdade que terá sido no reinado de Xang (770-256 a. e. a) - recorde-se que se admite ter Lao Zi vivido dentro deste período de tempo - que se desenvolveu a convicção de um deus, de um céu, de uma autoridade divina que tudo podia, e que por tudo se responsabilizava, a que se juntariam, por bondade simbiótica, os espíritos dos antepassados. Não se pode deixar de pensar, por isso, que Lao Zi ignoraria, voluntariamente, ou não, a existência de um criador, por oposição ao entendimento instalado. Francis Kenneth, de quem se falará mais, adiante, dirá: "A dinastia Zhou racionaliza o demonismo totémico dos tempos primitivos, fundará uma religião a que se poderá chamar monoteísmo patriarcal, nela se conciliando o culto dos antepassados com a adoração de uma divindade, concebida sob forma humana: Deus era o supremo antepassado da humanidade, e por isso, se lhe prestava culto".

Pela parte de Lao Zi a leitura do texto do Tao Te Ching não conduz a semelhante asserção, decerto não, por um deliberado antagonismo pessoal - mas porque o Filósofo ensaiava, ou ensaiaria congeminações que não passavam pela invenção de um método tão fácil de explicar aquilo que, para ele, não procedia do sobrenatural.

Num livro, a muitos títulos excelente, que corre sob a epígrafe "An Intelectual History of China, Beijing, 1991, da responsabilidade de três académicos, He Zhaown, Tang Yuyuan e Sun Kaitai - depois de se afirmar que a "doutrina política (de Lao Zi) deduzida do entendimento de que TAO do Céu (em inglês Way of Heavens) mais não era do que uma expressão metafísica da sua teoria da não-actividade (inacção) lê-se:

"Nesta consideração, do Tao do Céu, Lao Zi despreza a teoria tradicional do Mandato do Céu (ou Deus) e, em seu lugar congeminou a ideia de um Tao (Logos) como fonte (origem) do Mundo. Para ele, Tao não tinha forma, era invisível, intocável, insonoro, e sem cheiro; qualquer coisa indescritível, um caos, ou transe, transtemporal, trans-espacial na sua eterna imobilidade. Tao era considerado (por Lao Zi) como anterior a todas as (dez mil) coisas, isto é, o supremo rei (master) do mundo. Precedia Deus, e existia muito antes do Céu e da Terra, e todas as coisas do mundo foram geradas por Ele (TAO). Em consequência do que (Lao Zi) fundou a (sua) cosmogonia, com uma semi-poética e semi-filosófica expressão, através destas palavras: Tao gerou Um; Um gerou Dois; Dois geraram Três; e Três geraram todas as coisas"

Os autores, prosseguindo, acrescentaram:

"Este parágrafo tem de ser interpretado. TAO, ou Logos, gerou a entidade (ou Ser) que se dividiu em Dois: Yin (negativo, ou passivo, e o Yang (positivo ou activo) A interacção e o intercurso do Yin e do Yang geraram todas as coisas no mundo. Por isso, ele (Lao Zi) volta a dizer: Todas as coisas no mundo são geradas pelo Ser, e o Ser é gerado pelo Não-Ser. Daqui, a proposição: o Ser gerado pelo Não-Ser é equivalente a UM; e o Não-Ser (é equivalente) a TAO. Que o Ser deriva do Não-Ser (TAO), e todas as coisas no mundo sendo geradas pelo Ser (UM) implica que TAO (Logos) seja o Essencial, ou Transcendental de onde o mundo actual deriva. Por TAO entende-se não a substância material, mas o Espírito Absoluto, ou, de preferência, Logos (Universo)" (Trad. Livre)

Se a versão inglesa deste texto estiver correcta, o mínimo que se poderá dizer é que nem todos os críticos da Obra de Lao Zi lerão da mesma maneira o essencial do princípio em questão. Embora em grande parte dos casos se adopte a asserção, no trecho transcrito, de Tao ter gerado Um, a verdade continua a mesma já apontada em passagem anterior: TAO era um Vazio, não podia ter gerado coisa alguma. O que se afirma não passa de um sucedâneo desta tese primordial, salpicado, aqui e ali, de algumas subtis contradições. Em vez de a aceitar, como se apresenta, prefere-se julgar que a versão inglesa não corresponda com rigor ao texto original chinês, mas de uma tradução eventualmente imperfeita.

O que Lao Zi escreveu, depois corroborado por Zhuang Zi, quando um e outro negavam a existência de um criador, correspondia à ideia de que as coisas se produziram por si próprias. Não foram por ninguém criadas. Isto era normal no universo. (id. ib.)

Ren Jiyu, com grande discernimento, comenta: Lao Zi tomou conhecimento da ciência natural do seu tempo, a ideia de que a natureza estava em contínuo movimento, independente da vontade das pessoas, e que a raiz geral do mundo derivava da omnipresença de TAO, que girava à volta de si mesmo, não dependendo, assim, de qualquer força exógena, e que todas as coisas (ou as dez mil coisas) existentes eram interdependentes, e não isoladas umas das outras.

E o Autor concluiu o seu raciocínio, afirmando que "o aparecimento da categoria da Não-Existência, por ele tratada primeiramente como conceito negativo da raiz de todas as coisas, na História da Filosofia Chinesa, marca um grande progresso em termos de conhecimento científico".

"A concepção de TAO como criador do universo - diz por sua vez D. C. Lau (ib.) é interessante, porque tanto quanto nos é dado saber, isto foi uma inovação do Período dos Estados Guerreiros, e o Tao Te Ching (elaborado no período anterior, deve dizer-se) é um dos trabalhos onde isso pode ser encontrado. Tradicionalmente, o papel do criador pertencia ao Céu (Tien) o que vinha desde tempos mais remotos. Céu era o termo usado em livros mais antigos no tempo, como o Livro das Odes, o Livro da História. É também usado nos Analectos, e no Livro de Mo Zi, e constatado igualmente no Livro de Hsun Zi, em cuja obra, sob influência do pensamento taoista, o termo adquiriu uma significativa mudança."

E mais adiante "No Tao Te Ching, o termo não tem mais o significado de way ofsomething (à inglesa, via, ou caminho de alguma coisa) mas o de uma entidade completamente independente que substituía o Céu em todas as suas proverbiais funções. Mas TAO era, também, a via seguida pelo universo inanimado, assim como pelo homem. Em resultado, lendo-se o Livro de TAO chega-se por vezes à conclusão que existe um certo desfasamento entre o TAO como entidade (naturalmente, corpórea, capaz de fazer nascer as coisas!) e o TAO como princípio abstracto".

Lao Zi, e o búfalo. Cerâmica original de Lio Gui Bing. Foto extraída do catálogo da exposição "Cerâmica de Shiwan de mestre Lio Chuan e Lio Gui Bing". Fundação para a Cooperação e o Desenvolvimento de Macau, Novembro de 1999.

Sem se pretender estabelecer comparações, o que seria ocioso, tragamos aqui a propósito, a opinião sobre esta matéria, de Richard Willem (ib.) - "No Livro das Mutações encontramos as fundações astronómicas/astrológicas da religião chinesa evidenciada através dos conceitos Céu e Via (way) do Homem, depois adoptadas na filosofia de Confúcio: Mas Lao Zi construiu a sua filosofia a partir daí. Porque Lao Zi tinha uma filosofia, mesmo que nos tivesse deixado apenas alguns aforismos, os quais, entretanto, contêm um corpo orgânico de pensamento que se revela, por si mesmo, a quem seja capaz de entender o seu verdadeiro contexto. Lao Zi começou por procurar um princípio fundamental para a sua visão do mundo".

"O Tao do Céu, e o Tao do Homem - prossegue Willem - são conhecidos desde tempos remotos, o TAO absoluto, não. Tao significa caminho. Mas, dado como Lao Zi usa a expressão, ninguém a pode traduzir por caminho, ou fé. Na língua chinesa existem duas palavras para Caminho: Uma é LU, produto da combinação dos símbolos para perna e andar. E por isso a combinação associa-se simplesmente ao andar. O outro vocábulo para Caminho é TAO, derivado da combinação dos símbolos para cabeça e seguir, e significa o caminho que conduz a um objectivo, ou a uma direcção, ou percurso determinados. Parece que este símbolo foi primeiramente usado para indicar o percurso astronómico das estrelas".

Um escritor francês, René Grousset (Rise and Splendorous of Chinese Empire, L. Angeles, USA. 1953) neste Livro trazido à colação, embora por outras palavras, e de um modo mais categórico, sem fugir, por completo, à regra geral citada, escreveu: "Aprofundando a antiga noção de TAO, o taoismo (de Lao Zi) imprimiu ao pensamento chinês uma notável dimensão metafísica, mesmo que esta ideia necessite de uma definição precisa. Tao é uma substância cósmica, anterior a todas as determinações". E mais à frente: "Tao é concebido menos como uma substância do que como uma força espontânea e vital. É um poder inato que movimenta o mundo, ou melhor, "princípio permanente de um poder inato universal - força cósmica idêntica a um impulso vital.

Não é bem isso o que dizem outros pensadores:

"Tudo o que acontece no Universo - é um Tai Chi, contendo o Yin e o Yang, e todas as ocorrências individuais combinam com um grande evento, que é igualmente um Tai Chi. As alternações (transmutações) do Yin e do Yang constituem a inevitável verdade do universo. Este fenómeno natural é claramente observável nas alternâncias dos dias e das noites. No entanto, em muitas áreas da vida, a alternância não é facilmente detectável. A detecção dos Sinais de Mudança constitui um método que permite determinar como se obtém a harmonia através das subtis leis do universo em todas as manifestações de vida. Os sinais da mudança indicam a alternância do Yin e do Yang em condições específicas. Assim, logrando-se reconhecê-las, classificá-las, compreendê-las, e por fim, utilizá-las, com um espírito racional, e igualmente com a intuição, pode aprender-se a lidar com todas as circunstâncias que ocorram na Vida. Isto, porém, constitui apenas a parte superficial da utilidade da Inquirição dos Sinais de Mudança. Os mais elevados padrões destes princípios quedam-se na sua utilização, no sentido de harmonizar todos os elementos de um Ser, e regresso a um estado de singularidade". (Passim)

A diferença teogónica entre a teoria dita confuciana, expressa pelos seus discípulos nos Apêndices do Livro das Mutações - e o ainda mais antigo pensamento taoista encontrar-se-á, talvez, patente na definição do sentido de Tao. Para Lao Zi, o movimento principal deste Universo era a reversão, o regresso ao Um, esgotado o primeiro, voltar ao princípio de um novo ciclo, ou, ainda, como corolário da asserção relativa às transformações naturais cíclicas, dando-se como significativos exemplos, a sequência epifenoménica das estações climatéricas, o desenvolvimento progressivo (da matéria) - e a lei universal que funcionaria através destas mudanças contínuas. Portanto, o universo funcionava segundo um auto-movimento, rotativo, a cujas regras obedecia, por ciclos, a transformação contínua da matéria (e não do espírito, não por metempsicose, jamais sequer, sugerida por Lao Zi).

A contraparte de Confúcio, segundo os seus aderentes, era a concepção de um Céu (T'ien=Deus) como sendo a origem do universo, ideia extraída a partir de um dos versículos do Livro das Odes, que, se a tradução não tiver sido, deturpada, será do seguinte teor: O Céu deu origem à multitude (multidão) de seres, e foi pelo Céu que as coisas adquiriram a sua identidade (tao) e directrizes próprias, que regulavam o seu comportamento. E ainda: A realidade da Não-Existência e a essência dos Dois (Elementos) e das Cinco (Funções) combinam e actuam (coagulate) misteriosamente. Aqui, o que é entendido por realidade implica, uma força material emanante. O regulamento significaria a natureza humana e o seu comportamento social, a reverência geral perante os Céus, a submissão dos homens inferiores diante dos superiores. A identidade (ou matéria = matter) conciliar-se-ia com a forma física. (aparência específica). Foi pelas suas palavras (ou ideias) que os seus discípulos lutaram encarniçadamente. E ainda hoje lutam...

Esta perspectiva, e tudo o mais quanto se diz que Confúcio disse - têm o seu quê de eufemístico, considerando-se que, como se sabe, o Venerável Mestre apenas deixou discípulos, inflexíveis lutadores por ideias, que seriam suas, mas nada escrito de seu próprio punho. Aquilo que os seus seguidores viriam a passar à responsabilidade do seu nome, cem, duzentos, quatrocentos anos depois, não se sabe até que ponto podem ser uma tradução fiel, escrupulosa e séria, do seu pensamento, eventualmente explanado nas suas prelecções ambulatórias. Não parece seguro assumir esse penhor.

Em todo o caso, diga-se - tem sido ao crédito das evocações alheias, e desatempadas, que o prestígio de Confúcio se firmou, outorgando-se-lhe primícias de uma glória, que tanto pode ter merecido, como não. Quem, pelos vistos, a não mereceu, ao mesmo nível, foi Lao Zi, secundarizado, como ficou, mais por ser contestatário e indócil, do que por avaliação dos seus virtuais méritos. As sociedades organizadas, ontem, e hoje, defendem, e protegem, muito mais os submissos e reverenciais, do que aqueles que, normalmente, remam contra as marés.

Não findam aqui as virtuais contradições com que o Tao Te Ching tem sido confrontado. Submetido a interpretações, algumas delas revestidas de boas intenções, porém, nem sempre - não deixam estas, todavia, de serem criteriosas, e, como tal, passíveis de legítimas reservas.

No citado Livro de Zhuang Zi (sec. IV a. e. a.) no seu último capítulo sobre "O Universo", sugere-se que as ideias fundamentais de Lao Zi correspondiam ao Tai-Chi. a um Grande Um, ao Ser, e ao Não-Ser, ou ainda ao Invariável. O Grande Um era Tao. Tao dera origem ao Um, e por isso, Tao era o próprio Tao, o Grande Tao. O Invariável, (em chinês, ch'ang) conciliava-se com o significado do Eterno, ou permanente. Apesar de todas as coisas passarem por contínuas mudanças, e sucessivas transformações, as leis que governavam estas transformações de coisas não eram, por si mesmas, transformáveis, e assim, tinham-se por fixas, e eternas.

Por isso, Lao Zi escrevera: "A conquista do mundo provém invariavelmente da não-acção". E não de uma deliberação prévia e voluntária. Ou: "A natureza (ou o Sábio) em nada o favorece, mas está sempre do lado do homem bom. (Adaptação de uma tradução de Fung yu-Lan, ibidem.)

Uma, já agora, terceira anomalia parece poder deduzir-se da versão do Cap. 19, em que se procura convencer os homens em geral, (e não o leitor do Livro em particular) a não fazerem uso do conhecimento e da sabedoria, e dedicar-se, em vez disso, à inacção, como quem diz, à meditação, esta sim, a chave-mestra da teoria laociana.

Em primeiro lugar, a suposta proposição confronta-se, conforme já apontado na segunda página, com a razão que teria levado Lao Zi, ele próprio, homem de cultura, e activo fazedor de um Livro - destinado, naturalmente a alguém que soubesse, o que não seria nada fácil, ler e entender os seus textos, capazes, por isso, de receberem e compreenderem a mensagem - a elaborar o seu trabalho - quando, por outro lado, se diz que preconizava que ninguém se preocupasse com o estudo e o acumular da sabedoria.

Em segundo lugar, pela criação, genuinamente literária, da figura do Sábio, de resto, oriunda do Livro dos Ritos, com todas as virtualidades de pessoa culta, não intervencionista, mas moderada e consensual, paradigma do oposto da tese defendida. (v. ad.)

Portanto, o conceito mais parecerá uma deturpação do texto original, talvez tradução defeituosa de uma obscuridade mal decifrada, de quem, trasladou ou restaurou uma cópia deturpada, ou em mau estado. Sabia Lao Zi, como toda a gente, que deliberada e voluntariamente nada se desaprende do que antes se haja aprendido. Seria, pois, redundante, admitir que Lao Zi tivesse escrito exactamente que abraçar o culto, ou prática da Inacção implicaria, obrigatoriamente, um regresso progressivo à ignorância. Deve haver outra saída para este problema.

Tantos, porém, têm sido os escritores e académicos, chineses e ocidentais, a aceitarem a tese da renegação (despojamento) da sabedoria, preconizada (aparentemente) por Lao Zi - que poderá parecer inverosímil, e extemporâneo, pô-la em causa. Seja como for, aceitar, como certa, a versão, primeiramente posta em análise, corresponderá a uma contradição já não apenas com a lógica das coisas, mas, globalmente, com o próprio texto. Sendo o primeiro taoista, para sê-lo, e para redigir o seu livro, Lao Zi não só não nada desaprendeu, como levou a sua sabedoria ao limite da intuição. Portanto, uma ilegitimidade da interpretação feita tem de passar à exclusiva responsabilidade de quem a cometeu.

A verdade, ao que parece, e pelo que Zhuang Zi dará competente penhor - é que isso mesmo estará patente na edição dita original, conforme se poderá deduzir de um trecho do seu livro.

Extraordinário escritor, pois, a quem muitos comparam, sem desdouro para o seu talento, e subtilíssimo espírito de argúcia e arrasadora ironia, a Voltaire - comprazia-se, não poucas vezes, em transformar as abstracções do Velho Mestre, através da arte do diálogo, em parábolas empregando nelas interlocutores que poderiam ser pessoas, vivas ou mortas, coisas e animais. Na história que se segue, configurando o já falecido Confúcio (para arrelia, claro, dos confucionistas). Zhuang Zi (399-286) satirizou, com efeito, o tema, numa brilhante parábola:

Uma vez o prosélito Yen Hui, disse, dirigindo-se ao Mestre:

- Fiz alguns progressos!

- Como? Interrogou Confúcio

- Esqueci-me da benevolência e da probidade

- Muito bem, embora isso não seja correcto.

Dias depois, Yen Hui procurou de novo Confúcio, e disse:

- Fiz novos progressos

- Como? - indagou o Mestre

- Esqueci-me dos Cerimoniais e da Música.

- Muito bem, embora isso não seja perfeito - advertiu o Mestre.

Mais tarde, Yen Hui voltou ao professor:

- Mestre, fiz alguns progressos

- Como?

- Esqueci tudo!

Confúcio ensombrou o rosto, e inquiriu:

- Que queres dizer com esquecer tudo?

- Desisti do meu corpo, alheei-me dos meus conhecimentos. Por isso, descartando-me do corpo, e da inteligência, tornei-me um Ser do Infinito (taoista). É isto o que significa esquecer tudo".

A forma irónica, quiçá corrosiva, como Zhuang Zi trata este, e outros temas laocianos, também poderá não significar que tenha sido rigorosamente seguido o pensamento de Lao Zi, mas resposta intencional a uma eventual, premeditada, e generalizada deturpação que se fazia das ideias do Velho Mestre.

Uma hipótese, provavelmente não de todo desacertada, seria a de que, Lao Zi, efectivamente, o que preconizaria, era que as pessoas, para se dedicarem por inteiro à prática do imobilismo, (ou inacção) e alcançarem, como objectivo, uma paz e tranquilidade absolutas, e assim a longevidade - deveriam renunciar a todos os sinais exógenos de uma vida de ostentação e de extravagâncias, substituindo-os, pelo recolhimento, humildade, e reflexão.

Como disse Kuang-ki Cheng (op. cit.) "com, ou pela Inacção (o autor refere Tao, ou a Via) (o homem) deve abstrair-se da sua condição, e regressar à verdade etérea, ou seja, assumir uma verdadeira conversão. Renunciar às coisas exteriores (que possa dispensar) incluindo a sua própria personalidade (social) rejeitar os sentidos (desejos, ambições, o pensamento, as paixões) simplificando, e unificando, ao máximo, toda a diversidade - para alcançar finalmente, a vacuidade (paz) completa, e a quietude absoluta".

Havia uma crença de que o tempo de meditação e recolhimento era compensado pelo alongamento da vida. E uma vida mais longa, permitia alcançar perfeita harmonia (v. ad.) com o universo. Esta tese é proposta igualmente no livro Huai nan Zi (atribuído a Li An, +122 a. e. a.), neto do primeiro imperador Han, e virá, originalmente, do Livro dos Ritos1. (Ver p.123)

A harmonia com o universo significaria a longevidade - lenda que vinha desde os tempos de Huang Zi, o imperador amarelo, que fora às montanhas colher o elixir da vida... Conjuntamente com esta teoria da longevidade, surgiria também a alquimia, um subproduto da magia associada posteriormente ao taoismo, através de um livro singular, "O Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo (Huang Di) elaborado no século IV a. e. a.

Estas adições espúrias à obra de Lao Zi, como as dos esoterismos dos Apêndices ao Livro das Mutações feriram, de alguma maneira, a pureza, e a marca de seriedade do Tao Te Ching, e do seu Autor, dando origem à multiplicidade de livros marginais e fantásticos, que ainda hoje, vinte e cinco séculos depois, iludem as pessoas crédulas.

Seiscentos anos depois de Lao Zi, contam os Evangelhos cristãos que Jesus foi um dia interrogado na Galileia, por um homem muito rico. "Mestre o que hei-de fazer para poder entrar no reino dos Céus? - tendo o rabi respondido: despoja-te dos teus bens, e segue-me..."

Há, igualmente, como se verá, quem opine que o Tao Te Ching não passa de uma compilação de textos antigos (eventualmente avulsos) negando-se, deste modo, não só a autoria, como a própria existência de Lao Zi (condescendendo-se, em alguns casos, que tenha virtualmente vivido entre 480-390, cem anos mais tarde do que o suposto). Esta discussão, verdadeiramente anacrónica, e pueril, será recuperada mais à frente, adiantando-se desde já que, entre outros possíveis - existe nesta obra o tal elemento que desempenha um papel fundamental, e se admite possa compaginar-se com a unidade textual, e com o estatuto de escritor devido ao seu (único) Autor. É este o segundo ponto a evidenciar.

Trata-se da figura singular, já referida, do Sábio, que comparece em todas as partes do Livro, isto é, desde o segundo capítulo, até ao octogésimo primeiro. Antes que ninguém, até porque não os separariam mais de cerca de duzentos anos no tempo - Zhuang Zi compreendeu a natureza e o desempenho deste Sábio, deixando dele excelente retrato, chamando-lhe inclusive, o Homem Perfeito. (Richard Wilhelm, v. ad. chamar-lhe-á Man of Calling). Não se registarão ambiguidades na identificação projectada, embora num ou noutro passo, este Sábio ou Homem Perfeito, possa confundir-se com o próprio Lao Zi. Apesar de contido e prudente, e não interventor directo, o Sábio é a parte que TAO não poderia ser (porque não existiria) paradigma do discernimento e equilíbrios pedagógicos que, outrossim, sublinham o carácter de Lao Zi O Sábio, ou o Homem Perfeito, era aquele que estava em Harmonia com o Universo.

Embora haja quem pretenda visualizá-lo em mais de um capítulo, entendem, porém, outros, que Lao Zi, como pessoa, e como filósofo, se descobre que intervenha, apenas no Cap. 20 do seu Livro, talvez ainda no capítulo seguinte - fazendo-se, nos restantes, substituir pelo Sábio. Valerá a pena guardar esta observação para quando se ler o Tao Te Ching, e deparar-se com este sábio, e aquilo em que ele, implicitamente, intervém, ou que faz.

Entretanto, veja-se como Zhuang Zi se refere a este Perfeito Homem, ou Ser Espiritual. Na realidade, mais um símbolo do que um ser humano? É de constatar...

"O Homem Perfeito -escreve Zhuang Zi, - não sente qualquer calor, mesmo que todo o oceano ferva, nem sente qualquer frio, mesmo que os rios congelem. Mesmo que as montanhas se fraccionem devido a relâmpagos e trovões, ou que os mares transbordem as margens, devido a tempestades, Ele não se assusta. Poderá cavalgar as nuvens, o sol e a lua, voar sobre os quatro mares. Nem a vida nem a morte exercem sobre Ele qualquer efeito. E muito menos futilidades, como os lucros e os prejuízos".

O Sábio de Lao Zi não corresponderá, exactamente, ao que é, no texto transcrito, excessivo e fantástico. O próprio Zhuang Zi o admite no corolário do que escreveu.

Teria este Sábio sentimentos humanos? (Veremos que sim, no cap. 78 - pois que, em comunhão (Meditação) Ele (e não TAO, pois que era inerte, não tinha, nem podia ter, ou sentir, afectividades) estava sempre do lado dos homens bons!

Mas, é melhor que, sob a fórmula de parábola, o diga Zhuang Zi, à maneira do seu talento:

Uma vez, o seu amigo Hui Shi (380-305) perguntou-lhe:

- Existem, realmente, homens sem sentimentos humanos?

- Certamente - respondeu Zi.

- Um homem sem sentimentos humanos não pode ser Homem. - volveu o sofista.

- Desde que o Eterno Te lhe atribuiu forma humana, é possível chamar-lhe Homem.

- Mas os sentimentos fazem parte do conceito do Homem- insistiu Hui Shih. Zhuang Zi replicou:

- Não os sentimentos que eu tenho em mente. Quando digo que alguém não tem sentimentos, quero significar que esse alguém não ofende a sua essência interior, por inclinação, ou desinclinação. Ele segue a natureza em todas as coisas, e não procura, activamente, desta forma, dinamizar a sua vida.

Então, Hui Shih perguntou: - Se ele não procurar dinamizar activamente a sua vida, como poderá a sua essência (de homem) persistir?

Respondeu Zi - Te deu-lhe forma, sem ofender a sua essência interior, por inclinação, ou desinclinação. Mas tu ocupas a tua mente em coisas que não te dizem respeito, e introdu-las em vão, nas forças da tua vida. Te deu-te a força física, e tu não és capaz de outra coisa senão reflectir nos teus sofismas". (Livro V, parte 6)

É verdade que não foram vistos todos os livros que, sobre os méritos do TAO TE CHING, no mundo, e ao longo dos tempos, se publicaram, e em que se debateram, em profundidade, as matérias neles contidas. Pode ser, portanto, que nada disto seja como aqui se diz, sem a importância com a qual, presumidamente, se pretenda corrigir eventuais desvios, incompatibilizados com a lógica das coisas, e com o perfil intelectual de Lao Zi, cuja obra, produzida a dois mil e quinhentos anos de distância, e que o tempo não fez desfalecer, ainda hoje faz parte do património cultural do seu País, e de todo o Mundo.

Foi nesta tenção que se empenhou, neste livro, a vontade de obliterar as suas possíveis discrepâncias, e inexactidões. Nem sempre o resultado satisfatório, que a parte requeria, foi atingido. Pelo contrário, em algumas vezes não se fez melhor do que arremedar, toscamente, o que fora anteriormente adoptado por académicos da mais elevada estirpe.

Seja como for, seria abusado sacrilégio ousar modificar um original de Lao Zi, - tido por genuíno e autêntico - fosse esse o caso em análise... Não é. As versões que tem corrido mundo divergem, entre elas, e não pouco, chamando cada tradutor a si o direito de interpretar à sua maneira, nem sempre propriamente, o sentido. e as palavras do Velho Mestre.

Obviamente, o que aqui se contesta não são as versões originais de língua chinesa, mas algumas das suas traduções, mesmo as que hajam sido elaboradas em língua inglesa por académicos chineses. A denúncia não propende a dividir, ou diluir, no meio delas, responsabilidades por lapsos cometidos, erros voluntariamente, ou por incapacidade pessoal. Apenas se teve por intuito confessar honestamente que, se erros houver, e há-os certamente, os mesmos não se fundamentaram em irreverência presumida e irresponsável, nem fizeram parte de alguma estratégia fraudulenta e desleal para desacreditar anteriores edições alheias consultadas. No mínimo, isso seria estupidamente pretensioso.

Também à colação não vem o assunto como tentativa de evidenciar o desplante de uma perscrutação singular - ninguém, aqui, se compara a ninguém - o que, no caso vertente, não faria qualquer significado - mas tão somente tentar-se uma abordagem diferente, original, pode ser que sim, pode ser que não - ao milenar Livro de Lao Zi, vê-lo, talvez, com olhos, desembaciados, eliminados à contra-fé, constrangimentos tradicionais do preconceito e da reverência, sopesar com outra mão, a canhota, pode ser, aquela noção de um Vazio cósmico, (aliás, nem cósmico poderia sê-lo, visto que não havia ainda um Cosmos) - um Nada absoluto, coisa que não existia, e que por isso não podia interferir em nada, ou de alguma maneira, ter sentimentos, como, igualmente, não tinha forma, nem ângulos, não tinha massa física, ou não física, não tinha capacidades virtualizáveis. Por um fenómeno que Lao Zi, naturalmente, puro agnóstico no seu tempo, não sabia explicar, como ainda hoje se não sabe, nesse, e não desse TAO inânime, e inominável, ou caos, nem se poderá dizer que fosse de repente, porque nem sequer Tempo havia - ocorreu o surgimento de um Um.

Finalmente, uma coisa! Esta coisa foi o Universo, simultaneamente, o Espaço, o Tempo, o Yin e o Yang, o feminino e o masculino, o positivo e o negativo, a Mãe de todas as outras, ou dez mil coisas, definidas e evoluídas através de faculdades inatas de outra coisa, também imanente, a que Lao Zi atribuiria o nome de Te, por meio da qual se operavam as suas transformações, e, que, naturalmente, as fazia evoluir.2

Os debates, que assanharam os prosélitosrivais, de um lado, os confucionistas, que nãoadmitiam ter sido Lao Zi, propugnador de teoriasabstrusas, anterior ao seu Venerável Mestre queconheceria melhor a arte, e os mistérios da vida; eda outra parte, taoistas não menos ferrenhos, queperfilhavam tese oposta - ainda hoje alimentamlabaredas mal apagadas desta fogueiracontroversial, mantendo-se vivas as opiniões decada campo, esgrimindo cada qual com argumentos, aliás, nem sempre isentos de engenho e uma certa lógica, alguns deles, porém, imbuídos de uma feição de mútuo desafeiçoamento, que só muito dificilmente, hoje, se entende, e aceita.

Baseavam-se, os contraditores confucionistas muito mais na ausência de provas incontestáveis, que atestassem, sem sofismas, a existência histórica do filósofo rival, e a autenticidade de autoria da obra - do que em demonstrações provadas, que avalizassem, irrefutavelmente, a verdade oposta. Mêncio (371-338) que se tornaria, nesta matéria, referência capital, embora deixasse escrituradas criticas à doutrina, e aos cultivadores do taoismo, não mencionou no seu livro, uma única vez, o nome de Lao Zi, e o facto atestaria a probabilidade da não-existência histórica, no século VI a. e. a. da pessoa, e da obra do destemperado filósofo - que, aliás, o escritor não questionou, em concreto.

Por seu turno, aquele que é considerado o maior, e o mais importante dos taoistas, o já antes citado Zhuang Zi, homem, também de meados do século IV antes da era actual, sem embargo de não mencionar, literalmente, nem a obra nem o Autor, interpreta, ou, melhor dizendo, ilustra no seu próprio livro, de modo, aliás, satírico, vários conceitos do Tao Te Ching. Este jeito supinamente irónico de Zhuang Zi poderia levar outro crítico menos propenso, e mais desconfiado, a duvidar da sua genuína condição de verdadeiro taoista.

É verdade que o sarcasmo de Zhuang Zi molesta muito mais a filosofia de Confúcio, e dos seus apaniguados, do que os taoistas, mas o texto de Lao Zi não fica totalmente indemne diante das labaredas irónicas do Comentador.

Em todo o caso, jamais Zhuang Zi poderia ter ilustrado os conceitos de Lao Zi - se este não lhe fosse anterior - como, de facto, o foi, em cerca de duzentos anos, tanto ele, como de Confúcio, de quem faz personagem de algumas das suas mordazes parábolas.

Facto relevante desta controvérsia residiu na necessidade, ou tendência, que estimulou os adeptos de Lao Zi a responderem à letra aos argumentos contrários, os quais, só por bondade, uns e outros, caberiam nos parâmetros do livro original. Não se negará mérito ao verso e ao controverso, e a sagacidade, muitas vezes subtil, de alguns pressupostos esgrimistas, atendendo, sobretudo, às recuadas eras em que foram agitados os temas referidos. Mas não pode deixar de se observar que a emulação, em ambas as partes, fez entumescer, não poucas vezes, o que pudesse ter sido um sentido razoável das proporções.

À medida que se vai tomando conhecimento da matéria, mais se sente o impulso de dizer que o conflito foi exacerbado, não pelas ideias antagónicas originais dos dois mestres, mas através das congeminações (implícitas e explícitas) desenvolvidas, séculos depois, pelos prosélitos de Lao Zi, e as paráfrases dos sequazes confucianos, principalmente, dos autores dos Apêndices ao Livro das Mutações, e outros, a cujas elucubrações e prodigiosa imaginação, não deixará de se reconhecer, além da fidelidade ao pensamento confuciano, a arte do circunlóquio com a qual procuraram, obstinadamente, tirar o melhor partido da guerra de palavras, em que se envolveram. O que dirá respeito tanto aos antigos apaniguados, como aos modernos críticos, alguns dos quais, tratando, embora, estas matérias mais de acordo com uma dialéctica dos tempos actuais - não conseguiram libertar-se de um certo tipo de sectarismo contumaz que não caucionará a isenção do seu pensamento.

E o que acabaria, eventualmente, por tomar abstracto, ou confuso, o texto laociano, foram precisamente as confusões dos que ulteriormente quiseram interpretar, cada um à sua maneira, o que porventura fosse bem mais legível sem explicações, nem acrescentos, pelo menos, escusados.

De qualquer modo, o exemplo mais frisante deste antagonismo decorrerá, com efeito, da tendência (ou preocupação?) dos autores responsáveis dos Apêndices ao Livro das Mutações, de desvalorizar as ideias taoistas sobre a origem do universo, a partir de um vazio (cósmico) e de uma proto-teoria mecanicista ortogénica dos fenómenos, sobrelevando, adversamente, os conceitos do Céu e da Terra propostos por Confúcio. A ciência conhecida dos nossos tempos mostra como Lao Zi estava muito mais próximo da realidade, do que Confúcio e seus discípulos - desde a concepção de um tai-chi, que se poderá representar como um big-bang à moda antiga, até, por exemplo, mesmo que pareça extravagante citá-lo, à última e mais recente (1999) definição das hipernovas - ou seja, em termos elementares, a explosão de uma estrela após ter esgotado todo o hélio de que era constituída, entrada, por isso, em colapso, dando origem a um nova estrela de grande densidade (neutrões), ou a um buraco negro.

Poderá parecer despicienda esta associação de uma descoberta altamente científica e técnica dos nossos dias, com a simples dedução de um filósofo de há dois mil e quinhentos anos, "que não tinha meios para comprovar as excogitações do seu pensamento". - mas não é possível deixar de notar esta coincidência. De uma estrela que se esgota e estoira, terminado o seu ciclo, se se puder considerar vital, dando lugar a outra - com a teoria singela do Yang que se transmuta, no fim de cada ciclo, em Yin, e vice versa. (Ver Cap.28.)

Um dos críticos do nosso tempo, escritor de grande gabarito foi, ou é Martin Palmer, co-autor, junto com Jay Ramsay e Man-ho Kwok, de uma edição do Tao Te Ching, nos EUA e na Inglaterra, em 1997 - que escriturou um excelente ensaio, na prefação desta obra. Este académico afirma no seu livro que "há poucas dúvidas de que Confúcio não se tenha encontrado com alguém chamado Lao Tzu (Zi), porque este encontro está registado em algumas fontes confucianas". Mas, consentindo nisto, opõe-se, todavia, a tudo o resto. Uma das ideias por si exposta, propõe a tese de uma recolha efectuada por discípulos do seu Mestre, ferrenhos e diligentes, de oráculos e provérbios antigos de mais de dois mil anos, passados de geração em geração, que viessem por fim a ser compilados e publicados sob responsabilidade nominal de Lao Zi, em duas secções (ou livros) Tao e Te, "provavelmente em (apenas) setenta estâncias. Os restantes onze capítulos teriam sido acrescentados, portanto, apocrifamente, ao texto original, cerca de duzentos anos depois, ou seja, entre cerca de 300 a 250 a. e. a., por assim dizer, no período final da dinastia de Zhou ocidental (Estados Guerreiros), e próximo do advento da dinastia Qin (221-207).

Embora não possa negar-se o mérito da apologia, necessitará, a argumentação de Palmer, de outras e mais fundamentadas demonstrações, para ficar a valer como juízo credível.

Esta parcela de indiscutível novidade, de um primeiro livro conter apenas setenta estâncias, que mais ninguém, antes ou depois, que se saiba, perfilhou - não parecerá, em absoluto, despicienda, face aos argumentos aduzidos, assim naturalmente, e de facto, apareçam idóneos e incontestáveis comprovantes, de natureza diversa dos apresentados.

Baseia-se, a conjectura no facto de a versão de que se fala, a partir da qual a Obra terá chegado aos nossos dias, poder, pressupostamente, ser do terceiro século a. e. a. - e conter mais do que os 5.000 caracteres que Sima Qian fixou no seu livro "Registos da História". Efectivamente, (ou na verdade), o Livro hoje conhecido é constituído por 5.350 palavras, pormenor que, de resto, não se reveste de qualquer importância especial na análise da questão. A ausência de diferenças lexicais significativas, e de desajustamentos temporais, de natureza social, e outros de carácter político, cuja avaliação e análise, mesmo não muito em profundidade, mal caberiam nesta oportunidade, não deferirão totalmente a probabilidade sugerida. Embora também não concedam, forçosamente, arras de autenticidade à causa oposta.

Procurando fundamentar a sua tese, Palmer explana que nos primeiros setenta capítulos, "o estado (ou país) mostra-se quase sempre presente, essencialmente como uma boa coisa, melhor, quando governado por um sábio, ou sagaz soberano. A impressão que se tira dos últimos dez capítulos (de 71 a81)éade um pequeno estado, controlável e não agressivo, sob a perspectiva, ou ameaça de um colapso, diante do risco do advento do totalitarismo." - o que, de resto, sem que a circunstância corrobore a proposição, viria a acontecer em 230 a. e. a, com a derrota imposta ao último dos Zhou, por Shih Huang Di, (do estado de Qin) o qual, nos oito anos seguintes, dominaria os reinos vizinhos de Han, Zhao, Wei, Qi e Yan, com isso ocorrendo, em contrapartida, a primeira unificação do País, que vai precipitar, igualmente, o fim do feudalismo. Shi Huang Di, na realidade, monarca vitorioso, tirano e despótico, foi quem mandou proceder, (no ano 213 a. e. a.) entre outras violências, à queima de todos os livros antigos, sobretudo os versados no confucionismo, mas, certamente também, de igual modo, entre outros, provavelmente o de Lao Zi. Também em contrapartida, Shi Huang mandou construir o Grande Canal, e a Grande Muralha, e a monumental obra hoje considerada de grande valor histórico e artístico, mas, sem qualquer dúvida, megalómana, do exército de terracota que mandou modelar para que lhe preservassem a memória, isto é, que lhe defendessem o mausoléu, e os restos!

Os altos e os baixos do comportamento, e do carácter das pessoas...

Esta realidade, contudo, também não virtualizará a presunção sugerida, nem acrescenta ao facto o pressuposto de um destino como sendo um desígnio inevitável.

A tomada de posição de Palmer, no entanto, não deixará de ter o seu peso, menos pela importância dos argumentos utilizados, que adoecem, em todo o caso, da falta de melhores e mais consistentes comprovações - do que pelo prestígio que o seu nome desfruta no mundo cultural, e esta razão não será de somenos. O reconhecimento oficial, porém, da existência de Lao Zi, e da sua autoria da obra global, hoje geralmente aceite, e ainda abalizadas opiniões de várias outras personalidades, de igual modo, lícitas do mundo da cultura, que cruzaram a critica do livro em diferenciadas direcções - se não autorizam a colocar-se um ponto final no assunto, não deixam, contudo, de ser relevantes na avaliação, pela positiva, que do problema possa fazer-se.

A ideia de o Livro de Lao Zi ter sido elaborado, pelo menos, em duas partes, como se sabe, não é original. É isso o que a palavra autorizada de Wang Bi assegura, e, depois dele, outros o têm feito, referindo que o Tao Te Ching fora, inicialmente, constituído por dois livros, o primeiro, não até à estância 70, mas, até ao capítulo 37, e o segundo, a partir daí, até ao cap. 81, sob alegação de que é no versículo 38 que Lao Zi menciona, pela primeira vez, a palavra Te - não como símile de moral, mas entidade filosófica, associada à transformação e classificação das coisas. A verdade, porém é que jamais se conseguiu provar que assim tenha sido, isto é, que o Autor tenha produzido a sua obra em duas partes. De uma maneira, ou de outra!

Outro conspícuo académico, o neo-confucionista Fung Yu-Lan (1896-1990) foi um dos que igualmente adoptou a primeira proposição, de que esta Obra teria sido compilada, trezentos anos depois da morte de Lao Zi, por razão de conter um sistema de ideias que não podiam ter sido "contemporâneas", mas ulteriores, a... Confúcio.

Marcando, na matéria, uma atitude indubitavelmente contestante, começa Fung por dizer que não existe necessariamente conexão entre Lao Zi e o Tao Te Ching, "que deve ter sido elaborado muito mais tarde, num período de tempo entre Hui Shi (350-260) e Kung-sun Lung (c.325) - porque o Livro continha considerável discussão sobre nomes - matéria controversa apenas a partir do séc. III, (Fundação da Escola de Nomes, ou Logismo, em chinês, Ming Ching) e, porventura, não antes, razão pela qual somente os seus responsáveis propugnadores deveriam ter, por si próprios, criado (ou desenvolvido) uma consciência (do significado, ou justificação) dos Nomes. A problemática dos substantivos nominativos tinha sido, nos finais do século V a. e. a., causa de um movimento singular, pelo qual os senhores feudais pretendiam fruir de um direito de posse, por ocupação (usucapião) de terras comunitárias. O objectivo em vista, nos tempos em que o feudalismo, no Império do Meio estrebuchava, seria, não apenas assegurar a propriedade plena do latifúndio, como, por igual, o direito dos seus descendentes à herança patrimonial. A concretização deste plano exigia, e passava, pela assunção de uma identidade do candidato através de um antroponímico específico. Em todo o caso, não parece ter sido este o fundamento da invocação citada.

Não será difícil de subentender, tanto quanto isso possa deduzir-se das versões confrontadas, uma reacção implícita, e natural, do Velho Mestre a este tipo de reivindicação que ia contra o interesse dos trabalhadores da gleba. A menos que se insista na vivência de Lao Zi no século quarto, ou no terceiro, da era antiga, o que não parece consistente - não deixaria de ser irrelevante qualquer hipótese de conciliar a doutrina dos nomes desencadeada no século III com a elaboração do Tao Te Ching em finais do século VI, ou princípios do seguinte. Fung entretanto, não deixa, de acentuar que não insistiria na dúvida de que não houvesse uma eventual ligação entre Lao Zi e o Livro de TAO, o qual, verdadeiramente conteria "algumas expressões originais do Velho Mestre" eventual subtil contradição, se calhar, produto de tradução defeituosa de uma ideia não bem conseguida...

De tudo quanto nos tem sido transmitido, e seja de conhecimento comum, ninguém, até hoje, por comprovantes idóneos, ou fluência de um raciocínio invulnerável, conseguiria, de qualquer modo, invalidar verdadeiramente, a hipótese da existência de um primeiro original, redigido por mão do próprio Autor. Tanto que Sima Qian recolheu, e passou à história, a legenda do episódio de Yin Hsin, encarregado das portas da cidade de Ku, hoje, Distrito de Luyi, da província de Henan, embora seja lógico pôr de remissa a hipótese, deixada no ar por Fung Yu-Lan, de o Velho Mestre haver podido escrever o seu tratado numa única noite... Pode ser que esta história, nos termos em que foi narrada, não passe de uma lenda, mas ninguém pode provar que, desta, ou de outra forma parecida, a mesma não contenha uma porção de verdade. O que, entretanto, poderá afirmar-se, isso sim, é que Li Ehr Tan, ou Lao Dan, depois consagrado como Lao Zi, ou Velho Mestre, existiu, como pessoa, homem de cultura que, indiscutivelmente, foi, muito intuitivo, e não menos inteligente, imortalizado autor de um livro, que, embora não sendo, no seu tempo, ignorado filósofo e erudito (pelo menos para Confúcio, e discípulos que o conheceram e indeferiram as suas ideias, a mais significativa delas, a de Tao, e da origem do universo) - não terá sido, na justa acepção do palavra, um professor, não terá tido uma escola, ministrado lições, não terá tido, por isso, no seu tempo, (embora haja quem sustente o contrário) discípulos, nem coevos, nem muito próximos futuros, (não contando com Zhuang Zi, e seus acólitos do século IV) que recolhessem uma eventual tradição oral de quaisquer prelecções, que, portanto, também, não tivessem existido.

Se o autor do Tao Te Ching fosse homem do séc. III. ou IV, como há quem diga, por isso, eventual contemporâneo ainda, de Zhuang Zi, (e de Mêncio) estranho seria que estes não tivessem dado em pessoa, por ele, inclusivamente, com quem, ambos não convivessem, especialmente Zhuang. Se o não fizeram, foi, certamente, porque o Velho Mestre já havia falecido há muito. Não se insistirá demasiado nestes pontos, não que pareçam controversos, mas porque não se consegue saber se não existirão inexactidões cronológicas, ainda não decifradas, que possam, porventura, não permitir a inferência, que uma lógica elementar, viesse, depois, eventualmente, a derrogar.

O Mito Laociano - o Filósofo e o Búfalo. Bronze do séc. XVII, dinastia Ming. In Philip Rawson e LaszloLegeza, Tao - The Chinese Philosophy of Time and Change, Thames and Hudson Ltd., Londres, 1987 (reedição).

Esta circunstância peculiar de, nos livros mencionados, (Mêncio e Zhuang Zi) elaborados menos de trezentos anos depois da morte de ambos (Lao Zi e Confúcio) e em outros insofismáveis indicadores, não muito mais tardios, em Lieh Zi, Han Fei Zi, Ku Hsian, Xun Zi, Li An (Huai-Nan-Zi), e nos Anais da Primavera/Outono de Lu - se referirem, taxativa-mente, às doutrinas de Lao Zi, dará, portanto, corpo à demonstração de duas realidades virtuais, postas em causa por frívolas rivalidades: a existência histórica do arquivista da corte do imperador de Zhou, e filósofo, nascido no primeiro quartel do século VI (a. e. a.) e a sua, embora não menos contestável, mas credível, autoria do Tao Te Ching. Disse alguém que uma obra de tão reduzida dimensão (pouco mais dos 5.000 caracteres) dificilmente seria elaborada por mais de um autor - observação, como já se viu, e por outras razões, perfeitamente pertinente. Até no pormenor, a verdade não deixa de parecer incontestável.

Da veracidade possível dos factos assim consabidos, ou de comprovantes convincentes, em si mesmos, ou não, e da fiabilidade deles, e que ninguém, ainda, repete-se, conseguiu, em definitivo, demolir, admite-se, por inerência, a fundação indubitável de um primitivo texto, (O Livro de Lao Tzu - ou Zi) que viria a ser o Tao Te Ching, mais tarde submetido, e nisso há igualmente consenso unânime, com efeitos nefastos em edições subsequentes - a adulterações espúrias, de facto, ou de sentido, ou erro de interpretação de caracteres, que não só não deixaram sem dano algumas partes, quiçá importantes, da genuína obra, como terão, aqui e ali, atraiçoado, mais ou menos profundamente, a fluidez e a coerência de um pensamento do Autor, cuja existência histórica é tida actualmente como dado adquirido.

Uma opinião, de resto, mais ou menos demonstrada - aponta para uma restauração (arranjo e revisão) de um texto anterior, efectuado por um Guan Yin (Han Yuan) do século IV a. e. a. que teria conservado as ideias laocianas da inacção.

Tudo visto, difícil não será deixar de se concluir que um texto original existiu entre os séc. VI e V da era antiga, não fazendo, pois, sentido, dizer-se que fosse de elaboração ulterior.

Como notou um autor recente, apesar de, nominalmente, não o mencionarem, nenhum dos acima referidos escritores, seus quase coevos, questiona a relação de Zi com a sua filosofia, mesmo quando, e por causa disso, a rejeitam. E um outro crítico afirma que o encontro entre Confúcio e Lao Zi, registado por Sima Qian (145-86) se acha referido em fontes confucianas, pelo que há poucas dúvidas de que os dois não se hajam, realmente, encontrado, na época que lhes fora comum.. (v. ad.) Uma delas, por exemplo, e apenas uma de várias outras, talvez mais expressivas, decorre de uma passagem dos Analectos (¢ù: 29) na qual se diz que Confúcio deixou, sempre por via indirecta, informado que tinha contactado alguns místicos (taoistas) com resultados negativos, "havia indivíduos com quem se podia estudar, mas não acompanhar na Virtude (Te) - o que alguns comentaristas rivais tomaram como prova de que o Venerável Mestre havia, de facto, conhecido a pessoa, e as pessoas que cultivavam as ideias de Lao Zi, deste modo se corroborando, implícita e explicitamente, o que sobre um virtual relacionamento de ambos deixou narrado o acima citado historiador (do segundo século) conforme se verá adiante.

Foi já vista uma glosa de Zhuang Zi (sobre o Homem Perfeito, ou o Sábio) eventualmente comprovativa da existência histórica anterior do Filósofo, e da sua escrita. Veja-se outra, igualmente de Zhuang, desta vez virtualizando o apotegma do Cap. 16 do Tao Te Ching"

Nampo Zi observou um dia a Nu Yu:

- Tu que és avançado na idade, conservas, apesar disso, a face de uma criança. Como explicas isso?

Respondeu o outro:

- Fui iniciado no Princípio da Harmonia da Eternidade universal..

- Poderei eu também iniciar-me, pelo estudo, no Princípio da Harmonia universal?

- Não, não podes! Não tens qualidade necessária para isso. Deixa-me contar-te o caso de Pu-lian Yi. Ele tinha capacidade para ser um sábio. Mas não fora iniciado no Princípio da Harmonia. Eu próprio tinha essa experiência, mas não tinha capacidade para ser sábio. Quis ensiná-lo, esperançado que pudesse vir a iniciar-se na Abstracção, e assumir-se como sábio. Descobri que não era fácil ensinar-lhe as regras essenciais (da inacção) apesar dele possuir virtualidades de sábio. Tive que esperar pacientemente pelo tempo próprio, para que ele, finalmente, chegasse a aprender por si próprio.

Três dias depois disso, ele conseguiu desprender-se das coisas materiais. Em nove dias de iniciação, desligou-se de todas as actividades (no texto traduzido em inglês: de toda a vida). Uma vez alcançado este resultado, a sua visão tornou-se mais clara, como a luz do sol nascente. Com a visão assim límpida e ampliada, pôde então ver o UM. Tendo visto o UM, compreendeu o Princípio da Eternidade (Eternal Now). Conseguindo ultrapassar esta fase, Pu-liang Yi entrou num estado que ficava para além da vida e da morte, onde a vida e a morte não podem ser destruídas. Então ele encontrou-se a si próprio em Harmonia com tudo em seu redor3 (Trad. livre).

Aceitando a tradição como realidade, para o que não faltarão, portanto, indícios credíveis, Li Ehr Dan (ou Tan) terá nascido nos finais do século VII, (1604, dizem alguns) ou, mais provavelmente, dentro do primeiro quartel do século VI a. e a. (antes da era actual), e Confúcio viveu de 551 ou 521, até 479 (a. e. a.). A confirmação desta hipótese, de resto, ganha outra verosimilhança, em presença da biografia de ambos, já referida, traçada pelo retrocitado grande historiador do século II da era actual, Sima Qian, que deixou fama de homem sério, e investigador rigoroso, e que valerá a pena retrotrair, neste continuado, do seu afamado livro "Registos da História" - e que foi quem deu crédito à virtualidade dos factos hoje do nosso conhecimento, deixando nele narrada uma, embora breve, crónica de um encontro entre os dois sábios. É, com efeito, como Autor, que Wang Bi o refere.

No seu livro (Shih Ching) Sima Qian escrevera: Lao Zi viveu em Querenli (vila ou arrabalde) da cidade de Lixiang, Distrito de Ku, estado de Zhou. O seu apelido de família era Li, e o nome, Er, cognome Dan." (O distrito de Ku é hoje o distrito de Luyi, na Província de Henan).

Wang Bi, de resto, não estaria mal colocado, no tempo e no espaço, para, virtualmente, poder confirmar a existência de Lao Zi, exactamente por este ter sido autor de uma obra, já consagrada na época.

Este encontro poderá ter tido lugar nos finais do século VI, ou princípios do século V. Confúcio, desejando, enfim, entender-se com Lao Zi, sobre aspectos rituais da dinastia Zhou, e exaltação dos heróis do passado, foi encontrar-se com o velho bibliotecário, de quem recebeu, para a sua curiosidade, a seguinte resposta:

- Todos aqueles de quem falais, desapareceram, e os seus ossos transformaram-se em pó. Apenas as suas palavras perduram. Quando chega a altura de um homem de qualidade se afirmar, ele desponta naturalmente. Se assim não fosse, ele acabava por desaparecer sem deixar nada atrás de si. Tenho ouvido falar de homens de negócios que escondem as suas mercadorias, para fazerem crer que as não possuem. E de homens de perfeito carácter, que simulam serem estúpidos. Desista, senhor, do seu orgulho, das suas ambições, dos maneirismos, e das suas extravagantes presunções. Não lhe fazem nenhum bem, senhor. É tudo o que tenho para vos dizer.

Foi depois deste encontro que Confúcio, de regresso ao convívio dos seus discípulos, terá produzido a seguinte observação:

- Eu sei que os animais correm, que os pássaros voam, que os peixes podem nadar. Armadilhas podem ser montadas para os que correm; redes para os que nadam; e setas para os que voam. Mas dragões! Não consigo entender como conseguem eles cavalgar os ventos, elevar-se ao pico dos céus! Hoje vi Dan. Que dragão!

Não terminaria, até aos nossos dias, esta guerra entre tão irredutíveis adversários, de um e do outro campo.

Ontem - diziam os taoistas: "Confúcio foi meramente um discípulo do nosso Mestre". Os Budistas repetiam quase o mesmo: Confúcio não passara de discípulo do seu Mestre. Ouvindo estes comentários, os confucionistas repreendiam a absurdidade e o apoucamento do Venerável Professor, e replicavam: O nosso Mestre dizia o mesmo dos taoistas e dos budistas, e não só o proclamava, como o escreveu nos seus livros"

Quem disto deu fé, foi Han Yu, que viveu entre 768 e 824, num ensaio de filosofia intitulado "Qual é o Verdadeiro Caminho (Way- por Tao - epígrafe de a maior parte das traduções inglesas, ou em inglês).

Se assim tivesse sido, as referências que Confúcio fez aos taoistas (no séc. V) implicariam, naturalmente, à partida, um prévio conhecimento de uma teoria posta em livro, e, por conseguinte, da existência do seu autor, pelo menos no seu tempo. É hoje sabido que Confúcio não escreveu, ou, pelo menos, não se conhece que tenha deixado, de lavra própria, algum livro, ou texto - por isso, nesta parte, a afirmação anterior não colhe.

Foi, de facto, uma comissão de discípulos, que, no ano 79 da era actual, durante o período da dinastia Han (206 a. e. a.- 220 e. a.) redigiu o texto canónico do chamado livro de Confúcio (Analectos) tendo sido Mêncio, o seu mais importante discípulo, que elaborou o seu próprio Livro, à base das lições (eventuais) do seu Venerável Mestre - duzentos anos depois da morte deste.

Diz-se que Confúcio terá escriturado pequenos prólogos aos Cinco Clássicos (O Livro das Mutações, o Livro das Odes, o Livro dos Rituais, o Livro dos Documentos, e os Anais Primavera/Outono de Lu) que utilizava nas suas prelecções, e que por isso ficariam colados ao seu nome. Se assim aconteceu, de facto, tais textos jamais foram encontrados.

Sobre Confúcio lê-se, num livro editado há alguns anos em Beijing, "An Outline of China History."

Não sendo genuinamente um autor, nem, no estrito rigor da palavra, um intelectual, um pensador sistemático, não se distinguindo por qualquer outra preocupação científica que não fosse a natureza moral do homem (por isso) remara contra a maré da história - Confúcio seria, portanto um humanista, embora de maneira especial, estóico, cordato, complacente e conciliador, elitista e tradicionalista - por outras razões que não as precedentes, terá merecido a consagração do seu povo, a perpetuação do seu espírito e do seu nome, na memória do tempo.

Nada havendo, de toda a maneira, deixado escrito, sobre si, nem de si, tendo sido, praticamente, tudo quanto dele se conhece, obra dos seus sequazes, designadamente nos Livros Piedade Filial (Tseng Tsan, 504-437) Analectos (Anon) Mêncio (371-339) A Suprema Sabedoria (Chung Hung, sec. V) A Doutrina do Meio (Kung Shi, sec. IV), além dos Apêndices ao Livro das Mutações (caucionados à autoria de vários confucionistas não-identificados) do séc. III - sobrariam fortes razões para se colocarem, em relação a Confúcio, pelo menos tantas como são, ainda hoje, as reservas, que recaem, exclusivamente, sobre Lao Zi.

A grande diferença, que, entre ambos, Lao Zi e Confúcio, ficou, além das rivalidades que exaltaram, mais de duzentos anos depois, os sectários de uma e outra banda - esteve em que, enquanto o primeiro terá utilizado a sua própria palavra escrita para produzir um livro original, de qualidade, não atribuível a mais alguém, que perdurou no tempo, autenticamente, com o seu nome, e que, tanto na dialéctica filosófica, como numa hermenêutica proto-científica, virtualmente praticada sobre o Livro das Mutações, e outras fontes Clássicas, sem dúvida, mas com variantes inéditas, constitui, ainda hoje, enigmático ou não que pareça, uma referência universal - o segundo, pelo contrário, não escreveu o quer que fosse, deixando apenas, o que se julga fortemente significativo, discípulos, ou prosélitos que, muitos anos depois da sua morte, por animadversão, ou quezília contra o rival, utilizaram largamente, por conta própria, a sua apologia, - salvando-o, deste modo, de um natural obnubilamento.

Ninguém, obviamente, nega a importância de Confúcio, como homem de saber, e pedagogo, que conseguiria reunir à sua volta, e deixar, atrás de si, legiões de discípulos, e seguidores, e cuja memória, através dos tempos, das tradições e costumes que implantou, chegou até aos dias de hoje. Mas se a preocupação de Confúcio teve sempre mais a ver com a observância do rigor catequético, e o pragmatismo da obediência aos preceitos rígidos de uma sociedade constrangedora; Lao Zi, pelo contrário, tinha uma visão muito mais crítica, e aberta, que privilegiava tanto o cidadão, como o homem, quase sempre vítima do poder absoluto, e da violência do estado, sobretudo a sua libertação dos esquemas repressivos, tanto os de ordem física, como a servidão e a escravatura, como os do atrofiamento das tradições e dos costumes - que escravizavam o homem comum.

O Livro de Lao Zi teve, efectivamente, a ver, e muito, com a moral, que não era, com a verdade e a mentira das palavras, dos factos, e das pessoas, e, não menos importantemente, com o mistério da origem do universo, o início da vida, e das transformações (das dez mil) coisas, a partir de duas partículas minúsculas, entre si, antinómicas, a que daria os nomes, recolhidos por empréstimo de obras mais antigas da tradição cultural do seu País, de Yin e Yang.

Das suas concepções metafísicas, as que mais buliram com a inteligência, ou sensibilidade de muitos pensadores, e de críticos, não seriam, no geral, inéditas; eram oriundas, com efeito, dos Clássicos da Literatura do seu País, a si anteriores de dois milénios, designadamente, os já antes referidos Livro das Mutações, Livro dos Ritos, Livro da História. Conta-se, por exemplo, em parábola inserta na obra de Zhuang Zi, que uma vez Huang Ti, o imperador amarelo, (anterior a Lao Zi, em provavelmente, dois mil anos) encontrou-se com o taoista Kuang Ch'eng Zi, a quem teria perguntado qual o segredo da longa vida. O episódio narrado, apesar de meramente alegórico, tem o seu interesse, e vem ao caso, não só por corroborar a via para se alcançar a "virtude" taoista, como por definir o já visto personagem do sábio que entra em várias estâncias do Livro de Lao Zi, e que, não poucas vezes, assume, virtualmente, a estatura do próprio Autor em pessoa. Para se ter uma longa vida, e beneficiar da imortalidade (longevidade) - o sábio, conforme a resposta de Kuang Ch'eng Zi, tinha de se manter em virtual imobilidade, (inacção) e sereno em todas as circunstâncias, purificar o coração (erradicando dele todos os desejos e sentimentos), não utilizar roupas no corpo, e evitar a segregação de humores. Não deixar que os seus olhos vissem, que os ouvidos escutassem, que o coração sentisse, fosse o que fosse. Assim, a essência espiritual manteria o corpo intacto, habilitando-o a sobreviver eternamente (longamente). Devia ser muito cuidadoso com a sua vida interior, despegar-se de todos os problemas (conflitos) de origem exterior. Extravagâncias em excesso, só seriam prejudiciais. Cumprindo estes preceitos, viver-se-ia em paz, e serenamente!

Estes pressupostos, mais tarde, acabariam por se transformarem, e darem origem a uma, aliás falseada, religião, com doutrina, liturgia, templos, sinos, paramentos e fitas episcopais, monges e sacerdotes, superstições, ritos e cerimónias, práticas esotéricas e alquimistas, com as quais se tentava obter a imortalidade, e mudar o mísero ferro em oiro refulgente.

Naturalmente, pois, todos estes desvios, premeditados, ou não - foram construídos ao arrepio do pensamento expresso de Lao Zi, que, de facto, sendo, como era, apologista da transformação da matéria, não aceitava a ideia da imortalidade, não fundou nenhuma religião, não edificou qualquer igreja, nunca codificou, em estatuto místico, os oitenta e um cantos do seu Livro. Tais ataviamentos, porém, até hoje, não desvirtuaram, nem vulgarizariam o texto laociano fundamental.

Foi já no século V da era actual (471), com efeito, que os seus prosélitos fizeram editar um primeiro cânone taoista, Tao T's'ang, em doze pergaminhos, que, além do texto central, incluíam interpretações marginais sobre exoterismos, sobre a alquimia, e sobre a imortalidade, biografias de herois santificados, palavras mágicas, e de meditação, e rituais litúrgicos. Este primeiro cânone foi substituído por um catecismo, no tempo da dinastia Tang, cujo imperador, Tang Xuan-cong, mandou emissários por todo o pais recolher, para o efeito, cerca de 7.500 textos taoistas dispersos. Um terceiro padrão, publicado em 1016, foi coligido no período da dinastia Song (420-477) com 4565 versículos. Finalmente, uma versão final, constituída por 5318 pergaminhos, foi produzida em 1444, durante a dinastia Ming. (Passim).

As razões que suscitaram reservas e controvérsias, senão com o próprio Confúcio, pelo menos, entre os seus prosélitos, ficaram a dever-se, como seria natural, às definições com que um e outros classificaram TAO e tao respectivamente. A expressão existia desde há milénios, associada a esoterismos, artes divinatórias, transmigrações, etc. Lao Zi despiu-a desses adornos, e fixou-lhe subentendidas características: TAO, pois, se fosse alguma coisa, seria um ante-universo, nessas circunstâncias, um Vazio Absoluto, que nada de nada tinha a ver com o Espaço, ou com o Tempo, nem com a Existência (da Matéria) e a sua evolutiva transformação. As coisas, com efeito, não passaram a existir a partir DE TAO (por vontade de TAO) mas EM TAO, portanto NO Vazio, por vontade de ninguém, ou de alguma coisa, apenas por arte de um acaso, ou fortuita circunstância.

O TAO verdadeiro, de facto, não existia, não tinha nome, não desencadeava acções voluntária, ou involuntariamente, era simplesmente Nada. O que se poderia conjecturar, e nunca, em todo o caso, dizê-lo, é que TAO, não-existindo, existia, ou existia como não-existente Mas isto não passa de um banal jogo de palavras, que não esconde a agnosia do fingidor. Com esta afirmação não concordariam, mais tarde, os sequazes confucionistas, que aceitavam a existência não só de um, mas de vários taos, todos com nome, e com uma dinâmica específica e voluntária. Ao TAO inerte e vazio, de Lao Zi, contrapunham uma sintonização de tao com o Céu, e com a Terra, e outras coisas - cada coisa tinha um tao directamente responsável pelo seu respectivo aparecimento e transformações subsequentes, estabelecendo-se os Céus (Deus) como responsável pela criação de todas as coisas.

Portanto, Tao era múltiplo, cada um deles associado a uma categoria de todas as coisas do universo, "constituído, assim, num princípio metafísico inominável". (pas.) Havendo um tao para cada ordem, ou categoria de coisas (imperadores, ministros, pais, filhos, etc.) cada um deles tinha um nome. Era isto que corresponderia à teoria confuciana da imputação de nomes", aqui, anteriormente referida. (Fung yu-Lan, ib.).

O historiador alemão Wolfram Eberhard, numa excelente "History of China" (Londres, 1977, 4a edição) fala de Confúcio com (aparente) imparcialidade, e indubitável originalidade: "A importância de Confúcio decorre do facto de haver sistematizado um corpo de ideias, porém, não de sua própria autoria - que teria divulgado entre os seus discípulos, um código de moral destinado às altas classes da China", de acordo com o qual reteve inalterados os pontos básicos do antigo culto dos Céus, herdados dos povos do norte. Para ele, o Céu não actuava como um divino tirano, arbitrário, limitava-se a seguir um sistema de legalidades. "O Céu não actuava independentemente, (por vontade própria) mas seguia uma lei universal, designada por Tao".

Para os correligionários confucianos, autores dos Apêndices, na reversão (retomo) constatava-se o efeito programado de uma causa directa do Céu e da Terra. (A criação é a suprema virtude do Céu) TAO tinha um nome, isto é, significava em concreto, uma coisa, e por isso, era múltiplo, quer dizer, havia um tao envolvido directamente na criação de cada coisa. "Existe - escrevia-se - "uma íntima relação entre o Céu e a Terra, daí, a transformação incessante de todas as coisas, através da intermutação de germens, entre o masculino e o feminino (Yang e Yin)".

Contrariamente à ideia que Confúcio viria a adoptar, Lao Zi descrevia TAO como um "caos primordial", uma vasta esfera, uma matriz, ou um odre (ou fole, ou ainda, como queria Wilhelm, uma flauta mágica!) "que continha no seu seio todo o universo, no estado difuso, potencial e indiferenciado." Sob o ponto de vista ontológico, TAO era configurado como a raiz de toda a Existência" (ib.) - a origem da origem, o princípio do princípio de todas as coisas...

Na realidade, porém, para Lao Zi, como já foi visto, Tao era inane, anamórfico, indescritível, inominável (isto é, nada significava - não seria configurável com alguma coisa) constituía tão somente referência de um Vazio, ainda que nele, todavia, tivessem espontaneamente, emergido, todas as coisas do universo, depois, auto-transformadas, num processo evolutivo incessante, e natural.

O Filósofo sublimou, naturalmente, as suas fontes, desenvolveu juízos, cuja originalidade desencadearia toda uma contestação - que não se deteve, até aos dias de hoje. Parecerá importante resgatar esta particularidade: só, com efeito, uma obra de grande mérito, como o Tao Te Ching, conseguiria sobreviver à memória dos tempos, resistir à crítica destemperada dos idólatras. E não foram apenas as pessoas de reconhecida idoneidade, e prestígio, que o têm aclamado, mas igualmente aqueles que sentiram necessidade de deprimir os conceitos laocianos, que, em vez de, com isso, os prejudicarem, ao contrário, antes, inesperada, e indirectamente os sobrevalorizaram. Poucas obras, como o Tao Te Ching, à custa de constantes controvérsias, têm sido, ao longo dos tempos, tão traduzidas e comentadas. À maneira de Lao Zi, poder-se-á concluir: Se tanto, assim, o contestaram, é porque o Livro teria, realmente, mérito. Leu-se em qualquer parte, não sem inegável sageza: "em certo sentido, a teoria cosmológica de Lao Zi, apesar de citada apenas em meia dúzia de linhas, é mais profunda do que é visto no Livro das Mutações, ou qualquer outro livro de metafísica!"

A questão primordial, aqui colocada, da teoria laociana, é, assim, a da dicotomia Não-Existência/Existência, ou, por outras palavras, do Não-Ser/Ser.

Nas duas obras, atrás mencionadas, com idêntico título, Comentários ao Livro de Zhuang Zi, os seus autores, respectivamente Hsiang Hsin, e Kuo Hsiangum, ambos do séc.. IV a. e. a., cada um acusando o outro de plágio, não se conhecendo, ainda hoje, quem copiou quem, e qual dos livros é o genuíno, postulando sobre uma teoria taoista de que todas as coisas derivavam do Ser, e que o Ser nascera do Não-Ser: o que significaria que o Ser derivava de si mesmo - escreveram: Não é apenas o caso de o Não-Ser poder tornar-se em Ser, é, também, o de o Ser não poder transformar-se em Não-Ser. Apesar de o Ser poder transformar-se em coisas, jamais depois disso, poderia voltar à condição de Não-Ser. Portanto, não existe Tempo quando não existe Ser. Na verdade, a Vida existe eternamente.

O livro Shih-shuo Hsin-yu, igualmente do terceiro para o quarto século da era actual, reporta um diálogo entre Pei Hui e Wang Pi (226-249) sobre Lao Zi e Confúcio, a respeito do "Ser e o Não-Ser". Perguntou o primeiro ao segundo a razão porque sendo o Não-Ser (wu) fundamental para todas as coisas, (Existência) Confúcio não falou nisso, enquanto Lao Zi dissertara sobre o assunto sem parar.

Respondeu Wang Pi à pergunta: "O sábio (Confúcio) identifica-se a si próprio com o Não-Ser (wu) e compreende que isso não pode ser objecto de discussão, uma vez que ele se sente apenas confrontado com o Ser (Yu). Mas Lao Zi e Zhuang Zi não deixaram por completo a esfera do Ser (Yu), e por isso, falam constantemente das suas contradições.

Oito séculos após, a matéria era ainda tema de discussão. O neo-confucionista Pei Wei (267-300) escrevia, depois de observar sentenciosamente que "era da natureza humana procurar extrair reputação e lucros do debate das ideias - "Há escritores que procuram exaltar a teoria do Não-Ser, considerando subtil (oportuno) falar no Vazio (ou Não-Ser)" - o que, na sua opinião, conduzia a que as cerimónias (rituais) das celebrações fúnebres se tornassem em autênticas profanações e desordens, tanto por parte dos jovens, como dos velhos, que desprezavam as hierarquias, que não distinguiam os superiores dos inferiores. "Falam e riem-se sem propósito, expõem, as suas nudezas em celebrações públicas, e consideravam como grandes educadores aqueles que haviam perdido a moralidade. Trata-se, naturalmente, de um grande erro!"

E depois de se espraiar noutras considerações sobre o Livro das Mutações, a Tranquilidade e a Inacção, Pei Wei acrescentou:

"O Não-Ser absoluto não poderá, nunca, produzir coisas. Portanto, o que primeiramente foi produzido não foi produzido pelo Não-Ser, mas por si próprio. Auto-produzida, a substância torna-se Ser. Quando o Ser não existe, a produção (de coisas) é impossível. Desde que a produção de coisas depende do Ser, o Nada, ou Não-Ser não são senão a negação do Ser". Por associação de ideias, "a Não-Função (TE?) não pode fazer desenvolver o Ser produzido. Não pode pacificar grande número de Seres existentes. O Coração não é coisa controlável pelas coisas, mas deve ser o coração a controlar as coisas. É ridículo, no entanto, chamar ao coração Não-Ser, por não serem as coisas controladas por si mesmas. Os artífices não são utensílios, e os utensílios não podem ser utilizados senão pelos artífices. Por isso, seria igualmente ridículo chamar aos artífices Não-Seres, porque os utensílios não podem ser construídos por si próprios. Portanto, se alguém desejar pescar em águas profundas, não o poderá fazer deitando-se a dormir; se alguém desejar abater um pássaro no seu voo, não o poderá fazer sentado, e preguiçosamente; e se alguém desejar fazer exaustivamente por compreender a arte de atirar ao arco, ou de fazer pastéis, não o poderá fazer sem antes primeiramente aprender (uma coisa ou outra).

É destas, e outras posições opoentes que vai nascer, e arrastar-se, no tempo, a guerra entre o taoismo e o confucionismo, ou melhor, entre confucionistas e taoistas, do quinto século e ulteriores (a. e. a.) principalmente a partir do sec. III da era antiga. No fundo, o diálogo entre as duas teorias (taoismo e confucionismo) não se desenvolveria, a posteriori, na base de demonstrações, ou factos, como, de resto, era próprio do tempo, mas de deduções de carácter meramente redundante, ou desvios, mais ou menos subtis, que revelavam tanto o crítico inteligente e profundo, como o escrevente tendencioso, ensimesmado, e hábil.

O núcleo fundamental do tecido metafísico era, desde os mais remotos tempos da Antiguidade Chinesa, a Harmonia (ou Grande Harmonia) a que os cientistas actuais designam por presumível equivalência, Simetria (cósmica). A Harmonia prevalecia entre os Elementos, entre os Seres, entre as Coisas. A desarmonia arrastava consigo a desordem e a morte. (Ver Cap. 33.)

Em situação ulterior, a Harmonia via-se como o princípio de uma ordem (cósmica)

e daí que lhe correspondesse um ordenamento humano social, que, desde logo, pressuporia a subordinação do indivíduo à comunidade. Mas este colectivo era muito menos democrático do que corporativo, para usar uma expressão moderna. Fundava-se, e regia-se, por blocos, ou classes. De uma sociedade muito antiga, oriunda, aliás, igualmente, dos povos do norte, Confúcio adoptará a sua segunda grande tese, a de um sistema familiar patriarcal, dirigida pelo seu membro mais velho, e de correlativas interdependências, o filho obedecia ao pai, a mulher ao marido, o irmão mais novo ao irmão mais velho. E por associação de ideias, o cidadão devia obediência ao imperador, e este passava por filho do Céu, que, por sua vez, o protegeria das calamidades e dos inimigos. Ai dele, por isso, se caísse em desgraça... Estas eram as Cinco Relações - e já se verá a importância (esotérica) dos números nas relações sociais. Por estes motivos, e preconizar a adopção de um conjunto de regras de conduta humana, tem-se lido que Confúcio era um racionalista, e, por sustentar (se for isso o que se possa depreender do seu comportamento, o que não é seguro) a ideia da submissão do individualismo ao colectivo, Palmer (antes citado) chega a sugeri-lo como proto-comunista - noção que dificilmente se compatibilizaria com uma sociedade subordinadora (à qual o Venerável Filósofo reverenciava) e constituída por classes bem diferenciadas. (Ver. pag 122/3)

Lao Zi, por seu lado, não faltou já quem o classificasse de individualista e anarquista, um místico, que perseguia o seu idealismo de uma forma intuitiva e emocional. Diversas razões e argumentos, à vista no seu Livro, permitem, ao contrário, conclusões de uma solidariedade social, num cenário de injustiças e antagonismos, que teriam deixado profundas marcas no carácter e na sensibilidade do Velho Arquivista da corte dos Zhou, e que não são, de igual modo, visíveis, no comportamento e na suposta dialéctica confucianos. A verdade é que cada crítico tem a sua maneira pessoal, e própria, de analisar, e classificar os outros, raramente sob um prisma isento de impolutas imparcialidades.

Também no Livro Huai Nan Zi, do segundo século antes da era actual, no capítulo "Sobre Astronomia" lia-se: Tao (ou em TAO) começou o Um, que, não podendo dar origem a si próprio, dividiu-se em Yin e Yang. Quando o Yin e Yang se uniram em perfeita Harmonia -começaram, natural e gradualmente, a surgir (e a diversificarem-se) todas as coisas do universo."4

Veja-se, outrossim sobre a Harmonia, o excerto do Livro "A Grande Harmonia, tirado do livro "Correctos Rudimentos" Chang Tsai (1020-1077) onde está escrito:

"A Grande Harmonia traduz aquilo que se designa por Tao, que contém as faculdades de emergir e de submergir, de ascensão e decessão, de movimento e quietude e de interacção, e do qual emanam os rudimentos da fusão e da dissensão, do estímulo e do constrangimento, do subjugador e do submetido, da contracção e da expansão. Ao princípio, estas propriedades eram elementares e frágeis, mas no fim, tornaram-se robustas e consistentes."

Exactamente como o Sol e a Lua, e as Estrelas se moviam, em conformidade com as leis dos céus, assim o homem se comportava a si próprio conforme as leis da Terra. E não contra elas. O governante, por seu turno, não devia intervir activamente na política do dia-a-dia, mas apenas seguir os exemplos do Céu. Deveria cumprir os cerimoniais estabelecidos, e oferecer sacrifícios de acordo com os ritos, e desse modo, tudo no mundo marcharia bem. Também as pessoas, individualmente, deveriam seguir os mesmos preceitos ritualistas, de forma a que se atingisse uma (perfeita) Harmonia com a estabelecida lei do universo".

A Harmonia em Lao Zi parecia caracterizar-se por uma quarta dimensão, espiritualista, em que todos o seres se identificavam, fazendo sentido quando se fundiam num único corpo, ou entidade. Eis como Zhuang Zi colocou a questão:

"O nome do Céu aparece ligado ao Grande Vazio. O nome de Tao diz respeito à transformação da força material emanante. O nome de Consciência (Espírito, ou Sopro Vital) aparece associado à união da natureza e da conduta moral do Ser (Hwo-hi).

"Fantasmas (contracção) e Deuses (Expansão) traduzem a melhor capacidade das forças emanantes naturais." Assim:

"O Um (unidade) não pode manifestar-se sem a existência do Dois (opostos); enquanto a função do Dois cessa sem a intervenção do Um. Os dois Opostos incluem: o vazio e o cheio, o movimento e o repouso, a integração e a desintegração, a pureza e o turvo. Na avaliação final, o que resulta é o Um (unidade)".

No fundo, esta conclusão é explanada por Lao Zi como "retorno (reversão) às origens, ou voltar ao princípio" de um novo ciclo. (O Yin passava a ser Yang; o Yang, pela ordem natural das transformações, tornava-se Yin.)

Mais adiante, acrescenta-se: "O Grande Vazio não tinha forma, era constituído pelo estado original de uma força natural emanante. A integração e a desintegração eram apenas formas de mudança e de transformação. A suprema tranquilidade, a nada afecta, era a fonte da natureza humana. A consciência e a sabedoria eram apenas afeições temporárias, quando entravam em contacto com as coisas. Apenas aqueles que haviam desenvolvido a sua natureza por inteiro poderiam unificar as afeições temporárias, e as formas, com a desafeição e ausência de formas.

Noutra parte do seu discurso, Chang Tsai adiantava: "Como estado original da força material emanante, o Vazio é puro, inoperante, e não tem forma. Quando a interacção começa, esta compacta-se, e ganha formas. Desde que existam formas, ocorrem as oposições. Desde que se verificam oposições, uma vai contra a outra. Desde que uma vai contra a outra, desencadeia-se uma hostilidade. Finalmente, a hostilidade é removida pela harmonia. Por isso, as emoções do amor e ódio derivam do Grande Vazio...".

E a terminar o ensaio, o Autor escreveu: "Agora estou vivo, e faço aquilo que devo de acordo com o Céu e a Terra. Quando morrer, conquistarei a paz!"

A leitura integral do citado texto de Tsai revelará, decerto, melhor o que lhe cabia no entendimento, quando pretendia denegar, sem, aliás, o conseguir, a sabedoria de Lao Zi.

O texto, apesar de carecer, em termos actuais, de algum sentido lógico, não deixa, todavia, de patentear, sem qualquer dúvida, interessante qualidade, filosófica, e literária, - apanágio de uma inteligência sui generis - privilegiado ainda pelo facto de haver sido elaborado há mil anos atrás.

Mas, entre os antigos, a contestação à pessoa, e às ideias de Lao Zi não se confinaria a Han Yu, ou a Chang Tsai. Entre ainda outros, distinguiu-se também, por exemplo, o pensador neo-confucionista Yeh Shih, (1150-1223), que deixou um comentário ao Tao Te Ching, de que se extraem as seguintes parcelas:

"Tao existe porque existem o Céu, (Tien) a Terra (Kun) e Seres. (em inglês, people, povo). É impossível saber qual deles é anterior aos outros. Lao Tzu tinha o seu próprio ponto de vista, e privilegiava-o. Assim, ele dizia que Tao era anterior ao Céu e à Terra. E ainda: que "o Céu aparecera depois de Tao, e que o Céu se tornara puro a partir do Um. Mas teria Tao, realmente, existido, num estado caótico, anterior ao Céu e à Terra?"

E ainda mais adiante:

"Lao Tzu, como recluso (eremita = refractário, às regras predominantes) não baseou a sua teoria nos clássicos dos antigos sábios e dignatários. Em vez disso, (falando em termos de Tao,) demonstrou, (contestando-o) grande falta de respeito para com o Céu (isto é, Deus!) Falou em direitos humanos, mas parece ter esquecido as suas próprias raizes. Assim, afirmou que o Tao sagrado nada contesta, mas não deixa de triunfar, que nunca fala, mas corresponde sempre a tudo quanto lhe é solicitado, não podendo ser induzido, não deixa de decidir por si só, sempre, (aquilo que só ele, fosse quem fosse, por si próprio decidisse) pois que:

"... Tao nunca funcionou compelido. Isto comprova que o Céu mostra sempre a sua subtileza sobre as coisas, e nunca nada modela a partir de um Vazio, ou da inacção. Deste modo, aqueles que seguem os antigos sábios, e dignatários, prestarão as devidas reverências aos Céus, e aqueles que seguem Lao Tzu devem renunciar, e desobedecer às suas regras. Em vez de questionarem, absurdamente os Céus, deviam mudar rapidamente as suas ideias, refrear os seus comentários, já que a sua atitude não será respeitável.

Outro Autor, já dos nossos tempos, Wang T'ing-hsiang (1474-1544), homem da Dinastia Ming, talvez de uma forma mais judiciosa, e não menos pertinente, que se debruçou sobre filosofia, ciência e política, pronunciou-se, dentro da primeira disciplina, sobre a cosmologia e ontologia de Lao Zi, fazendo uma abordagem cujo mérito global, apesar de um glossário um tanto especioso em relação ao tema, não empalideceu totalmente, com a passagem do tempo, justificando-se, aqui, deste modo, a oportunidade da sua recuperação:

"Antes do Céu e da Terra se tornarem realidades (chegarem à Existência) havia unicamente uma primordial força material emanante, que era, portanto, a base de TAO.5

Lao Zi e Zhuang Zi diziam que fora em TAO (isto é, no Vazio) que se fundara a origem ao Céu e à Terra. Os confucionistas (da época Song - 420-477) afirmavam que nada havia antes do aparecimento do Céu e da Terra. Apesar deste conceito contrariar o primeiro, haverá alguma diferença entre os dois? A minha opinião é de que antes do aparecimento do Céu e da Terra, existia de facto, unicamente, uma força emanante primordial. Como existia esta força primordial emanante, existia também o princípio da criação e transformação dos seres humanos, e outros seres. Portanto, nada, nem Tao, nem o Princípio eram superiores, e anteriores à Primordial Força Emanante.

Foi desta Força Primordial que saíram todas as coisas (seres) existentes e entre o Céu e a Terra. Apesar de terem ambos as mesmas proveniência e constância, todas as coisas (que depois vieram) não podiam ser idênticas. Assim, em consideração da identidade da força material emanante respectiva, o Princípio seria, do mesmo modo, idêntico; em consideração à variedade das dez mil coisas, deveria haver dez mil Princípios. Os confucionistas actuais (da época) apenas mencionam a identidade do princípio, mas desdenham as dez mil variedades do mesmo. O que eles prescrevem é parcial (tendencioso). Na realidade, o Céu assume o Princípio da Terra, a Terra assume o Princípio do Céu; as Pessoas assumem o Princípio das Pessoas, as Coisas o Princípio das Coisas, a Obscuridade o Princípio da Obscuridade, o Visível, o Princípio do Visível. (Ver Cap. 25)

Todos estes Princípios diferem uns dos outros. Para a maioria, sob o aspecto da sua Identidade, são todos a Transformação da Força Material Emanante. Como é comum dizer-se, "A maior Virtude é muito profunda."

As coisas emanaram de uma mesma fonte. Para as visionar, sob o aspecto da Diversidade, a Força Material Emanante utiliza cem vias de desenvolvimento. Como (é comum dizer-se) "a Menor Virtude movimenta-se como os rios. Cada um, porém, possui a sua respectiva (intrínseca) natureza."

E mais adiante:

"A Primordial Força Material Emanante é a substância de Tao. Como há Espaço, há Força Material Emanante, ou seja TAO. Como a Força Material Emanante implica mudanças, TAO também muda. A Força Material Emanante não se pode separar a si mesma, de TAO; e TAO não se pode separar a si mesmo da Força Material Emanante. Esta matéria é a base da discussão, em termos de Identidade e Divisão. Como é dito, enquanto a Força Material Emanante se modifica, TAO conserva-se inalterável.

De acordo com esta asserção, TAO apenas pode ser TAO, e a Força Material Emanante não deixa de ser, em si mesma, unicamente, a Força Material Emanante. Ambas são duas coisas diferenciadas."

Hoje - fala-se, ou escreve-se, de diferente modo. De um lado e do outro, Taoistas e Confucionistas. Mais conscienciosamente, com uma dialéctica bem mais fundamentada, melhor elaborada e concisa, talvez com argumentos de superior discernimento, e qualidade expositiva mais compatibilizados com a ciência hodierna - embora, em muitos dos críticos, na senda da mesma sanha antitética, nem sempre, mesmo assim, nos comentários produzidos, se distingam, por ausência, o facciosismo, e o preconceito, onde se chega a atingir a raia da inverosimilhança.

Mas o contrário, ou seja, o comedimento, a isenção e o reconhecimento do mérito, também podem ser constatados. Embora correndo-se o risco de se tomar a parte pelo todo, não parecerá impertinente trazer ao debate um trecho (Correcções Sobre as Explicações dos Quatro Livros) de Yen Yuen, homem já da nossa era, séc. XVII(1635-1704):

"Procure-se investigar aquilo que Confúcio fez. Porque não ensinou ele, primeiramente, a literatura, em vez de se ocupar com a Piedade Filial, Respeito pelos Idosos, Prudente Sinceridade e do Amor Universal? E mais - porque não ensinou ele sobre a natureza da identidade humana, e de TAO, em vez de falar sobre as Três Categorias de Coisas? Por esta razão, eu digo: quando não se entendem os actos dos sábios, devem procurar-se as respostas a partir das suas palavras; e quando não se compreendem as palavras dos sábios, devem procurar-se as respostas a partir dos seus actos".

Referindo-se ao seu antepassado compatriota, incluindo, na avaliação o primeiro dos discípulos laocianistas, Zhuang Zi, a escritora e ensaísta chinesa do nosso tempo, Feng Yuanjun (An Outline History of Chinese Literature) afirma que as raizes do pensamento científico, e das concepções democráticas da China, estão contidas nos trabalhos destes dois Clássicos, e que Lao Zi tinha a percepção das contradições do mundo objectivo. "O Tao Te Ching - acrescentava Feng, está escrito numa linguagem sucinta e bela, com imagens vividas a ilustrar ideias profundas".

Com o correr dos anos, e assim como aconteceu com vários outros, muito mais antigos, designadamente os Clássicos do chamado cânone Confuciano, este Livro de Lao Zi, provavelmente mal acondicionado, e mal protegido, e outrossim pela fragilidade do material utilizado, não terá resistido à acção do tempo, corroído pelo calor, pelo frio, pela humidade, e, naturalmente, roído pelo bicho. Seria, de resto, pouco natural que um livro, gravado em tiras de bambu, no século VI antes da era actual, pudesse resistir, incólume, cerca de trezentos anos, sem sofrer os danos erosivos do tempo, e porventura, sobretudo por esse motivo, indemne à tentação, deliberada ou irresponsável, de adulteração do texto original, como se sabe ter sido, efectivamente, o que aconteceu.

Pior do que isso, se disso não conseguiu livrar-se, teria sido resistir à queima dos livros antigos, no século III a. e. a. - ordenada pelo imperador Shih Huang Di, ele próprio, ao que se diz, em teoria, taoista, ou mais apropriadamente, anti-confucionista - a qual, todavia, e apesar disso, não pode ser considerada a maior calamidade eventualmente acontecida ao Tao Te Ching, afinal, não, assim, tão má - já que dela teria sobrado, ainda, um ou outro exemplar - quanto a restauração que se depois seguiu, eivada de reconstituições dolosas, que, de certo modo, não deixaram de, fundamente, agravar o respectivo original.

Foi o advento da dinastia Han (206 a. e. a. - 220 do primeiro milénio, de resto, identificada com, e protectora do confucionismo, que conduziu à recuperação possível das obras destruídas por esta fogueira, entre elas, provavelmente mais do que uma cópia, ou exemplares do Tao Te Ching. Tem-se, hoje, notícia de duas vetustas versões, ou dois "originais" da obra de Lao Zi. A primeira, correspondendo ao período compreendido entre 206-195, e a segunda, posterior, entre 179 e 169, encontrada em 1973, numa compilação conhecida por Ma Wang Tui, que data da primeira metade do século I a. e. a. Presume-se, com alguma fiabilidade, que estes exemplares foram os encontrados no terceiro túmulo de Han, postos a descoberto em Mawangdui, Changsha, na província de Hunan. Algumas pequenas divergências morfológicas, e de ordenamento, e ainda menores de natureza sintáctica, do que foi salvo, não retiram genuinidade aos achados, considerados muito próximos de um texto original anterior.

Da realidade acima mencionada, vão apresentados os dois exemplos significativos, isto é, com a deleção natural, parcial, mas profunda, do texto original, o que implicou, necessariamente, espúrios acrescentos ou substituições de caracteres de duvidosa propriedade. Julga-se ter sido sobre uma destas versões recuperadas que Ho Shang Kung se debruçou para elaborar, no ano [206] a. e. a, o primeiro Comentário conhecido ao Tao Te Ching. Sem dúvida, também se poderá admitir que Wang Pi, no primeiro quartel do século ¢ó do primeiro milénio, e, basicamente, sobre uma mesma versão, terá escriturado o seu ainda mais famoso e consagrado Comentário.

Não isentam os críticos de uma responsabilidade desta ordem, o próprio Wang Pi, (226-249) jovem de grande talento, falecido com pouco mais de vinte anos, que no Comentário, que, adregaria de chegar aos nossos dias, e passou a constituir uma referência genuína da magna obra, haveria procedido, de sua lavra, a algumas modificações, chegando a deduzir, por exemplo, segundo a acusação, passagens que nem sequer existem no texto original conhecido. Mas, os que vieram depois, não terão feito melhor. Bem pelo contrário.

Terá sido esta a razão de substituições das quais derivaram as eventuais contradições e hiatos que se julga perceber na curialidade, ou coerência, de alguns capítulos do discurso laociano, sem que, todavia, como se diz, a alma da obra tenha sido, com isso, profundamente afectada. Pode acrescentar-se, inclusivamente, que o sentido unívoco das ideias do Velho Mestre, segundo alguns, tem resistido a todas as traduções, deturpações e contestações, omissões, etc. com que, por vezes, nem sempre mal-intencionalmente, diga-se, se molestam, se desrespeitam a obra, e o seu autor. Não será, em absoluto, esta hipótese, aleatória, como se verá em capítulo ulterior.

Não deixou, por isso, de ser, assim, de um livro, mal, ou menos perfeitamente, conservado, ou reconstituído, pelo menos em várias partes, o exemplar do qual se terá fundado, no século III da antiga era, a primeira reedição do Tao-Te-Ching, a qual, a despeito das alterações a que teria sido sujeito, chegaria até hoje, nela se reconhecendo, em todo o caso, a sua virtual autenticidade e tomados por preservados, o essencial da obra, e do pensamento do Autor.

Por tudo o que é conhecido, não se tem, portanto, por inverdadeiro, serem do séc. Ⅲ antes da era actual, isto é, durante a dinastia de Han, as primeiras referências concretas à olvidada existência do Tao Te Ching - não obstante as pregressas sentenças de Zhuang Zi, Mêncio e outros do século Ⅳ. Nesta altura, a obra seria conhecida pela epígrafe de O Livro de Lao Tzu, mais tarde substituída pelo título definitivo que chegou até aos nossos dias, atribuído pelo imperador Han Jing Di (156-141) - este, como seu pai, Han Wei Bi, um e outro profundos estudiosos e cultivadores da filosofia do Velho Mestre taoista.

Foi, pois, efectivamente, desta altura, do Ⅲ e Ⅱ séculos a. e. a. para diante, que começaram, a aparecer, ou a serem divulgados, os livros, e escritos, entre eles, além do Tao Te Ching, e os Clássicos, e outros, também os Apêndices ao Livro das Mutações, da responsabilidade de confucionistas (não-identificados) que elevariam Confúcio à dimensão que, até hoje, perdura - e por óbvia e obstinada oposição, embora sem agressividade verbal directa, pondo em causa as ideias de Lao Zi.

É também, e não pouco significativamente, nesta mesma época, que florescem as diversas Escolas, de carácter literário, e filosófico, primeiramente Seis, deixadas registadas num ensaio de Sima Tan (-145-86), que seu filho, Sima Qian fez publicar no seu Livro "Registos de História", depois inventariados, num grupo de maior porte, conhecido pelo Período das Cem Escolas, por Lin Hsia (?- 46).

As primeiras referidas incluíam:

1) - Escola Yin Yang (baseada na cosmologia)

2) - Escola de Literatura (Ju Ching - Confucionista)

3) - Escola Mo Ching (Livro de Mo Hi)

4) - Escola de Nomes, ou Logismo (Ming Ching)

5) - Escola do Legalismo (Fa Ching)

6) - Tao Te Ching (Escola Taoista) sobre Filosofia social e metafísica

Confinado o assunto às Seis primeiras, portanto sem alargar os considerandos às ulteriores (descritas num Catálogo dos "Sete Sumários, existente na Biblioteca Imperial - pode afirmar-se que a China desenvolvera nesse período, um estádio cultural único na história da Humanidade.

Não virá à colação argumentar, face aos conhecimentos actuais, sobretudo científicos, a respeito do valimento das teorias então expostas, embora não seja de desprezar o mérito, pelo menos, do discernimento prospectivo que, no caso em análise, conduziu Lao Zi a conjecturar sobre a criação do Universo, problema, afinal, visto, hoje, sob uma perspectiva não muito distante do teorema desenvolvido pelo filósofo chinês. E não só por esse facto, mas igualmente pela extraordinária percepção de um mecanismo (TE) de uma natural evolução, e transformações das dez mil coisas, pelo intuído sentido de rotação universal, e da esfericidade da Terra, indubitavelmente deduzidos do seu Livro.

A criação destas escolas, entretanto, para além das suas tendências, entre si pouco pacíficas, e de ácidas rivalidades, teria o condão de promover um regresso às fontes, por isso, preservadas nos tempos - e qualificar o cabedal dos intervenientes, alguns deles de inegável nível intelectual e dialéctico.

Foram, pois, sem qualquer dúvida, as controvérsias alimentadas pelas Escolas que forneceram o combustível com que os confucionistas querelaram as ideias de Lao Zi, algumas vezes, com argumentos que não caberiam nos textos originais - dando assim aos debates uma dimensão que ainda hoje espanta. Pelo arrojo, pela combatividade, pelo jogo ensaiado das intenções, pela dialéctica, pela eloquência, pela própria ingenuidade, e, porque não, pelo mérito de um raciocínio inovador em relação a matérias que só pela imaginação poderiam equacionar.

E isso - quer se queira, quer não - ficou a dever-se inteiramente à contestação desencadeada contra o Livro de Lao Zi, a quem imerecidamente se relegou, onde ainda hoje se mantém, para a sombra de Confúcio.

Sublinhando ser incorrecto submeter à concepção moderna da matéria, os últimos anos do Período Primavera/Outono, e que Lao Zi não tinha capacidade (nem meios) para compreender geralmente a matéria (como ela é, hoje, entendida) Ren Jiyu considera que a noção de TAO prefigurava uma suposição anterior (na realidade, é isto o que pode ser deduzido do Livro das Mutações) de uma proto-matéria, a partir da qual ocorreriam, devido a uma faculdade imanente (TE), transformações espontâneas - as dez mil (ou todas) as coisas do mundo, e que o autor do Tao Te Ching perfilhou, para avançar com a teoria de um caos indiferenciado, de uma simplicidade elementar, e que não tinha nome, independente do Céu e da Terra, invisível, sem forma, insonoro e intangível, mas origem, não a causa, do nascimento do universo, e de todas as coisas dele.

Citando, igualmente, o Livro das Mutações, como fonte virtual onde Lao Zi foi buscar o essencial do seu repertório ontológico, Richard Wilhelm (1873-1930), por sua vez, na versão de sua autoria do Tao Te Ching (ed. inglesa de 1989) põe em relevo um trecho que ficou a constituir o cerne da filosofia laociana.

"O Livro das Mutações - escreveu - expressa o ponto de vista de que todo o mundo dos fenómenos se apoia sobre a oposição polar de forças, criativa e receptiva, um e dois, luz e sombra, positivo e negativo, masculino e feminino - todos exemplos de forças polares que conduzem a mudanças e transformações. Poderão imaginar-se estas forças como princípios primários, quando em repouso. O ponto de vista do mundo (conforme o Livro referido das Mudanças), não se explica, apenas, por um simples dualismo cósmico. Em vez disso, entende-se que as forças permanecem, por si mesmas, em mudanças contínuas". (Ideias conjecturadas antes de 1930, note-se!)

E procurando explanar, mais objectivamente, a teoria do fenómeno, tomando por paradigma o cap. 42 do Livro de Lao Zi:

"O Um fragmenta-se a si próprio, e torna-se Dois. Os Dois unem-se e voltam a ser Um. O criativo e o receptivo unem-se e geram o mundo. Por isso, Lao Zi disse que Um engendra o Dois, o Dois engendra o Três, e o Três todas as coisas do universo". Transportando para os tempos modernos este não mais do que um intuitivo e analógico código da criação, a realidade científica hoje conhecida demonstra que o UM não poderia ser senão a Unicélula, nascida espontaneamente, que, por cissiparidade natural se dividiu em duas, e as duas em quatro, e assim sucessivamente. Que cada célula era, ou é, constituída por dois genes, um feminino, outro masculino, (o Yin e o Yang) e que cada gene detém em si todas as características (TE - igual a um autêntico código genético) que irão definir o Ser (produto organizado final) da sequência.

"Isto é representado no Livro das Mutações pela junção da linha criativa divisível, e pela linha receptiva divisível, na formação dos oitenta e três níveis de trigramas primários: a combinação destes representam a possível constelação do "tempo" do mundo inteiro. Entendendo-se que as forças permanecem, por si mesmas, em constantes transformações - escrevia Wilhelm - concluiu Lao Zi, a partir do Livro das Mutações, que tudo isto, todas estas mudanças que abrangiam o mundo fenomenal não eram, decerto, um resultado de cega coincidência, ou obra do acaso".

Aceita-se a paráfrase, desde que os respectivos implícitos, configurados, pela negativa, na cega coincidência, ou obra do acaso que, conforme o Livro das Mutações, não se explicavam, apenas, por um simples dualismo cósmico - não conduzam naturalmente ao pressuposto da existência de uma voluntária primeira causa, geradora de um voluntário primeiro efeito específico, que, seguramente, não fariam parte do escopo do Filósofo.

Obra de acrescentos tardios, elaborados nessa altura por apaniguados confucionistas, os Apêndices do Livro das Mutações põem em evidência vários conceitos básicos, já adoptados, ou trabalhados, segundo se diz, por Confúcio, assim como, seguramente, antes dele, embora de modo diferenciado, por Lao Zi, como os seguintes: quando o frio acaba, começa o calor; e quando o calor acaba, regressa o frio". Quando o sol atinge o zénite (o seu meridiano) entra em declínio; e quando a Lua entra em fase de enchimento (lua cheia) entra em quarto minguante (seguindo-se a lua nova, o quarto crescente, e de novo, a lua cheia)" No retorno (reversão) define-se o sentido do Céu e da Terra".

Confúcio6 entenderia estes conceitos como movimentos associados à responsabilidade de uma entidade divina (O Céu, e/ou a Terra = Deus). Ideia esta arredondada de um capítulo do Livro das Odes, traduzida nos seguintes termos: "Os Céus deram origem à multitude (grande variedade) de seres, com a sua identidade, e regulamentos próprios". Lao Zi considerava-os como transformações ortogénicas, isto é, independentemente ocorridas da vontade fosse do que fosse, e apenas sob o paradigma de uma simples referência verbal (TAO) - equivalente ao antigo conceito do Tai Chi (Mónada, na filosofia grega), Princípio Fundamental de onde todas as coisas emanam, no caso vertente, inclusive, o Céu e a Terra.

O Venerável Mestre - Confúcio. Cerâmica original de Lio Gui Bing. Foto extraída do catálogo da exposição "Cerâmica de Shiwan de mestre Lio Chuan e Lio Gui Bing". Fundação para a Cooperação e o Desenvolvimento de Macau, Macau, Novembro de 1999.

Mas não se ficaram por aqui os confucionistas: Interpretavam o Livro das Mutações por um processo esotérico: "No Yin existe a Suprema Existência (em inglês, Supreme Ultimate); A Suprema Existência produzia Duas Formas; as Duas Formas produziam Quatro Emblemas (Maleabilidade, Dureza, Yin e Yang); Os Quatro Emblemas produziam os Oito Trigramas (os Quatro Emblemas, mais o Yang Maior, que se traduzia pelo sol; o Yin Maior que se traduzia Lua; o Yang Menor respondendo pelas Estrelas; e o Yin Menor, representando os Espaços Zodiacais. Da relação entre o sol, a lua, as estrelas, e os espaços zodiacais, conforme Shao Yung, derivava a origem do Céu. Por outro lado, a Maleabilidade Maior traduzia a Água; a Grande Dureza significava Fogo. A Maleabilidade Menor significava o Solo, e a Dureza Menor era a Pedra. A relação entre a Água, Fogo, Solo Metal e Pedra dariam, como produto final, a Terra. Os Oito Trigramas produziam os 64 hexagramas.7No Livro dos Ritos são citados os "Mandamentos Mensais", espécie de almanaque que ensinava o homem a manter a harmonia com o Universo. Foi destas matérias, de facto antigas já no tempo de Lao Zi, e que, naturalmente, não foram desconhecidas do Filósofo, que os autores dos A pêndices fizeram fundamento da sua argumentação contestante. Para eles, o mistério(da origem) do universo deduzir-se-ia através de sinais, porventura cabalísticos, dos números.

De acordo com a sua teoria, os números Yang eram sempre pares; e os números Yin eram sempre impares. "O número para o Céu (Yang) era Um; e da Terra (Yin) eram Dois. Para o Céu, era Três; para a Terra, era o Quatro; para o Céu, Cinco; para a Terra, Seis; Para o Céu, Sete, e para a Terra, Oito; para o Céu, Nove; e para a Terra, Dez. Os números para o Céu e para a Terra interpenetravam-se, e complementavam-se uns aos outros. Os números do Céu, somados, perfaziam 25; os números da Terra, somados, perfaziam 30. O total dos números do Céu e da Terra davam cinquenta e cinco. Nesta base, cada linha de cada hexagrama constituía uma fórmula que representava um ou mais princípios universais, ou, como se dizia, um ou mais tao. Porisso, os 64 hexagramas, e as suas 384 linhas (inteirase interrompidas) tinham todas, no universo, o seu tao. Seria, pois, através destes números que asevoluções e o mistério do Universo se alcançavam". O que traduzia, sem dúvida, superstição, oimprevisível do desordenamento (caos).

"O conceito, (ou o exercício) da divinaçãoligava-se a abstracções geométricas, através dedesenvolvimentos de diferentes combinações, queconstituíam um sistema de linhas contínuas, ouinterruptas, formando trigramas, e hexagramas. Estacircunstância simbolizava, ao mesmo tempo, váriasarticulações do Yin e do Yang, ou seja, diversosaspectos das contingências do futuro estavamassociados ao valor qualitativo dos números."(Passim)

Um opúsculo, como há muitos, de vulgarização das regras do Livro das Mutações, aconselha para a premonição de futuro, um jogode pedras facetadas (ou moedas) atiradas ao ar, comtrês lançamentos, um para cada uma das três linhas(inteiras ou quebradas, simbolizando as primeiras, o Yang, e as interrompidas, o Yin) de um trigrama... A cara da pedra, (ou moeda) convencionalmenteera atribuída à linha inteira, e a coroa para a linhainterrompida (ou vice-versa) Conforme o código, e a leitura da face anversa da pedra, depois delançada ao ar, assim se traçaria cada uma das linhas, até se construir um trigrama, como já foireferenciado.

Quinhentos anos depois de redigidos os Apêndices, era professor de Filosofia em Roma, o neo-platonista Plotino (205-270, apesar disso, muito provavelmente, sem jamais ter ouvido falar nem nos Apêndices, nem no Livro das Mutações, nem em Lao Zi, ou no seu Livro, portanto, sem nada em comum com a cultura, ou filosofia chinesa de setecentos anos antes. Por tratarem, aparentemente, da mesma matéria, teremos que liminarmente aceitar como mera coincidência, ou qualquer outro motivo avulso, que ficaria sem explicação plausível, os seguintes aduzimentos de Plotino, os quais não deixam, por bondade explícita, de aqui vir à colação.

A Realidade Fundamental - esclarecia ogrego - constituía uma primeira Unidade, ou o UM. Todas as coisas devem a sua existência a estapoderosa realidade. Porque o UM era a simplicidade(elementaridade) em si mesmo, nada havia a dizersobre Si. Não tinha qualidades distintas da suaessência, que conduzam a uma descrição ordinária. Apenas ERA!. Por consequência o UM erainominável. Se tivermos que pensar positivamenteem UM, a verdade ressalta mais do Silêncio. Nãose pode dizer que exista, desde que o Ser, por simesmo, não seja uma coisa, mas diferente de todasas coisas. (Portanto) era Tudo, e era Nada. Nãopoderia ser nenhuma das coisas existentes, todavia, representava todas elas....

Plotino adiantava, no entanto, que o Silêncionão poderia constituir toda a verdade, "desde queisso nos conduza ao conhecimento do divino - o queseria impossível se o UM permanecesse envolvidona sua impenetrável obscuridade. O UM devetranscender-se a Si próprio, identificar-se com aSimplicidade, de modo a tornar-se compreensívela todos os seres imperfeitos (todos nós, humanos). NADA procurando, NADA possuindo, de NADAser-se carecido, o UM é perfeito, e, numa metáfora, extravasa-se, e é a exuberância que dá origem aoNOVO. Não há nisto NADA de pessoal".

Plotino considerava o UM a "base de todasas categorias humanas, incluindo a dapersonalidade".

Shao Yung (1011-1077) num ensaio que otempo guardou, discreteou sobre a matéria destaforma:

"A Não-Existência é a unidade que não semovimenta; produz a dualidade (Tao =1 Yin +1 Yang), a qual se transformaria na Espiritualidade. A Espiritualidade produzia os números, e osnúmeros implementavam os Emblemas, produzindo os Emblemas as característicasindividuais, dedutíveis dos diagramas, dando estesorigem aos hexagramas. Subdivisões doshexagramas, por seu turno, conduziriam àexplicação de todas as transformações.

E o neo-confucionista Zhou Tun-Yin(1017-1093) haveria de fazer, desta matéria, uma leitura cursiva, embora a tenha produzidonum estudo em que procura conciliar o taoismocom o confucionismo, e mesmo com o budismo. Eis o que escreveu, e como interpretou as regrasdos Apêndices:

A Não-Existência (ou Non-Ultimate) é igualmente a Existência. A Existência corresponde ao Yang. Quando a sua acção atinge o clímax, torna-se inacção. Quando a inacção atinge o clímax, regressa a acção. A acção e a inacção (sucedem-se) alternativamente, constituindo, simultaneamente, a raiz da Existência e da Não-Existência. Da conjunção do Yin e do Yang surgem as Duas Formas (o Céu e a Terra = Tien eKun) E por impulso do Yang, e modelação do Yin, (do Céu e da Terra) são gerados a Água, o Fogo, aMadeira, o Metal e o Solo. Da combinação entreos Cinco Elementos, sob a acção da forçaemanante dos Elementos, surgem as QuatroEstações... Os Cinco Elementos integram o Yin eo Yang, O Yin e o Yang integram a Existência. Ea Existência é originária da Não-Existência.

A teoria dos Cinco Elementos, que seria consagrada no período da dinastia Han, surgiu nos finais do Período dos Estados Guerreiros, da Dinastia Zhou (370-335) Os Cinco Elementos fundamentais eram, como se viu antes, a Terra, Madeira, Metal (Ferro) Fogo e Água - ordem mais tarde alterada para Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água, que correspondiam às Cinco Cores, respectivamente verde, vermelho, amarelo, branco, preto. Corresponderiam, ainda, às características cíclicas do calendário, das pontas do compasso, e às notas da escala musical. Constituíam manifestações de poder e de operacionalidade do Yin e do Yang, as forças alternativas da luz e da escuridão, do nascimento e morte, do feminino e do masculino. Por acções entre si concertadas, estes poderes constituíam a base de TAO, o grande Princípio do Universo, polo do mecanismo de todas as constantes alterações que mantinham a harmonia do Cosmos. Eram simbolizados pelo desenho geométrico de um círculo, dividido em duas semi-curvas perfeitas, de cores opostas (preto e branco) cada uma marcada por um ponto, e que representavam o equilíbrio mantido pelo fluxo incessante do balanço das duas forças. Os Cinco Elementos eram, portanto, manifestações do Yin e do Yang, passavam por um ciclo que constantemente se renovava: À Terra sucedia a Madeira, a esta o Fogo, e este consumido pela Agua, substituída pelo Ferro, até se voltar de novo à Terra - assim se cumprindo, incessantemente, os ciclos da Natureza.

No momento da sua criação, cada um dosCinco Elementos adquire a sua natureza específica. A realidade da Não-Existência e a essência dasDuas Formas (Yin e Yang) e dos Cinco Elementoscombinam e actuam misteriosamente. Devido aoTao do Céu sobrevem o masculino; devido aoTao da Terra sobrevem o feminino. A interacçãodas forças emanantes (Yin e Yang) transforma eproduz as dez mil coisas, e estas crescem ereproduzem-se, em resultado de transformaçõesque não findam"...

Os Cinco Elementos (wu hsing) são referidos no Livro da História, anterior a dois mil anos a. e. a, havendo quem suspeite que o significado que hoje selhe atribui não seja o mesmo que tinha naquela data. A expressão wu hsing corresponderia a hungfan, Grande Plano, ou Grande Regra, ou ainda Norma -conceito fundado a partir de uma espécie de conselho, ou advertência que o ex-rei Shang da dinastia Hsiadeixou ao rei Wu, da futura dinastia Zhou, que lheusurpara o trono. A Grande Regra incluía os CincoElementos. Com o mesmo senso, estabeleceram-se, além de outras, as Cinco Funções, a aparência pessoal, a oratória, a visão, a audição, e o pensamento; os CincoPoderes (wu te) os Cinco Planetas etc.

Da dinâmica dual do (Yin e do Yang) escreveKristofer Schipper, num impressivo estudo publicado em obra recente de Jean Delumeau -As Grandes Religiões do Mundo - Edit. Presença, Lisboa 1997) resultam as transformações de toda a criaçâo, o dia e a noite, os ciclos lunares, as (quatro) estações, a vida e a morte. A sua acção é cíclica: quando o Yin atinge o apogeu, transmuta-se em Yang, e vice-versa. Esta alternância constitui a primeira das leis cósmicas. Como a forma essencial do corpo humano é o corpo feminino, o nosso corpo (masculino) participa das duas dinâmicas.

A Não-Existência (Non-Ultimate) é também a Existência (Great Ultimate). Quando a Existência se inicia, é o Yang que prevalece. Quando a sua actividade atinge o clímax, entra em inactividade. E aqui prevalece o Yin. Quando a inactividade atinge o seu clímax, regressa a actividade. A actividade e a inactividade alternam, assim constituindo uma a raiz da outra. Pela distinção entre o Yin e o Yang, os Dois Modos (Princípios) do Céu e da Terra ficam estabelecidos. E pela acção do Yang, e coordenação do Yin são gerados a Água, o Fogo, a Madeira, o Metal e a Terra. (os chamados Cinco Elementos). Na teoria, Yin e Yang apenas assistem à criação, ou colaboram na transformação das coisas.8

Sob a acção adequada da força material, dimanada dos Elementos, começam as Quatro Estações. Os Cinco Elementos integram o Yin e o Yang. O Yin e o Yang integram a Existência (Great Ultimate) e a Existência derivou originalmente da Não-Existência.

Segundo o relato da criação - prossegue Kristofer Schipper no seu ensaio - "a união do Yin e do Yang dá um terceiro astro: a estrela polar, Relógio do Céu, a Ursa Maior que é também agente do destino. A acção do Yin incide igualmente sobre os Cinco Planetas (Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno) cada um dos quais corresponde a um dos Cinco Agentes (wushing) também chamados os Cinco Elementos - que os pensadores chineses, do princípio da era actual, erigiram num grande sistema cosmológico que se prolonga na Constelação da Ursa Maior (em chinês, du, ou o alqueire), metal e terra. Os Cinco Agentes representam as cinco fases do ciclo percorrido alternadamente pelo Yin e pelo Yang. A água é o Yin perfeito, e o fogo, corresponde ao Yangperfeito. Entre os dois situam-se o metal (Yinnascente) e a madeira (Yang nascente). Oelemento Terra reúne os quatro restantes, e servede base intermédia de cada etapa da evoluçãodo ciclo. Os Cinco Agentes servem igualmentepara classificar os pontos cardeais, as cores, asnotas da escola pentatónica, as vísceras, ossabores, etc.

E referindo outras categorias numerológicas, a partir do mesmo modelo, como as Seis Direcções, as Sete Estrelas, os Oito Trigramas, etc. - Schippercontinua:

"Todas estas categorias são outras tantasenergias diferenciadas, que, uma vez dispersas pelaruptura do caos, se ligam, se conjugam, e se unem, para formar as dez mil coisas. Apanhados, por suavez, pela dinâmica de Tao, essas uniões efémerasdesfazem-se, o ciclo vital cumpre-se, e o que foi, por um instante, reunido, desmembra-se outra vez. As energias regressam ao seu estado original: o queesteve no Céu, regressa ao Céu; o que esteve naterra, regressa à terra."

E depois de transcrever os versículosreferidos, acrescenta, a concluir:

"Tao procriou o Um - a Origem. Daqui, de acordo com a cosmologia clássica chinesa ulterior, aparecem as forças opostas do Yin e do Yang. Destes, saíram as três pernas do tripé, Céu, Terra e Humanidade."9

E do tripé foi gerada toda a criação, todas asespécies, terra, águas, e a civilização. Nesta bonitacrença cosmológica, Tao existe, antes mesmo daOrigem. É a origem da Origem.

Em outros versos, como no Cap. 4 éassumido idêntico sentido do poder absoluto deTao, em especial no seu famoso início, emrelação ao misterioso pathos (way). Mas no Cap.42 é mais acentuada e significativa ademonstração, levando a noção de Tao às suasúltimas consequências".

Na religião chinesa primitiva, era possívelconceber um deus-homem, e um deus (deusa)mulher, que teriam dado origem ao mundo dascoisas. Todavia, na filosofia Yin-Yang, taisconceitos antropomórficos foram substituídos por, ou interpretados em, termos dos princípios Yin-Yang, os quais, apesar de análogos à condição feminina e masculina dos seres vivos, foram, todavia, concebidos como forças naturais completamente impessoais. (id. Ib.)

Apesar de apenas em uma vez (cap. 42) sever referido taxativamente ao Yin e Yang(embora, inclusivamente, nem todos os tradutoreshajam adoptado estas expressões no trechoreferido) não há dúvida que todo o Tao Te Chingrevela uma consciencialização formal das duascintilações, que a Física moderna vai definircomo partícula (positiva) e anti-partícula(negativa) da matéria.

Para Lao Zi (como para o Livro dasMutações, fonte natural das suas cogitações) Yin, situada a norte das montanhas, equivaleria àsombra, à escuridão, ao frio, ao negativo, àfeminilidade. Pelo contrário, Yang, situado a suldas montanhas, corresponderia ao sol (luz), calor, força, positivo, por conseguinte, masculinidade. Nunca, porém, como chaves de qualquer jogo deazar ou de sorte.

Lao Zi não fora um cabalista, nem astrólogo. Não entretinha, por isso, o seu pensamento senão comrealidades (como as pensava) intangíveis, certamente, mas ideias que nada tinham a ver com sortilégios doacaso. Não possuiria a ciência da matéria, nem meiospara, desse modo, entender a realidade das respectivastransformações. Mas tinha intuições notáveis, e umsurpreendente sentido epistemológico da natureza, edo movimento evolutivo das coisas, conforme se vê, por exemplo, nos capítulos 47, 48 e 81, e em outros. E não levaria, como não leva, tão longe, os seus juízos, como as deambulações conjecturais de quantosfizeram do seu Livro objecto e motivo das maisextravagantes divagações.

Para os compreender, adopta e preconiza, oculto da inacção, exercício da meditação profunda, como meio de se tomar consciência do mundo. Quanto mais se estudavam (as regras curricularesda época) menos livre ficava o espírito (ou ainteligência) para tentar entender a essência e amecânica do universo, ou seja, mais longe se ficariado sentido de uma realidade. Sem se sair de casa, poderia conhecer-se todo o mundo, sem olhar pelajanela, poderia assumir-se a virtude do Não-Ser. Ainacção (wu wei) correspondente, na realidade, àdoutrina misticista da interferência, nem imposta, nem consentida, assumia uma dimensão queconduzia o homem, inevitavelmente, o para oeremitério de um pequeno espaço, sem contactoscom o mundo exterior, "mesmo que se ouvissemas galinhas, e os cães a ladrarem do outro lado".

Seja o que for que as suas ideias possam significar, o que parece mais importante é a consciência que ele tinha das coisas, e o sentido de probidade com que delas tratava, a sua preocupação em definir o que era para si, o valor da ciência, como ciência, e não como charada. E não será menos relevante, ou significativo, o conteúdo das suas observações, atentas e críticas, ao fenómeno social e das contradições do sistema (já naquela época) assumindo-se o Velho Mestre contra a arrogância discricionária, e prepotente do poder político. "A filosofia de Lao Zi - reiterará Francis G. Kenneth é, de certo modo, revolucionária. Ao contrário de Confúcio, que insiste no culto das tradições da antiguidade (A vida de um homem moral é um exemplo da moral universal -chung yung - enquanto a vida de uma pessoa vulgar está em contradição com a moral universal) -Lao Zi despreza o passado (como passado, exemplo condicionante do presente); segundo ele, o verdadeiro espírito dos tempos antigos já não se podia conhecer, o saber e a erudição apenasconseguiam apreender o invólucro desse espírito, e o melhor, por isso, seria fazer dele umaabstracção. Aliás, os bons costumes e a moral nãopassavam de recursos passageiros que ocultavama decadência das forças vitais superiores. Aambição, e aquilo que se possa entender porcivilização, são apenas males..."

Sabendo-se, como já se viu, que Confúcio, ele mesmo, não deixou escrito, por sua próprialavra, um único livro, e muito menos os CincoClássicos, a que ficou associado o seu nome, oLivro das Odes, o Livro das Mutações, O Livrodos Documentos, O Livro dos Ritos, e os Anais daPrimavera/Outono - conhecidos desde idades muitomais antigas - e que tudo o que dele ficou foi obrade discípulos e prosélitos (duas centenas de anos depois da sua morte) sobretudo os principais comoMêncio, o autor, ou autores anónimos dosAnalectos, Tsang Tsen (Piedade Filial), e outros, designadamente, Chung Yung (a Doutrina doMeio), e Ta Hsueh (a Suprema Sabedoria), e aindaatravés dos trabalhos dos seus contestantes, comoZhuang Zi, Lieh Zi, Han Fei Zi, os primeiros doséculo IV, e os segundos, do século III, a. e. a., torna-se elementarmente impossível traçar doVenerável Mestre um retrato como Kenneth oesquissou. De resto, mal se percebendo o motivoporque foi Confúcio trazido a este específicoenquadramento, senão para se tentar tirar ganhoseventuais da conhecida rivalidade entre os doisfilósofos, como já dizia o citado Pei Wei... Relativamente à comparação estabelecida, estamoshoje melhor apetrechados para duvidar dovalimento do raciocínio de Kenneth.

Numa edição do Tao Te Ching, primeiramente impressa em Paris, em 1993, sob osauspícios da UNESCO, e depois publicada emBeijing em 1994, o brilhante académico GuZhengkun, depois de uma profunda e originalanálise à obra do seu antigo ancestral, tendo-asubmetido, inclusivamente, a quatro temas quetomou por fundamentais na interpretação dopensamento do Autor, Ponto de vista Dialéctico -(Dialectic Law); Ponto de Vista Epistemológico(Taoist Epistemology) Ponto de vista Ontológico(Ontologic Being), e como Guia Prático para asRelações Universais (Practical Guide to WorldAffairs) - acaba por afirmar, em termos deconclusão, que o Taoismo de Lao Zi é maissistemático, mais prudente, e mais coerente, do quea filosofia confucionista.

Há alguns anos atrás, em 1995, foi publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra, um interessante livro, intitulado Livro de Hua Hu - que o seu editor -tradutor, Hua-Ching Ni afirma ser uma compilação de antigos ensinamentos de Lao Zi, depois deste se ter retirado para as montanhas -também passados, oralmente, de geração para geração. Depois de naturais vicissitudes, o livro, do qual, aliás, ao que se afirma, se terão obrado várias versões, que corriam por todo o País, desapareceu no século XIV da era actual, parareaparecer, miraculosamente, num único exemplar, portanto, raríssimo, que seria, agora, reeditada pelo citado Hua-Ching Ni - não se percebendo, contudo, muito bem, se se trataria de uma obra antiga chegada até ao século XIV, ou se a reedição seria cópia elaborada nesses tempos, de um original sobrevivido. Não se conhecem informações concretas, e suficientes, que autentiquem qualquer das duas eventualidades. Nem parece que alguém mais, além do seu editor, o refira, ou confirme avirtualidade da sua existência vetusta. O livroserá antigo, e as ideias, e até a dialéctica neleexpendidas, nem sempre se inconciliam com amatéria filosófica e social do Tao Te Ching- menos os termos da exposição, que não deixamde parecer demasiado formais e especiosos, emrelação aos atributos, profundos, mas singelos, quecaracterizam o original de Lao Zi. Mas, estãoinquestionavelmente, próximos.

Exemplo expressivo de uma virtual sintoniada matéria deste livro com a do Tao Te Ching podeobservar-se no seguinte poema lá incluído, cominiludível aproximação ao primeiro capítulo do TaoTe Ching.

É eterna a subtil essência do Universo

Como inesgotável fonte da vida

Que sempre corre num vasto e profundo Vale

É chamada a progenitora primordial,

De Origem Misteriosa

Abrir e Fechar a Porta da Origem

Caracteriza a intercombinação mística do

Universo

A intercombinação mística fez nascer as dez

mil coisas

Desde o espaço vazio à realidade das coisas

A intercombinação Mística do Yin e do Yang

É a raiz da vida no Universo

O sereno e subtil movimento da interacção

Entre o Yin e o Yang jamais cessa

A sua criatividade e utilidade são perpétuos

Não deixaria de parecer temerário avançarcom. uma opinião sobre a sua autenticidade, semuma comprovação dimanada de diferentes pessoas, de idoneidade, pelo menos tão íntegras, como sepresume seja o caso do editor deste livro. Mastirando a observação feita, sobre uma qualidadeliterária porventura mais elaborada, a temáticamostrada parece não apresentar desvios assimétricos profundos em relação ao primeiroLivro.

Se não puder provar-se, efectivamente, ser este texto da autoria do primo- filósofo, está-se, em todo o caso, em presença de uma obra de feição e raiz taoista que, nem por ser interpretada, ou redigida, de uma forma sofisticada (afinal, igual ao que foi feito em quase todas as outras versões conhecidas do livro) nem por isso, pois, deixará de por ele se ter justa consideração, e de o trazer à conciliação com os argumentos de Ieh Shi, sobreLao Zi, e seu Tao Te Ching, e, pelo antagonismoreferido, das artes mágicas dos redactores do séculoIII a. e. a dos Apêndices do Livro das Mutações.

É ainda neste livro que se lê, entre váriosoutros inegavelmente interessantes juízos, quese concatenarão, sem dúvida, com o texto doTao Te Ching - a seguinte consideração, que seincompatibiliza, basilarmente, com osconceitos, aliás, ulteriores, do escrito, antesreferido, de Yeh Shih.

"Tao é completo (isto é, só se compreende quando considerado no conjunto de si mesmo). É como uma grande árvore, com as suas raizes, tronco, braços, galhos, folhas, flores e frutos. As partes (em si mesmas) não correspondem ao Tao integral. Quando se toma uma porção como o todo da árvore, cria-se a percepção de uma religião distorcida, ou de uma ciência prolixa fragmentada. O corpo humano por exemplo: é constituído pelos cinco sentidos, dois grupos de órgãos internos, quatromembros com dedos de pés e mãos, etc. - todosligados a um único e exclusivo complexo. Se setomar um dedo, ou um membro, ou um dos órgãos, como objectos de estudo, cria-se uma perspectivade dissecação de uma parte, mas não do todo. A forma e a função de um ser humano decorreda integração coesa de todas os seuscomponentes. Isto é verdadeiro não apenascom o homem, mas com todas as coisas domulti-universo". (Trad. Livre)

Hoje em dia, mesmo o nome do autor doTao Te Ching, e, mais ainda, a notícia darivalidade entre prosélitos dos dois mestres, sãomenores do que a importância do próprio livroem si, na realidade, um verdadeiro e valiosíssimolegado com que a China Milenar contemplou a humanidade. Ou, como dirá um autor recente,"Não importará saber, pelo menos hoje, qualdeles foi o primeiro, se Lao Zi, se Confúcio - sótemos que nos regozijar, e recordar aquele, sejaquem tenha sido, que deixou escrito um dos maisprofundos trabalhos elaborados pela mente de umHomem."

O brilhante académico chinês do nossotempo, Gu Zhengkun (Lao Zi The Book ofTao andTe, Paris, 1993, e Beijing, 1995) dirá parecer-lheque "o problema (da antiguidade da obra, a suaautoria, e a existência histórica do seu presumidoAutor) não deverá permanecer ao nível rasteirodesta guerra entre académicos, mas prosseguir-sena constatação da realidade, que é muito maisimportante, o taoismo de Lao Zi. (Trad. livre).

Ou como, de outro modo, afirmaria um autor dos princípios deste século: "No fim, a questão de quem escreveu (o Tao Te Ching) não tem uma importância decisiva, e o que fica, como insofismável verdade, é que o livro existe!

O autor deste conceito foi o já referidoalemão Richard Wilhelm (ibid.) que viveu naChina mais de vinte anos, e que escreveu umadas indubitavelmente melhores recensõesque sobre a obra de Lao Zi se conhecem, principalmente o seu comentário sobre "OsEnsinamentos de Lao Zi", impresso, primeiramente, em 1925, e incluído, em anexo, na versão inglesa de 1928, do seu Tao Te Ching-de resto, trabalho de grande originalidade, eprofunda sabedoria, que, mais de setenta anosdepois, continua a constituir referênciafundamental, e básica, para muitos dos quetêm escrito sobre os mesmos materiais. Simplesmente, ninguém o fez com a mesmacompetência, a mesma lucidez e consciência, mesmo isenção, de Wilhelm.

Metódico, sistemático e eloquente, parecendo demonstrar um domínio perfeito ecompleto da língua chinesa, e ainda das matériasque aborda, ele descortina, descodifica com raramestria o sentido da comunicação, incluindo o quenão seja, ou não pareça, claro, na obra, ou nopensamento de Lao Zi, sem perífrases, nemambiguidades - para tirar daí benefíciosextravagantes - embora tenha igualmente caído no mesmo cisma de atribuir virtualidades específicas a um TAO, que não existia.. A existência, no texto de Zi, daquilo que alguns, não sem relativa propriedade, tenham, modernamente, designado por provérbios, ou paradoxos, é referenciada como particularidade singular, pelo menos, sob o ponto de vista dialéctico, como se tal se representasse de importância fundamental num genuíno e profundo livro de filosofia, como é o Tao Te Ching.10 As proposições ganharão relevo paradigmático por se adaptarem, diacronicamente, ao sentido e às formas da linguagem hodierna universal.

XIII

Sentenças como aquelas que ali se constatam, por exemplo, as de que "quem muito sabe, mais sabe que não sabe", ou as "daquele que fala não sabe, e aquele que sabe, não fala", ou ainda a de que "as palavras sinceras não são agradáveis, e as palavras agradáveis não são sinceras" - e outras expressões similares - surpreendem, não só pela actualidade que puderam conservar ao longo de dois milénios, ou mais, como pela sabedoria genuína que lhes deu origem, e oportunidade da respectiva inclusão na sua Obra. Mais do que qualquer outra consideração, esta circunstância confirma, sem reservas, um caldo cultural, na realidade, existente no tempo em que vivia, que, sem dúvida, terá presidido a uma formação propedêutica do bibliotecário da corte imperial. Apenas não, para uma tendência, ou voluntarismo da redundância literária. Pode ser que nos nossos tempos aquelas expressões tenham conquistado o relevo de prolóquio, mas não parece que tenha sido esse o valor, nem essa a intenção do Autor quando as haja adoptado.

Indiciadas anáforas, ou repetições, mesmo um ou outro eventual solecismo - que até poderão, na maior porção de vezes, não sê-lo, por aliterações ilegítimas de terceiros, ou até porque as referências gramaticais mal servirão, hoje, quando servirem, na semântica, ou na sintaxe da literatura antiga - outro sentido não terão senão o de relevar algumas secções do discurso laociano, marcando mais um estilo, uma cadência, ou o ritmo de composição, à boa maneira da técnica básica, ou correnteza, (versos dobrados) de grande parte dos poemas populares do Livro das Odes - do que a preocupação de uma eventual enfatização, relativa a qualquer ideia preconcebida. Evidenciando a presença do paradoxo, que, por, formalmente, poder existir, e parecer expressivo no Tao Te Ching, mais na sua leitura hodierna, certamente, do que no pensamento filosófico de Lao Zi, o reputado académico Gu Zhengkun, (ibi.) escreveu: "Em lugar das verdades reveladas, que constituem o fundamento de tantos sistemas religiosos, o Taoismo nada propõe, a não ser um paradoxo. Toda a gente conhece Tao, e contudo ninguém o conhece. Aquilo pelo qual é, espontaneamente, sempre ultrapassará o entendimento humano. Tao era apenas um nome..."

É, de resto, isso o que, por analogia circunloquial, porventura mais sofisticada, se tira, também, de uma passagem do livro de Palmer: Depois de salientar que o Tao Te Ching não é um livro em sentido convencional, mas que se trata de uma colecção de ditos e comentários usualmente não conectado com o que veio antes nem com o que virá depois, acrescenta: "A melhor maneira de apreciar os seus oitenta e um capítulos é tomá-los como uma fiada de pérolas, cada uma delas perfeitamente arredondada, mas sem préstimo. Como pérolas, são individuais e separadas, todavia, no seu aspecto global encantam pela sua beleza e fascínio." (Trad. livre)

A perífrase não banaliza a substância da obra antiga, a dialéctica não confunde a sua ética. Uma obra não sobreviveria vinte e cinco séculos apenas por tais lúdicas razões...

Salvaguardada a devida consideração pelas doutas opiniões dos dois mestres, não parecerá despiciendo, crê-se, afirmar que o Velho Filósofo atinja, na área do raciocínio sociológico e metafísico, mais longe do que a pressuposta arte do paradoxo, e da redundância perifrástica. Se assim não fosse, a análise do Livro resumir-se-ia ao enquadramento, não do seu conteúdo, particularmente, mas da morfologia em geral, não da filosofia, mas da literatura.

Baixo relevo tumular, representando o lendário encontro Lao Zi - Confúcio (estampa antiga).

Manda a verdade que se diga que, menosdo que um livro de literatura, e de umpensamento equívoco, traduzido em merasexpressões epigramáticas ou simplescompilação de paradoxos, que, pois, provavelmente, não justificariam a perpetuaçãoda obra, nem do nome do seu Autor - diante do Livro de Tao, o que se tem é um autêntico tratado de filosofia, que até hoje, por exemplo, pensadores ocidentais desde o século XVIII não se cansam de enaltecer, reconhecendo nele um monumento de elevado gabarito intelectual. Não! Na realidade, a obra de Lao Zi não será, propriamente, um manual de paradoxos, TAO não será "apenas um nome", sim, um conceitovirtual associado, ainda hoje, ao enigma dacriação do universo.

Por outro lado, sendo Nada o que TAOsignifica, de Nada não parece possível tecer-se umateia paradoxal. Tao, já se sabe, não passa de umnome, inventado, de resto, mais de dois mil anosantes de Lao Zi o haver adoptado - para se fazerentender ontem, e hoje, ainda - que tudo o quenasceu, e quando nasceu, proveio de um enigma, de um Vazio, sem forma, sem sentido, e semreferências, a que foi dado circunstancialmente, um nome, designação aleatória sobre a qual umparadoxo não poderia ser eventualmenteconstruído.

Na realidade, para que um paradoxopudesse ser entendido como tal, seria necessáriodemonstrar, à saciedade, que o seu autor setivesse comprazido, deliberadamente, e com essaintenção, em tê-lo, desse modo, elaborado, o que, no caso vertente, naturalmente, não se comprova. E assim sendo, o exame não teria que sersubmetido a classificações, ou regras que, ocondicionassem, e outorgassem uma feiçãoavessa, ou reservada, ao pensamento do própriofilósofo.

Mas, melhor do que o autor destas parávoas, e referindo uma ideia geral, escreveu, em 1947, o citado Fung Yu-Lan:

"Todas estas teorias paradoxais não serão mais paradoxais, se (quando?) se compreender a lei fundamental da natureza, embora, para o povo comum, que não tem a menor ideia desta lei, tais (teorias) possam parecer realmente paradoxais. É nesta conformação que Lao Zi diz:

Quando o homem ignorante contacta a Verdade (TAO) ri-se disso, e se não se risse, tal seria contrário ao espírito de TAO. (A Verdadenão seria Verdade)".

Sobre os virtuais circunlóquios de HuiShih, depois de acentuar que o filósofo atinaracom a concepção do que era absoluto e imutável, sob cujo ponto de vista, em consequência, compreendera que a qualidade e as diferençasdas coisas concretas eram todas relativas esusceptíveis de alterações - Fung concluiria:"Uma vez compreendida a posição de Hui Shih, podemos observar que esta série de pontos, reportados no Livro de Zhuang Zi, apesar deusualmente tidos por paradoxos, realmente, nãosão, de todo, paradoxais. (Com uma únicaexcepção) são todos ilustrações da relatividadedas coisas, e expressões daquilo que se possachamar teoria da relatividade".

O facto de a literatura taoista, em especial, a produzida entre os séculos IV e II da era antiga, conforme opinião de vários críticos, de não pouco mérito, haver incorrido naquilo a que, talvez nem sempre impropriamente, se classifica de sofismas, ou paradoxos, - em que se entreteriam filósofos, por exemplo, como Teng Hsi (do século V) e Hui Shi, Huan Tuan e Kung-sun Lung, descritos pelo confucionista Hsu Tzu, do III século, como filósofos que "se compraziam com estranhas teorias, e argumentavam com curiosas proposições", referidos, igualmente em Lu-shi Chun-chiu, Kung-sun e Hui Shih, pelos seus argumentos paradoxais. - não invalida uma questão que seria injusto despegar do contexto: seria o caso de Tao de Lao Zi ser uma coisa, e o taoismo dos seus adeptos de trezentos anos depois -ser outra... Esta insinuação não será, aqui, original: "Pode distinguir-se, entre os dois conceitos (a seguinte consideração) TAO do Taoismo, como TAO, de Lao Zi, e o tao dos Apêndices (ao Livro das Mutações). O primeiro é unitário, sendo dessa Unidade que se caracterizam a origem e a transformação de todas as coisas; o segundo, pelo contrário, é múltiplo, e inclui os princípios queformam cada uma de nove categorias das coisas douniverso, como tais, os Cinco Elementos, as CincoFunções, as Cinco Cores, os Cinco Planetas (Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno) e outrasconjunções. (Pas.)

Considerando, em boa verdade, que Lao Zinão utilizou, expressamente, no seu Livro, estesgradientes, de que os Apêndices, e toda umaliteratura, melhor, ou menos bem elaborada, oportuna e pertinente, mas nem sempre, têmproduzido ao longo de vinte séculos - poderá nãoparecer inteiramente despropositado reiterar-se quea guerra, que tem havido, foi travada, não, propriamente, entre os dois Mestres, ou os seuspensamentos liminares, mas entre os adeptos de ume outro, especialmente, entre os neo-confucionistas, e os mentores dos novos desenvolvimentos dostextos laocianos, estes, sim, igualmente, do séculoIII da era antiga. Quer-se dizer: o taoismo de LaoZi foi uma coisa, que, com o andar dos tempos, sefoi modificando, ou transformando numa espéciede uma religião, como se a primeira teoria setivesse esgotado no seu ciclo vital, dando origema uma segunda, eventualmente afim, - mas nãoexactamente igual.

A verdade final é esta: TAO, de Lao Zi, significou, originalmente, uma ideia cosmogónica; o Taoismo tornou-se noutra coisa. O primeiropassava por uma teoria, se se quiser, meramentedialéctica; o segundo, à revelia do juízo do Autor, transformou-se num sofisma.

Incurial seria, além, do mais, não admitir quese constata uma certa tendência preconceituosa, corrida à conta de uma razão mais estética do querealista, para utilizar, como se vem constatando, expressões e conceitos críticos nossoscontemporâneos, que, as mais das vezes, sãoincompatíveis com o significado da semióticaarcaica, isto é, para julgar, com justiça, umaideografia antiga de 2500 anos, por padrões de umasematologia menos antiga, ou, já, moderna. É o quetem acontecido, normalmente, desde então para cá.

Na obra de Wolfram Eberhard, A History ofChina, já aqui citada, lê-se o seguinte:

"O Livro (Tao Te Ching) está escrito numa linguagem bastante simples, por vezes em rima, mas num sentido vago e ambíguo. Acreditamos, hoje, que se trata de um livro completamente abstracto... Com algumas partes recentemente descobertas, podemos chegar a um melhor entendimento dos ensinamentos de Lao Zi. Estes ensinamentos constituem essencialmente um esforço para conciliar a vida do homem na terra com a harmonia da vida e das leis do universo (Tao). Este era igualmente o objectivo de Confúcio. Mas enquanto Confúcio procurava alcançar o seu objectivo de uma forma racionalista, estabelecendo um certo número de regras de conduta humana, Lao Zi esforçava-se por atingir o seu ideal por um método intuitivo e emocional. Lao Zi é frequentemente descrito como um místico, mas talvez esta expressão não seja, inteiramente, a maisapropriada. Deve ter-se em mente que, no seu tempo, a língua chinesa, falada e escrita, tinha aindagrandes dificuldades para exprimir ideias. Lendo oLivro de Lao Zi pressentimos que ele tentavaexprimir algo que o seu idioma não estava, naqueletempo, para isso, apetrechado. E o que ele queriaexprimir pertencia ao foro emocional, não aointelectual, do carácter humano. Por isso, umaexpressão perfeitamente clara das suas ideias erainteiramente impossível. É preciso ter em menteque o idioma chinês carece de uma definição deuma sorte de palavras, como substantivos, adjectivos, advérbios, e verbos. Qualquer palavra, com poucas excepções, pode ser utilizada oranuma categoria, ora em outra. Assim, para secompreender uma combinação como cavalobranco constitui problema difícil de lógica paraum pensador do século IV a. e. a.: significará aexpressão "branco mais cavalo? Ou "cavalobranco" não seria um cavalo, mas algo dediferente?" (Trad. livre)

ⅪⅤ

Para muitos, Zhuang Zi foi um exímio sofista. Pode ser que assim tenha sido, de facto, reconhecendo-se o seu temperamento irreverente e dicaz11 citando-se o trecho a seguir como umexemplo paradigmático da sua eventualmentetípica dialogia:

Identificar dedos numa ilustração de dedos como não sendo dedos, não é melhor do que identificar não-dedos numa ilustração de não-dedos como não - sendo dedos. Identificar um cavalo branco numa ilustração de cavalos como não sendo um cavalo, não é melhor do que identificar um cavalo inexistente numa ilustração de cavalos como não sendo cavalos. O possível é impossível, o impossível é possível. Em Tao tudo se criou, e a Virtude (a faculdade de fazer evoluir naturalmente todas, ou as dez mil coisas) transformou o produto da criação.. As coisas têm nomes, e são o que são. E o que são elas? São o que são. Não são aquilo que não são. Tudo o que é, é, e faz aquilo que pode fazer. O Nada não é coisa alguma. O Nada não pode fazer alguma coisa.

Zhuang Zi, contudo, foi muito mais do queum sofista...

Uma demonstração dessa virtualidade, porventura, mais do que isso, entre tantas quedeixou no seu extraordinário Livro - reside nosseguintes trechos, que não se distinguem só porterem sido escritos há dois mil anos, e o seuautor, sofista, só porque alguém, já dos nossostempos modernos, se lembrou de lhe atribuiressa alcunha:

O saber dos antigos era perfeito. Perfeito, como? Em primeiro lugar, eles não sabiam ainda o que eram coisas. Este é o conhecimento mais perfeito. Nada pode ser acrescentado. Depois, passaram a saber que o eram coisas, mas não faziam distinção entre elas. A seguir, passaram a distingui-las, mas não a raciocinar sobre elas. Quando o raciocínio chegou, TAO foi destruído. Com a destruição de TAO, chegaram aspreferências individuais. (Trad. livre)

E noutro passo:

A Grande Harmonia não oferece discussão. O Grande Argumento não necessita de palavras. A Grande Benevolência não é, propositadamente, caridosa; a Grande Pureza não é propositadamente modesta; a Grande Coragem não é propositadamente violenta. O TAO que se diz sê-lo, não é TAO. O Discurso argumentativo depressa perde o seu mérito; a Benevolência constantemente repetida deixa de se rever nos seus objectivos; a Coragem propositadamente violenta acaba por se perder. Estes Cinco exemplos são redondos, mas tendem a tornar-se quadrados. Portanto, aqueleque pretende parar, e não sabe como fazê-lo, é perfeito. Aquele que sabe que os Argumentos nãoprecisam de palavras, e que TAO não pode ser referenciado, pode ser comparado à Reserva da Natureza. Quando se colocam coisas na Reserva, esta não fica cheia; quando as coisas são de lá retiradas, não fica vazia; e mesmo assim, ele próprio não sabe porque são as coisas deste modo. A isto se chama Preservação do Conhecimento. (Trad. livre) (Ver adiante um trecho sobre aHarmonia.)

Outros dois são estes:

O primeiro:

"Como é que eu sei que a morte não é tãomaravilhosa, como é a vida? Como é que eu seique um morto não se arrependeu de se ter apegado tanto à vida? Aqueles que sonham com banquetes, acordam frustrados e com pena por os sonhos nãoterem sido realidade. Aqueles que sonham comtormentos e frustrações, acordam felizes aoconstatarem que o sonho não foi uma realidade. Enquanto sonham, não sabem que apenas sonharamquimeras. Alguns sonham que o sonho é umarealidade. Só quando acordam é que descobrem quetudo não passou de uma ilusão. Mais tarde chega oGrande Despertar (Morte) e então aí acaba por sedescobrir que esta vida não passa, afinal, de umgrande sonho! Os néscios pensam que vivemacordados, enganando-se a si próprios, quandojulgam que são na realidade, príncipes, e lavradores. Confúcio e Tzu (Weizi, primeiro ministro do estadode Liang)~não passam de sonhadores. E eu, quedigo que vós sois uns sonhadores, nada mais sou, igualmente, senão um sonhador."

O segundo:

"Uma vez sonhei que eu, Zhuang Zi, erauma borboleta, esvoaçando ao vento, de cá paralá, com movimentos e os objectivos de umaborboleta real. Tinha a consciência de que mecomportava como uma borboleta, e a insciênciada minha condição de homem. Depois - acordei, e fui outra vez - eu mesmo. Hoje, acabo por nãosaber, na verdade, se foi como homem quesonhei que era uma borboleta, ou se, sendoborboleta, não sonhei antes que era um homem. Entre um homem e uma borboleta, hánecessariamente uma diferença, que secaracteriza pela transformação das coisas".

Mil e quatrocentos depois, Kafka iriaescrever a sua "Metamorfose", sobre este quasemesmo tema...

A anterior referência ao cavalo brancotem a ver com um chamado pleonasmo do sofistaKung-su Lung, discípulo de Hui Shih, e amigode Zhuang Zi.

Advertido de que cavalos não podiampassar uma fronteira, Kung-su, indo ele em cimade um, replicaria, ao guarda que o interpelara: Omeu cavalo é branco, e um cavalo branco não éum cavalo. A palavra cavalo denota forma. Apalavra branco denota cor. Aquilo que denota cor, não é aquilo que denota forma. Portanto, eu digoque um cavalo branco não é um cavalo. Quando se requisita um cavalo, podem vir um cavalo amarelo, ou um cavalo preto, mas quando se pede um cavalo branco, não podem substitui-lo por um cavalo preto ou amarelo. Portanto um cavalo preto ou um cavalo amarelo são ambos cavalos. Podem corresponder a cavalos, mas não respondem por um cavalo branco. O termo cavalo não exclui, nem inclui qualquer cor. Portanto, cavalos pretos ou cavalos amarelos respondem por cavalos. Mas o termo cavalo branco exclui, e inclui a cor. Os cavalos pretos e amarelos são incluídos devido à sua cor. Portanto, apenas o cavalo branco é excluído por causa da sua cor. Não ser excluído não é o mesmo que ser excluído. Por isso digo que um cavalo branco não é umcavalo. (Trad. livre)

O sofisma não se conclui aqui, mas fica demonstrado o efeito, dito paradoxal, ao jeito deliberado e intencional dos homens da segun dageração de seguidores do Velho Mestre do Taoismo - que procurariam, decerto, muitas vezes, com tais expedientes e manhas dialécticas, autoproteger-se dos esquemas condicionantes e repressivos vigentes.

Não fora esse, porém, o caso, nem de princípios, nem de objectivos, de Lao Zi.

A classificação, assim, de paradoxos, como tais, que se dizem existentes no livro do Filósofo(Velho Mestre) não passa de mera figura de retórica, destinada geralmente, por quem assim os classifica, a esconder uma eventual perplexidade, ou afeiçoar um estilo. No caso em apreço, no Livro de TAO, chama-se, por exemplo, paradoxo à expressão trabalhar sem trabalhar, ou acção pela inacção (wei wu wei -deduzida do cap. 63).

Aqui, como noutras situações, o valor crítico das palavras, ou conjunções, não pode, ou não deve, ser tomado à vontade de quem assim o entenda, pois o sentido do discurso ultrapassa, naturalmente, a hermenêutica respectiva, não só da coerência, como da gnosiologia, não do Autor, mas da crítica. Os organismos dos seres vivos, voluntária, ou involuntariamente, nunca deixam de trabalhar, mesmo quando parecem encontrar-se na mais completa imobilidade ou quietude. Quando Lao Zi utilizou aquelas expressões, não foi decerto com a intenção de pôr em evidência a plasticidade literária de alguns trocadilhos, mas consolidar, por aquela via, aquilo que, para a seriedade do seu carácter, mais fundo tinha para dizer, e queria dizer, e que diria respeito a algo de muito mais importante, do que a formalidade de algumas aliterantes metáforas.

Tudo, no Livro, pode não ser simples, mas é, decerto cursivo, e profundo, compreendam-no quem queira. Nada permite, mesmo reconhecendo-se na virtualidade do epigrama, ou do paradoxo, mais do que isso - subestimar a importância elementar, que a casuística do discurso, com que muitos concordam, verdadeiramente encerra.

Tirando as eventuais excepções referidas, o Livro de TAO, como asseveram conspícuos eruditos e académicos do nosso tempo, é mais profundo e subtil do que a agogia, ou sentido, que possa inferir-se de uma perífrase, por mais engenhosa e virtual que esta possa, à primeira vista, parecer, enganando-se, assim, quem classificou o estilo do seu Autor, hesitante e imaginativo (embora sugestivo).

Pode Lao Zi reflectir, como reflecte, sem dúvida, na parte que se possa considerar didáctica dos seus conhecimentos, a lição dos livros antigos, a experiência e os ensinamentos da vida corrente do seu tempo - e possam estas, no fundo, ser, modernamente, discutíveis, de prognose não comprovada - mas em recinto da comunicação, mesmo que por vezes seja tão enigmático que, até hoje, para quem assim o sinta, subsistam dúvidas sobre o significado real de alguns conceitos (os escritos de Lao Zi eram profundos para o seu tempo, e algumas das suas ideias são ainda hoje aplicáveis- id. ib.)- a sua escrita revela um pensador originalíssimo, e um escritor sistemático, curial, e culturalmente bem apetrechado. Nada, tinha, pois, de hesitante, nem de imaginativo, se, com esta proposição, se quiser significar ausência de tino propedêutico, e se se pudesse confirmar aquilo que, por semelhante via, se insinua, de qualquer tendência para a parábola, ou pendor para o circunlóquio, como se a particularidade pudesse relevar uma preocupação de estilo. Não seria o caso.

Nivelar, por isso, o pensamento de LaoZià altura do rifão, ou dito popular, que o Autor não utiliza como valor autónomo e absoluto, porém, sim, como parte sincrónica do desenvolvimento de uma ideia, ou considerar o Tao Te Ching, porque inclua o que possa parecer uma colecção antológica de aforismos, ou compilação avulsa de antigos provérbios chineses, e de alguns virtuais paradoxos - seria levar demasiado longe uma mera redundância, sem ter em conta a intenção, a substância filosófica, a consciência, e a coerência de um entendimento, o peso crítico de uma atitude, o ritmo e a fluência pedagógica de uma comunicação, a unidade textual, ou criatividade literária, propriamente dita, como a introdução da figura do Sábio é disso exemplar paradigma, atributos que apenas poderiam ser artefacto de uma única inteligência, e de uma só mão.

Na realidade, de alguém que excogitava bem acima dos simples e inócuos jogos de palavras. Os ditos epigramas, com efeito, não funcionam, notexto, por si sós, autonomamente. São, pelocontrário, deduções, talvez complexas, peçasindispensáveis e ajustadas, não só à formulação ecurialidade de uma mensagem específica, comoeloquente e significativa expressão de um raciocíniounívoco, em relação ao curso de uma ideia globalbem esquadrinhada, subjacente a uma pedagogia, cujos alicerces sustentaram, pelo tempo fora, ascolunas do edifício de uma cultura original.

Se, como Ren Jiyi (ibid.) proclama acertadamente, Lao Zi reflecte a denotação do seu tempo, esta não caberia, decerto, nos estreitoslimites das sentenças populares. De resto, aquelasexpressões, que, se diga, terem, agora, de certomodo, caído na banalidade, ou, pelo menos, perdidoo significado que outrora as caracterizava, poderiamnão ter, e, decerto não teriam, naqueles tempos, omesmo valor, e o mesmo sentido que, em temporecente, levou a que fossem julgadas não mais doque meros prolóquios paradoxais. Que não eraassim, comprova-se pelo cada vez maior númerode edições, em todo o mundo publicadas, de umlivro, que, em nada se parece com algum manualde provérbios e que se define, clara econcretamente, através de um engenho comunicador de inesperada profundidade e de grande mérito. Alguns críticos (Francis Kenneth, ib. id. por exemplo,) sugerem que a sua comunicação seja "simplista e naїf", ou mesmo, nebulosa e obscura - sendo, não obstante, como é, assim se crê, assinalada por um certo instintolinguístico, não desafeiçoado à estrutura simétrica, que, sem dúvida, dialeticamente, a distingue, e queo analista não refere.

Neste campo, não podem ser subestimadasas características específicas da língua chinesa, como assinala, além de outros não nomeados, oacadémico Chu Ta Kao (Tao Te Ching, Hong Kong,1982) quando põe em causa a pureza e fidedignidadedo texto editado por Wang Pi (226-249) que, inclusivamente terá utilizado caracteres que, àépoca de Lao Zi (setecentos anos antes) ainda nãoexistiam, ou não tinham a mesma significação queviriam a ter ulteriormente. Suspeita-se, porexemplo, entre outras possíveis anomalias, que sejaapócrifa a segunda parte da estrofe 28.

Sumariando causas que houvessem concorrido, na altura, e depois disso, para desvirtuar o texto original, Chu Ta Kao destaca, entre elas, a razão da antiguidade da ortografia caracterológica, motivo pelo qual os étimos se teriam, porventura, adulterado, ou modificado de sentido, a evolução progressiva do sistema de escrita, a incompatibilidade com os processos caligráficos ulteriores, várias alterações, por aproximações, ou distanciamentos onomatopeizados de sinais, osignificado mal lido de caracteres roídos pelaerosão, e, até há bem pouco tempo, a inexistênciade pontuação diacrítica, não sendo, por issouniformes, nem sempre transparentes, ouconsensuais, a sua leitura, e entendimento dasintaxe, e até do próprio textuário. Não é difícilfazer esta demonstração. Mais não bastará, para oefeito, do que transcrever, em paralelo, dois devários entendimentos, aliás, modernos, de uma sóestância, de todas as edições submetidas à análise. De resto, só muito raramente se encontraramversões que, entre si, se conciliem, isto é, que sejamidênticas, nos termos, e até, porventura, por viadisso, na consensualidade dos princípiosformulados. Vejam-se os dois exemplos do Cap. IV, apresentados em inglês para mais facilmente se confirmar o que ficou dito, e se não pense quehouve estropiamento premeditado da tradução dosversículos em contraste:

Primeira versão: Tao, who put in use for its hollowness is not likely to be filled / In its profundity it seems to be the origin of all things / Blunt all that is sharp / Cut all that is divisible / Blur all that is brilliant / Mix with all that is humble as dust/In its depth it seems ever to remain /I donot know whose offspring it is / But looks like thepredecessor of Nature. Segunda versão:

The Tao pours everything into life / It is a cornucopia that never runs dry/In the deep source of everything / It is nothing and yet in everything / It smooth round sharpness /And untangle the knots /It glows like the lamp / That draws the moth / Tao exists Tao is / But where it came from I do not know / It has been shaping things / From before the first Being/ From before the beginning of Time. Neste livro, em Português, avançou-secom a seguinte versão:

TAO corresponde à Não-Existência / Nãotem substância não é activo/ Por inacção/ Porém, tudo em si é gerado/ E tudo em si é transformado/Alisa-se o que é escarpado/ Divide-se o que édivisível/ O que é brilhante esmaece/ Difuso comoa poeira/ É anamórfico/ Por isso não se vê/ Não sesabe verdadeiramente/ O que seja/ Mas tem-se poranterior à criação do universo.

Outro exemplo da mesma natureza, emboraem díspar situação, é suscitado pelo Cap. 56, já aqui, antes, mencionado. É de ver.

Não tem sido estas as únicas, e as maioresdas dissonâncias postas em evidência nas paráfrasesextraídas do livro de Lao Zi. Outra bem grande, ebastante significativa resulta das diversas versões(ou traduções) diferenciadas que têm sidocometidas em relação ao vetusto texto original. Haverá, nesta sorte de desinteligências, a revelação, até hoje, crê-se, não descartada, do famoso sinólogoJames Legge, que no prefácio do seu Tao Te Ching, observa que os caracteres da escrita chinesa " nãosão representações de palavras, mas símbolos deideias... A sua combinação, na composição, não éa representação do que um autor diz, mas do queele pensa. Será em vão, pois, para um tradutor tentarelaborar uma versão literal..."

O mesmo não será o que pensa o professorda Universidade de Beijing, Dr. Yun Yunzhong(citado, em Português, por Yao Jingming) quandoafirma que "na tradução da poesia (chinesa) devempreservar-se os valores semânticos, tonais, eestilísticos, de acordo com um modelo tolerado".

Referindo, e transcrevendo Popovic, na obra de Susan Bassenet, "Translation Studies", Londres e N. York, 1991 - também citada por Yao Jing Ming (v. ad.) lê-se que, pelo contrário, "a situação dos elementos linguísticos do original não pode ser reposta adequadamente nos termos estrutural, linear, funcional ou semântico, na consequência da falta de denotação ou de conotação" e a situação "onde a relação da expressão de sentido, ou seja, a relação entre o sujeito criador e a expressão linguística no original não encontra adequada expressão linguística na tradução." Observa-se a mesma opinião numa citação encontrada no livro de George Mounuin (Os Problemas Teóricos da Tradução - S. Paulo s. d. - id. ib) -de Benveniste, onde se escreve: "É discutível que, sujeito às exigências dos métodos científicos, o pensamento adopte em toda a parte, os mesmos comportamentos, seja qual for a língua em que (alguém) se disponha a escrever a experiência. Nesse sentido (o pensamento) torna-se independente, não da língua (de expressão) mas sim das suas estruturas linguísticas particulares. É perfeitamentepossível que o pensamento chinês tenhainventado categorias específicas, como o Tao eo Yang, continuando, não obstante, a ser capazde assimilar conceitos da dialéctica materialista, ou da mecânica quântica, sem que a estruturada língua constitua um obstáculo".

Nesta ordem de ideias navegou GeorgeSteiner, em "Antígonas" ao afirmar que "Nenhumatradução é capaz de transpor para outra língua omontante completo dos implícitos, das tonalidades, das conotações, das inflexões miméticas, e dasarticulações com o contexto que declaram einteriorizam os sentidos. Alguma coisa se perderá, ou terá sido apagada; alguma coisa terá sidoacrescentada pela tendência que leva à paráfrase; haverá ordens de grandeza subtis, mas decisivas, cuja escala terá sido alterada; existirão transposições dos modelos fundamentais e dos ritmos mais profundamente entranhados, que, inapreensíveis pela análise, fazem de cada língua, e dos hábitos verbais de cada indivíduo, um "dialecto", um aspecto da comunicação. A palavra que se exprime, ou não chega a ser dita, ou é tão consubstancial às pulsações de cada ser humano, e faz, a tal ponto, parte do contexto vivo da existência humana comum, como o facto de respirarmos. Nenhum homem pode repetir perfeitamente, substituir pela sua, a respiração de outro homem". (ibid.)

O Autor já aqui citado, Dr. Gu Zhengkun, da Universidade de Beijing, sobre esta delicadamatéria, escreveu, com a autoridade do seuprestígio, e o peso da sua sabedoria: " Umtrabalho filosófico, como o Tao Te Ching exige, naturalmente, da parte do tradutor, um genuínosenso de responsabilidade; espera-se que sejamuito cuidadoso em cada linha (de cadacapítulo) de modo a que o significado original, e a sua essência não sejam minimamentedistorcidos. Muitos tradutores têm a tendênciaa condescenderem consigo próprios, privilegiando mais a interpretação do que atradução, por isso, ocasionalmente, sobrepõemas suas ideias às do Autor que seria supostotraduzirem".

Espera-se bem que não seja este o defeitomenor desta versão...

Incidentemente, os textos do Tao Te Chingsão apoiados em símbolos fonéticos chineses, favorecendo-se assim os leitores estrangeiros alerem os textos no original. (No entanto) apronunciação não significa que a leitura estejarigorosamente de acordo com um original, queexiste desde há 2000 anos, porque os sons antigosestão, sem dúvida, desactualizados em relaçãoaos tempos actuais".

Não apenas os sons - diga-se - masigualmente o sentido...

ⅩⅤ

Em seara desta natureza, e diante dosargumentos, ou teses deduzidas, colherá, talvez, e talvez não seja apenas pela diferença, a opinião de Witter Bynner (The Way of Life According to Lao Tzu - EUA 1944, citado por Ursula K. Le Guin (Tao Te Ching - A Book About the Way and the Power of the Way - Por sinal, um Livro bem bonito -Shambala Books, Boston & London, 1998): "Éimpossível proceder a uma tradução, sem (a fazerpreceder de uma) interpretação. A maioria dastraduções foi baseada na interpretação decomentadores, mas cada um, em particular, faz ainterpretação a partir de si mesmo (conforme a suasensibilidade, ou a sua postura diante da criaçãoque interpreta) por isso, a tradução pode estar muitoperto do texto original, mesmo sem se conhecer (ovalor das) palavras" (do texto).

Numa magnífica dissertação, (para provasde doutoramento) ainda não publicada, sobre "APoesia Clássica Chinesa - Uma leitura detraduções portuguesas" Macau 1998), o citadoemérito poeta chinês (em língua chinesa e emlíngua portuguesa) Yao Jing Ming (Manuel Yao)docente na Universidade de Macau, abordasuperiormente, a questão de uma possívelafinidade técnica da língua chinesa com aportuguesa, onde a "elipse do sujeito pessoal, ea ausência da conjugação verbal da poesiachinesa, podem provocar a indeterminação dosujeito e do tempo, conferindo ao poemaambiguidades que outra língua é forçada aexplicar", ou seja, por exemplo, "a fluidezmorfológica do chinês (que) permite a umapalavra funcionar como substantivo, adjectivo ouverbo, segundo o contexto, ou a necessidadedo poeta" - (ou a existência de um sujeito nulo, que permite ao sujeito da oração poder não serexplicitamente expresso por elemento nominal, sendo, por isso possível conseguir-se umaequivalência gramatical).

Veja-se como, numa soberbademonstração desta virtualidade, Yaoconcretiza a situação - primeiramente natradução literal dos caracteres chineses, de umpoema original, "Aurora da Primavera", deMen Ha oran, e depois, numa versão afeiçoada, segundo as regras semasiológicas, esintácticas, de uma língua estrangeira (no casovertente, a portuguesa):

Primavera/ sono / não / sentir / aurora/

Lado/ lado / ouvir / cantar / pássaro/

Noite/ vir/ vento/ chuva / som /

Flor/ cair/ saber/ quanto/

A composição, em perfeito português, deManuel Yao, apresenta esta qualidade:

A aurora não acorda o sono da primavera

O canto dos pássaros ouve-se em toda a volta

A noite finda: sussurro do vento e da chuva

Tantas flores caídas, quem sabe quantas

Em estudo sobre os Cinco Clássicos Chineses, Spurgeon Medhurst (ib.) fará notar que não há apenas que interpretar os caracteres utilizados pelo escritor - mas sim avaliar o eventual resultado de um interlúdio, melhor, um frente-a-frente de ordem mental. (seeing of mind to mind). Conscientemente, ou não, esta realidade, mais do que a opinião sobre ela expressa de Legge, e dos outros referenciados - abriu as portas à imaginação, e, porque não dizê-lo, à sabedoria, mesmo ao talento? - de tantos que trabalharam, directa ou indirectamente, sobre o original de Lao Zi, sem, contudo, com isso, terem contribuído muito para o desanuviamento da obra, sequer ao menos, para fixar um texto padrão. Mesmo, entre académicos chineses isto tem sido constatado, sendo raro ver-se uma interpretação que, nos respectivos termos, como foi já assinalado, seja idêntica a outra. É isso o que podemos constatar, por exemplo, naversão do capítulo 71, um entre tantos mais, doLivro de Lao Zi, conforme as interpretações dereputados académicos chineses. No Livro Tao TeChing já antes referenciado, traduzido porMan-Ho Kwok (com Martin Palmer e Jay Ramsay), a interpretação que se faz é esta:

Aqueles que sabem fingem não saber / Eaqueles que não (sabem) fingem (que sabem) / Istoé o que significa ser um defeito/. Quem ficaatormentado com isto acabará por ganhar /Osábio fica. Fica atormentado com todos osdefeitos / Fica atormentado por ficaratormentado. (Por isso) Fica bem/.

Quem for fluente no inglês ficará com umamelhor ideia da versão do texto traduzido:

Those who know seem not to know / And those who don't pretend they do - This is what it means to be flawed./If you're sick at this, then you'll win through/ The sage is. He is sick of alifaults. / He is sick ofbeing sick. He is well.

A interpretação adoptada nesta versão, é aseguinte

"Melhor é saber que se não sabe/ É um erro pretender saber / Aquilo que de facto se não sabe / Reconhecer o erro como erro / Evita cometer umerro/ O sábio não erra / Porque reconhece o erro, como erro / Pode por isso evitar o erro".

Em alguns casos, mesmo que arredondada, a tradução parece perfeita, ou razoável, sem ferir, gravemente, o sentido do texto original; mas emoutros, têm-se constatado que algumas (ou muitas)estâncias, deixadas ao livre critério de tradutoresmenos competentes, ou pouco escrupulosos, constituem gritantes abusos de absurdidade.

Possível exemplo de uma situação tergirversiva desta natureza poderá ser encontrado numa versão recente de Autor nosso contemporâneo, por acaso, académico de grande qualidade e prestígio, portanto, nem incompetente, nem inescrupuloso, longe disso - já neste Livro citado, em circunstâncias, todavia, de merecido e oportuno louvor. Respeita o caso à classificação de TAO. Lao Zi deixou, na sua Obra, uma esclarecida e bastante clara concepção, não uma definição, de um TAO, como simples expressão referencial, invólucro de coisa nenhuma, sem limites, sem ângulos, portanto, sem forma, e sem conteúdo, onde não caberiam sentimentos, e/ou reacções, voluntárias ou involuntárias. A tradução mencionada, (Cap-2) porém, descreve Tao como pressuposto ser, (prosopopeicamente) "não interesseiro nemegoísta, mas generoso e misericordioso(graceful)". Será um Tao (Céus, ou Tíen) àmaneira de Confúcio, e dos seus discípulos, masnão, seguramente, de Lao Zi. Os Céus, proclamava, com efeito, Confúcio, "premiavama Virtude, através de algumas auspiciosasmanifestações, como safras (agrícolas)prósperas e pacíficas, enquanto, por outro lado, a sua fúria, desencadeada, ou excitada pelaconduta (diabólica) do imperador, mostrava-se por meio de avisos e catástrofes, por exemplo, os eclipses do sol, cheias (dos rios), secas e terramotos, e pragas de gafanhotos. A derradeira punição de um mau governante constituía em retirar-se-lhe a protecção divina ao mandato dos Céus, o que desprivilegiava o imperador, vencido por rivais, e privado do trono. TAO, de Lao Zi, como já se viu, pelo contrário, não privilegiavanada e ninguém, não era justiceiro, não era bom, nem era mau, não era Nada, senão um Vazio.

Entretanto, observe-se, na língua inglesa, aversão do autor recorrido.

The Tao is neither selfish nor proud / TheTao is generous and graceful in what it does /Without ever claiming any merit.

Quando uma tradução deixa de sê-lo, e passaa ser um circunlóquio, não existem palavras bonitas, poéticas, que a redimam.

Do mesmo jeito, embora de natureza diversificada, constituirá a amostra que se segue, uma, apenas, entre oito versões, de outros tantos autores, todas não totalmente inconciliáveis, quese distinguem mais per uma verdadeiradissemelhança lexical, do que pela consonância desentido - já que não pode deixar de ser dito que aideia axial não seja a mesma. Mas a demonstraçãoé expressiva. No caso seleccionado, o homem podetransformar-se na ravina (ou na via) do mundo, se, e quando, assumir as características Yin, oufemininas. Vejam-se os primeiros versículos docapítulo mencionado, sobre cuja arquitecturamorfológica dos sinais se representam, efectivamente, não somente o significadodivergente de uma ideia, como, igualmente, a leituradiferenciada dos caracteres, conforme osrespectivos autores: (neste livro, naturalmentereferenciados): Cap. 28

Wilhelm: Whosoever know his maleness/And guards his femaleness

S. Medhurst: One conscious of virility/maintaining muliebrity

Gu Zhengkun: Though knowing what ismasculine/You are ready to play the role of feminineJohn C. H. Wu: Know the masculine/Keep to theFeminine

Henry Wei: He, who knows the male/Andyet holds on the female

Ren Jiyu: He, who knows the masculine/Butkeeps on the feminine

D. C. Lau: Know the male/ But keep the roleof the Female

R. B. Blakney: Be aware of your masculinenature/But by keeping the feminine way

Nesta matéria, entretanto, modernamente, não se deveria pensar, à partida, em preconceitos, ou incompatibilidades, quando é sabido que aprópria natureza, em situações extremas, contorna, ou contraria a normalidade dos processos evolutivospara proteger, ou assegurar, a perpetuação de umaespécie em risco, ou, como assevera Lao Zi, promovendo a transformação do Yin em Yang, ou vice-versa. No caso em apreço, como em váriosoutros, que possam ser chamados à puridade, nãoserá, propriamente a divergência dos termos quedesafia a curiosidade do leitor, mas a relação deuma metamorfose, de uma ordem preestabelecidade fenómenos, inconciliável com a ciênciaepistemológica das coisas. De uma forma, ou deoutra, a Existência fundou-se na Não-Existência, as dez mil coisas obedecem inevitavelmente auma reversão cíclica, alternadamente Yin e Yang- que constituirá o eixo das transformações damatéria, em sucessão periódica, conforme asdenotadas leis da natureza.

Na obra já aqui citada, de Martin Palmer (et al.) o pensamento de Lao Zi é apresentado de uma forma mais subtil, e talvez, não menos evasiva, por não se recorrer à correspondênciado valor lexical dos termos fundamentaisenvolvidos, isto é, em vez de os trazertraduzidos, por masculino-feminino, adopta arepresentação dos próprios vocábulos chinesesdo Yin e do Yang, que se revestem de umsentido muito mais lato do que meramente o dadicotomia feminino/masculino. Talvez estaconstitua, na verdade, uma melhor solução, paraultrapassar um adorno obnóxio. Os dois versossão lidos do seguinte modo:

Understand the thrust of the Yang

But be more like the Yin inyour being

Ou seja:

Compreendendo-se o impulso do Yang

Mas assumindo-se o Yin no seucomportamento

Henry Wei (The Guideline of Lao Tzu(Illinois, 1988) sobre este particular, produziu umaobservação, provavelmente, mais curiosa do quejudiciosa: "Os homens, em geral - escreveu - sãodemasiado orgulhosos do seu estatuto demasculinidade para desempenharem um papelfeminino".

A análise da questão não pode, pois, naturalmente, circunscrever-se aos parâmetrosdicotómicos homem-mulher, já que o conceito doYin-Yang abarca generalidades, dentro das quaiso masculino e o feminino nada mais significamdo que meros componentes, ainda que, indiscutivelmente, referenciais.

Um homem - ensinava-se no Livro das Mutações, e, depois, no Tao Te Ching - era predominantemente Yang, mas não totalmente Yang; e a mulher, sendo preponderantemente mulher, não seria totalmente Yin. Na verdade, a ideia transmitida era que o dualismo Yin e o Yang era inter-relativo. Daqui que Palmer preferisse, e bem, a ideia de adoptar, em vez de uma tradução específica, os próprios termos originais de língua chinesa. De resto, como se reitera, amatéria era relativa.

Em relação à mulher e aos filhos, o homem éYang; em relação ao imperador, ou governante, éYin. O governante é Yang em relação aos seussúbditos, mas é Yin em relação ao imperador. Nofundo o que se pretendia pôr em evidência, não seriaa antinomia natural da função homem-mulher, quando a condição masculina se caracterizava porum comportamento reflexo antitético relativamenteà condição da mulher, a qual, por sua vez, pela suaordenação fisiológica, e fisionomia interior, decontenção, passividade, e sentimento maternal, assume, naturalmente, o papel de via, ou ravina dahumanidade, ou de Mãe da natureza. Mas sim atransformação curial de dois princípios, virtualmente, opostos e inconciliáveis, que circunstâncias quiçáavulsas, propiciatórias, se possam, eventualmente, retroinverter. Lao Zi postulava que sendo todas ascoisas (ou as dez mil coisas) independentes entre si, apesar disso, não se compreendiam como isoladas, ou não correlacionadas, umas das outras, a beleza ea fealdade, o fácil e o difícil, o longo e o curto, o altoe o baixo, a frente e a rectaguarda, a existência e a não-existência, portanto, a mulher e o homem, o Yine o Yang, etc. "Todas constituíam uma unidadeporque cada uma não poderia existir sem a suacontrapartida natural." (ibid.)

ⅩⅤⅠ

À argúcia de alguns críticos não tem escapadoa prioridade (espontânea, ou premeditada?) que LaoZi parece ter outorgado ao papel da mulher (ou aYin, e por isso se lhe tem chamado Yinismo)eventualmente uma reminiscência da sociedadeprimitiva matriarcal, de que existiria ainda memóriano dealbar da dinastia Shang.

O conceito deste primado da mulher virtualiza-se, igualmente, na dialéctica ocidental, desde os mais remotos tempos. Uma legenda gravada no granito de um pilar da citada igreja medieval de Rosslyn (Escócia) dá precedência à mulher, em relação ao vinho, e aos reis, conforme se atesta numa questão posta pelo rei da Pérsia a Zorobodel. (Esras, quinto livro da Bíblia, séc. VI a. e. a. portanto obra coeva do Tao Te Ching) sobrequal seria maior, se a força do vinho, se a força dorei, ou se a força da mulher. Eis a inscrição deRosslyn: "O vinho tem muita força, o rei tem aindamais força, e a mulher é ainda mais forte. Mas aVerdade está acima de tudo".

Se, como se diz, a Igreja (maçónica) deRosslyn é uma réplica do templo de Salomão, mandado erigir por Zorobodel, este primado damulher na civilização ocidental remonta, pelomenos, à mesma época em que Lao Zi prestavaconsideração à prioridade natural da origem dosSeres do universo.

Eliminados, à bolina de uma lógicaelementar, anacronismos e discrepâncias eventuais- várias e diversificadas interpretações (ecomparações) - têm sido tecidas à volta do Tao TeChing - algumas delas anagógicas, e de não poucoimpressiva elaboração.

Não têm sido poucos, na realidade, ospensadores ocidentais que se vêm esforçando emtentativas de encontrar raizes comuns entre afilosofia taoista, e os códices teosóficos da culturaocidental, nomeadamente a dos gregos, Pitágoras, Sócrates e Platão, de Thales, Solon, e até dos de outras, latitudes, como Zoroastro da Babilónia, e até dos profetas hebraicos, à conta de quem se diz terem sido redigidos os primeiros textos bíblicos. Estabeleceram-se, com efeito, afinidades implícitas, sem deixarem de ser, logicamente, imperfeitas, com Sócrates e Platão, coevos de Lao Zi!) eliminados, assim, eventuais anacronismos, sem se explicar, liminarmente, como seria possível a intercomunicação entre os gregos e um pensador do fundo da China, uns e outro falando e escrevendo por idiomas tão diferentes, confrontados com assimétricas realidades culturais. E é Lao Zi tomado por destemperado sociniamista, relativamente à catequese cristã, como um precursor de Paulo de Tarso; e de Jaime, (ou Tiago) irmão de Jesus, e chefe da Igreja de Jerusalém, por émulo deConfúcio - quando a aproximação mais coerentecom o que se sabe de Jaime e de Paulo, sugeririaexactamente o contrário. Adiante.

Há ainda, por exemplo, quem queira ver como um desígnio, em Tau, ou Taw, a derradeira letra, que dá ulterior seguimento à primeira, à que vem a seguir, do alfabeto hebraico, como símbolo de crucial transição de um velho para um novo ciclo vital - e semelhanças virtuais a reminiscências do paradigma taoista, no papel de Mãe de todas as coisas, assistente ao começo e ao fim de tudo e assim, ao recomeço (ou reversão, com o sentido de, depois de se chegar ao fim, se voltar ao princípio). Fala-se, inclusivamente, num triplo Tau (e já se verá, mais adiante, como o número três, e as tríades surgem na dialéctica teosófica) apropósito de duas colunas (Boaz e Joaquim) damencionada igreja escocesa medieval, construída, conforme modelo original do Templo de Jerusalémna segunda metade do século XV (1550-1590), associada(?) conforme o Grau do Arco RealSagrado, (da Maçonaria) ao Selo de Salomão (ouEstrela de David) - em que cada braço terá umsignificado esotérico.

É difícil ultrapassar esta situação, afinal, muito mais dialéctica, do que ética, quando nela seinscrevem preconcebidas referências, cujo únicomérito é serem utilizadas por singela crença, semespírito conflitual que se veja, e, provavelmente, sem nenhuma intenção de defraudar a verdade, masapenas a presunção de uma originalidade, ou, simplesmente, arredondar um discurso. A lógica das coisas, a sequência dos factos, a cronologia dos eventos, a natureza das pessoas, e as longas distâncias que as separavam umas das outras, a impossibilidade de transmissão, ou troca de comunicações, ou de contactos - não permitem comparações desta ordem. Haverá coincidências, talvez, expressivas - mesmo assim, mais pela rama do que pela raiz, ou, como se diz no Livro de Tao, mais pelas flores e menos pelos frutos. Tudo isto éfácil de escrever, porque seria difícil entender osfactos de outra maneira. A verdade, porém, é quepersistem, e fogem à análise da lógica, algumascoincidências estranhas, que não deixam, emborasubjectivamente, de levantar outras tantasinterrogações, como as que foram já vistas, e asque, a seguir, vão ver-se.

O problema da concepção de uma tríade será, de todos, talvez dos mais expressivos, sem ser dasmais judiciosos. Lao Zi postulara a tese de que foraem Tao que emergira o UM, a Unidade; da Unidadenasceu uma Dualidade, e desta saiu a Trindade.

O tema parece ser mais complexo, e teruma natureza que não se distingue pelatransparência. No livro já antes citado, Hua Hu, pode ler-se o seguinte trecho, dizem que deduzidode uma ideia de Lao Zi:

"O Céu é um nome para uma das Três Realidades do Absoluto (Pureza). Existiria, portanto, uma tríade, dentro da Tríade do Universo. A Terra, e o Homem são as outras partes da grandeTríade, e assim cada uma delas é tríade dentro efora de si próprias.

Nas Três Categorias Principais do Universo, o Reino da Grande Pureza (Absoluto) equivalente ao Tai Ching, situa-se onde a Terra produtora e as dez mil (miríades) coisas residem. É esta a esferainferior da Natureza.

O Reino da Alta Pureza (Shan Ching) ondeo Espírito Subtil reside, situa-se na esfera do meio(no centro do espaço)

E o Reino da Pureza Integral (Ultimate) YuChing - é a residência dos imortais, seres divinos, e da mais elevada energia do Universo.

Todas estas três esferas são geradas, edecorrentes do Tai Chi, a subtil "origem divina", oPrincípio de tudo (de todas as coisas).

Por seu turno, Zoroastro (c. 1000) viria a dizer que o número Três reinava sobre todo o universo, e que o Mónada (correspondente ao tai-chi da filosofia chinesa) constituía o seu princípio fundamental. Conforme notou Blackney (ib.) existe uma passagem no Livro de Zhuang Zi adaptável à ideia-base do capitulo 42 do Livro de Tao:"O mundo e eu temos uma origem comum, e todas as criaturas e eu somos todos Um. Sendo Um, a nossa unidade pode ser, ou não ser, expressa. O Um expresso, produz o Dois; e o Dois com Um (não expresso) produz o Três."

Eis uma tríade: o mundo das coisas, o que sobre elas pode ser dito, e o que não pode ser dito"

Um dos temas favoritos do retrocitado Plotino do século III-II, era a comparação que fazia do UM (Unidade) com o ponto no centro do círculo, que propiciaria o aparecimento de novos círculos, derivados do primeiro. Como se fossem círculos sucessivos provocados na água estagnada pelo arremesso de uma pedra. Como no mito gnóstico, quanto mais o círculo se ampliava, mais indistinto se tornava. Diga-se, aliás, que o círculo com um ponto no centro, como já foi dito, consta igualmente do imaginário esotérico chinês.

Questão interessante, será a que poderia ter a ver este circulo e um ponto no meio, identificado pela cosmologia antiga chinesa, com os Céus, retirando-se daí uma ideia do conhecimento da esfericidade da Terra. Sobre o No Cap.25, existem uma ou mais versões onde se diz que Tao (?) rodopiava sobre si mesmo, o que reiteraria a sugestão. Recorde-se que o problema da esfericidade da Terra começou a ser considerado no Ocidente, não antes do séc. XIV.

Plotino considerava as primeiras duas emanações dimanadas do UM como divinas, já que delas advinha a possibilidade de participarem na vida de Deus. Juntamente com UM, (ou a partir daí) formava-se uma tríade de divindades. O Espírito constituía a primeira emanação (o que correspondia a um pensamento de Platão (427-346). Conforme o Simpósio, para Platão uma forma divina não existia fora do próprio Ser, e o universo obedecia a uma regra essencialmente racional (passim): a Simplicidade de UM tornava-se inteligível, e aqui a compreensão era intuitiva e imediata. A alma (psique) emanava do Espírito, assim como o Espírito emanava do UM. Portanto, a trindade, segundo Plotino, era constituída por Um, pelo Espírito e pela Alma. Da conjunção dos Três, emergia a Vida. (Passim)

A partir daqui, e tendo como indicador virtual a teodiceia cristã do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ulterior, no tempo, em mais de oitocentos anos, ao Livro de Tao, praticamente instituída, como foi, no concilio dito ecuménico de Niceia (O credo de Niceia) em 325, confirmado em Constantinopla em 381 - multiplicaram-se as presunções, e considerações sobre as tríplices afinidades, que chegariam, por excesso, à arte do silogismo hegeliano. "A concepção da trindade é universal (C. Spurgeon Medhurst) - relevar-se-ia, segundo este autor, na característica trilógica do desenvolvimento celular: o nascimento da célula, a especialização da célula, e a multiplicação da célula".

E o rev. John Chalmers, citado pelo mesmo, avançaria com a opinião de que "há uma trindade observável em todas as manifestações de Tao, correspondentes aos três principais sentidos (endógenos) do homem, a audição, a visão e o olfacto; e aos três (exógenos), o som, a cor e a forma. Segundo o anotador, os termos chineses desta tricotomia seriam o Yin, o Yang e o Hwo-hi (o sopro, ou fluido vital, ou espírito).

Mesmo Richard Wilhelm não conseguiria, igualmente, escapar ao fascínio da parábola. Relacionando, de certo modo, a concepção trinitária cristã com o ideário laociano, não omite o quarto elemento da exegese canónica, o anti-santo, satanás, concluindo, assim, que "ideia semelhante poderá ser encontrada na mais recente dialéctica filosófica de Hegel, da tese, antítese e síntese, sendo que esta voltaria, de novo, a ser tese, na próxima série" (de transformações).

A necessidade, e a frequência do recurso a este género de expedientes, por afinidades, ou aproximações meramente perifrásticas, entre uma primordial filosofia chinesa e a cultura ocidental, que não poucos académicos chineses, alguns tocados pelo cristianismo, perfilham, tem causado alguma perplexidade, quando a realidade parece, tanto em termos proto-científicos (se houver lugar para esta proposição), como filosófico-religiosos - não ser assim tão óbvia.

Pode ser que a Ciência venha, um dia, a caucionar esta tese - o que a Filosofia, até hoje, em boa verdade, não adregou de conseguir.

ⅩⅦ

A certo passo dos Comentários atrás referenciados, Wilhelm põe em clara evidência aquilo que, à falta de melhor definição, possa designar-se por "espírito revolucionário" de Lao Zi, ideia ulteriormente recuperada por outros analistas, por exemplo, Frances G. Kenneth (ib.) - que afirma que "a filosofia de Lao Zi é, de certo modo, revolucionária... porque despreza o passado.

Por bem mais do que isso, terá sido, e não de certo modo, deve acrescentar-se. Na circunstância, Wilhelm é muito mais abrangente, sem todavia, ser mais rigoroso. O que lhe serviu, sem dúvidas, o Livro das Mutações, para a elaboração de uma evidente matéria ontológica, foi, igualmente, sem qualquer espécie de dúvidas, o Livro das Odes, para Lao Zi claramente definir a sua posição perante as rivalidades feudalistas, e confrontações políticas, e desigualdades sociais que ficaram a marcar o final do período Primavera/Outono da dinastia Zhou, o tempo da sua vivência, e se prolongariam no período seguinte, chamado dos Estados Guerreiros. (403-221 a. e. a.)

Era no Livro das Odes, portanto, anterior, já, de dois mil anos, a Lao Zi, quando as queixas tomavam um ar reivindicativo em relação às desigualdades que agravavam a miséria dos pobres, não se isentando os Céus, ou Deus (T'ien), de parcialidade contra os desfavorecidos - que o Autor do Tao Te Ching lia recriminações e lamentos desta ordem:

De densa formação das nuvens / Vai caindo uma chuva miudinha / Oh! Caísse ela primeiro / nas terras dos trabalhadores / E só depois / nos campos dos senhores!

"Entre as suas mais radicais observações - reflecte o antes citado escritor alemão - salientam-se os capítulos do Tao Te Ching sobre as condições sociais e políticas suas contemporâneas, em relação às quais Lao Zi adoptou a corrente revolucionária dos séculos precedentes. As mudanças sociais (provocadas) pela destruição do sistema esclavagista ocorreram, ao mesmo tempo que o pensamento de Lao Zi se sensibilizava para esta sorte de problemas, nos finais do Período da Primavera/Outono. O sistema de impostos marcou a transição para o regime feudal, e uma nova estrutura de poder coincidiu com a emergência de uma classe de gente rica (mas não aristocrática). E Lao Zi escrevia:

Se um povo passa fome / O motivo está na excessiva tributação / com que os governantes o sobrecarregam / Eis a razão porque o povo está na miséria / Quando o povo se toma difícil de governar / A razão está na excessiva interferência / dos governantes na sua vida / (vendo a corte e os cortesão viveram na abundância e no luxo) Eis a razão porque o povo se toma difícil de governar / O povo encara a ideia da morte sem temor / quando lhe é penosa a sobrevivência. (Cap. 75).

Noutro capítulo do seu Livro assinala ainda:

"... quando a corte é corrupta, os campos são abandonados, os celeiros ficam vazios, os cortesãos andam vestidos com trajes garridos, e espadas ornamentadas, ostentando adereços extravagantes, saciam-se com comidas finas, e vinhos perfumados. Estes, podem ser considerados ladrões do Reino". (Cap.53)

Blackney (ib.) comenta, desta maneira, o sentido do capítulo referido: "Não importa a minha ignorância, pelo menos, é melhor do que ter de abandonar TAO; contudo, as pessoas, especialmente aquelas que vivem na corte, preferem os caminhos da sensualidade. Entretanto, o povo. passa fome. Explorado pela nobreza, não têm forças para amanhar as suas terras. E assim o povo diz que o rei está rodeado de ladrões.

Confúcio seria igualmente contra a violência sobre os pobres (que, todavia, não deviam deixar de reverenciar os ricos) não concordava com excessos de ambição, nem com demasiada interferência na vida privada de cada um, desde que as regras da compostura social não fossem desprezadas. Na parenética, em que seria exímio, adoptava, igualmente, a dicotomia "conhecer (ou tomar consciência daquilo que se sabe, e conhecer (ou ter consciência) daquilo que se não sabe - Analectos - ii 17) o que coincidia também, mais ou menos, com o postulado do Cap. 7 do Tao Te Ching. Esta relação dicotómica, principalmente, os seus termos, funciona, com efeito, na mesma direcção da ideia básica de Lao Zi, do saber e do não-saber, mais fundamente no conceito global da teoria dos opostos, que o Velho Mestre codificou como charneira da sua obra original. Utilizava o Venerável, os mesmos termos de Tao e de Te dos antigos livros, mas como se viu, com significados e intenções diferenciadas conforme os entendia Lao Zi.

E isso era tudo.

No mais, na dialéctica, nas normas de reverência e respeito que os homens inferiores deviam aos homens superiores, as divergências eram profundas e inconciliáveis Para Confúcio, a organização da sociedade assentava numa base hierárquica de corporações (descritas no Livro da Suprema Sabedoria) - pessoa, família, estado e humanidade.

Lao Zi acrescentava à lista a comunidade rural: pessoa, família, comunidade rural, estado e humanidade. Enquanto Confúcio tinha por dogma, e cultivava a ortodoxia da vontade do Céu, propagada através dos bem-nascidos, a quem, por isso, "deviam os escravos respeito e submissão" - Lao Zi "repudiava, (ou não aceitava) a teoria de um deus, um céu, ou uma autoridade suprema, popularizada desde a dinastia Xang (1500 a 1100 a. e. a.). Confúcio concedia a primazia de todas as coisas ao Céu, do qual dependiam a Terra, e tudo o que nela ordenadamente vivesse. Foi sempre a sua ideia, sempre foi esse o seu comportamento e postura. Nos Analectos vem descrito como ele se sentia: Aos quinze anos, o meu coração estava virado para a virtude (moral)Aos trinta estava pacificado. Aos quarenta, não tinha dúvidas. Aos cinquenta, conhecia o Decreto dos Céus. Aos sessenta, já obedecia ao Decreto dos Céus. Aos setenta, posso seguir os ditamos do meu pensamento, sem ultrapassar a barreira (dos cerimoniais).

Para Lao Zi, o Céu (Tien) não passava de uma designação, que nada tinha a ver com a origem das dez mil coisas, seria apenas, quando muito, um espaço (natural) formado, como tudo, a partir do Nada, do Vazio - de Tao, como o definiu Ren Jiyu.

Na edição portuguesa de An Outline of China History, já aqui referida, observa-se judiciosamente que Confúcio preconizava que se respeitassem as hierarquias, e os cargos nobiliárquicos, que o rei dispusesse de uma autoridade absoluta, tal como um chefe de família a tivesse em sua casa. Por outras palavras, "que um rei fosse rei, que um ministro fosse ministro, que um pai fosse um pai, e um filho que fosse um filho"

Com o seu sistema, Confúcio estabelece uma autêntica escala de classes por processos discriminatórios, desvitaliza a crítica, domestica o ímpeto. Refreia e generaliza a atitude, hierarquiza o espírito, esteriliza a consciência, morigera e ritualiza os costumes, moraliza o amoralismo Por sua influência, directa ou indirecta, feudaliza-se, na granja política, o comportamento social, segregam-se e discriminam-se as pessoas por classes inimiscigenáveis. Passa a haver homens superiores e homens inferiores, impõe-se o rigor da ordem e da disciplina, a obediência passiva, a reverência ao imperador, ao ministro, ao terratenente, ao dono-de-escravos, ao pai e ao marido. Era a génese da Piedade Filial, com os seus deveres e cominações, passados ao papel em dezoito capítulos, ou regras, por um dos seus prosélitos, Tsang Tsen, no século IV. Com isso ficaram estabelecidos o estatuto da pobreza, a religião do dever, e a grilheta da submissão. (J. C. Reis, ibid.)

As regras da Piedade Filial, mais cominatórias do que reguladoras, eram as seguintes, pela ordem: Doutrina do Dever Filial, o Dever da Piedade Filial do Imperador, o Dever da Piedade Filial dos Senhores Feudais, o Dever da Piedade Filial dos Literatos, o Dever da Piedade Filial dos Funcionários, o Dever da Piedade Filial do Povo, as Três Faculdades, O Dever da Piedade Filial do Governo, o Dever da Piedade Filial dos Sábios, o Dever da Piedade Filial dos Filhos, as Cinco Punições, o Princípio Fundamental, a Suprema Virtude, o Supremo Prestígio, Cumprimento dos Deveres Filiais, Recompensas e Castigos, Lealdade de Servir, Comportamento na morte do Pai.

O Código das Cinco Punições, no verbo de Confúcio, abrangia três mil faltas, e "entre estas não existia crime mais grave do que o da ofensa da Piedade Filial. Aqueles que desobedecem ao seu rei, ofendem os deveres para com os seus superiores; e aqueles que desprezam as obras dos sábios, ofendem as leis. Mas os que ofendem os princípios da Piedade Filial, desonram os seus próprios pais. Aqueles que cometerem estas faltas, prejudicarão gravemente as suas vidas.

XVIII

Numa das suas paréneses sobre a doutrina que professava, dirigindo-se a um seu discípulo, Tshang Chi, Confúcio disse: "Os primeiros reis, dotados de princípios e virtudes, foram escolhidos (pelo Céu) para tomarem o mundo mais feliz, e para que o povo vivesse em paz e harmonia, evitando-se, deste modo, que houvesse ódio entre os homens superiores e os homens inferiores." (Como se alguma vez pudesse haver paz e felicidade com semelhantes discriminações persecutórias, muito menos quando havia donos-de-escravos e escravos propriamente ditos).

"Sendo o primeiro professor privado (ou quem abriu a primeira escola ao povo) - lê-se no livro citado, An Outline of China History, - Confúcio foi justamente perpetuado como tendo prestado uma grande contribuição à história da cultura da China. Mas não deve deixar de se recordar que, sendo um conservador, ele remou contra a maré da história".

Nesta circunstância, e nesta époça, nem sequer seria bem "a maré da história" que estaria em causa, mas sim a simples condição humana submetida sem alternativas, espezinhada, maltratada, vergada ao peso da repressão e da humilhação por um sistema de exploração que não conhecia limites. Aquilo que viam os olhos de Confúcio, não sendo cego, e as suas orelhas ouviam, não sendo mouco, era que "com um cavalo e uma peça de seda se compravam cinco escravos". Ou a voz daquele que o Livro das Odes recolheu - se eu soubesse que esta seria a minha sorte, antes queria não ter nascido.

Nem era, nem foi este o único lamento que este Livro, incluído nos Clássicos Confucianos - passou à História, e do qual o Venerável Mestre se servia nas suas prelecções escolares. Está lá este poemeto, por exemplo:

Vão-se da primavera os dias terminando

Montes de palha espalham-se em redor

O coração da jovem vai triste e vai doente

Forçada a seguir para casa do senhor

Quando falava em paz social, e ausência de ódio entre os homens superiores e homens inferiores, passava, de ouvidos surdos, pelos trabalhadores da gleba, que cantavam para quem os quisesse ouvir:

Fomos nós que plantámos/ E colhemos o arroz/Fomos nós que a madeira/Empilhámos nas margens/Das claras e onduladas águas do rio/Os senhores não semeiam/Nem colhem/Mas recolhem/ Trezentos alqueires de trigo/Jamais vão à caça/Mas têm javalis/ Pendurados nos pátios de suas casas/ Ah! Esses senhores/ Que não necessitam de trabalhar/ Para comer! (Trad. Livre)

Houve tempo - comenta Blackney (ib) - em que os homens dividiam com as outras criaturas, o balanço da natureza, a sua espontaneidade, e, sem esforço, as suas transformações naturais. Depois, o processo da civilização chegou, com os seus inevitáveis factores, a bondade, a moralidade, o bom-senso e a inteligência. Factores opostos vieram com os referidos, a maldade, a imoralidade, (a ganância, a exploração) a tolice e a estupidez - que precisaram de ser reprimidas. Então ocorreram desastres em todo o lado. As seis relações familiares (pais e filhos, irmãos mais velhos, e irmãos mais novos, marido e mulher) - foram perturbadas. A lealdade dos oficiais públicos foi posta em causa."

Os próprios nomes, por si mesmos, - repetiu um outro autor - implicavam uma certa disciplina, de aspectos repressivos, que era contrária à livre individualidade, e direitos dos outros, incluindo o da privacidade das pessoas. - "Na hierarquia do estado. (id. ib.) o rei, para o povo (que não o conhecia, nem falava com ele) não passava de uma simples designação..."

Deste conceito, como seu oposto, emergiu a noção da não-acção, ou, mais propriamente, a não-aceitação da interferência do poder, das normas moralistas, e da cultura, que castravam o que havia naturalmente de singular na compostura dos indivíduos, na sua autenticidade. No instinto das suas reacções - nasceu uma espécie de sociauxia, ou desenvolvimento de um corpo social incipiente, mas voluntarioso, e reivindicativo. De um elementar direito dos homens de não se deixarem manipular, de serem espontâneos, anónimos, e exclusivos donos da sua própria vontade. E de recusarem, pela inacção, qualquer tipo de subordinação perante o abuso e a violência do poder. É este conceito básico que está implícito (e explícito) no penúltimo capítulo da obra de Lao Zi: um pequeno espaço, tão perto do próximo que se ouvisse o ladrar dos cães, e o cantar dos galos, sem haver contactos, nem competição entre vizinhos, que pudessem dar lugar a disputas, molestamentos, e ofensas, permitindo-se, deste modo, à recusa pura e simples da disciplina das regras, e da política.

"As transformações sociais - escreveu, ainda, Ren Jiyu, - resultaram na destruição do sistema esclavagista, no Período da Primavera/ Outono, e a sua transição para o feudalismo, na emergência de uma nova estrutura de poder, constituída por uma classe política de ricos (mas não aristocratas), no aparecimento de um código de penas, escrito (em livros, ou vasos de bronze), e no deterioramento de relações entre as pessoas, reis que eram assassinados pelos seus ministros, filhos que faltavam ao respeito a seus pais".

Quando assim acontece, de todas as convulsões políticas, ou sociais que ocorrem, são a prepotência e as represálias que imperam, e quem sofre delas todas as consequências, são aqueles que não têm meios para se defenderem. Perante um quadro desta natureza, de que existem noticias históricas irrefutáveis, e demonstrações, repercutidas, principalmente, no Livro das Odes, e no Livro dos Documentos, o zelador da biblioteca imperial, no momento crucial em que a monarquia reinante sobrevivia na iminência de soçobrar, assume-se, por conseguinte, com uma filosofia revolucionária, propondo ao povo que dissesse não à violência, e ao arreganho de um autocracismo ominoso, que passava por cima da dignidade, e da própria existência do homem comum.

Uma poesia que corria nesses tempos cantava-se assim: (id. ib.)

Ao nascer do sol já estou a trabalhar / Só vou para casa descansar / ao pôr - do- sol/ Cavo um poço e é de lá que bebo a minha água / Lavro a minha seara / e é dela que colho o trigo que me sustenta / Afinal o que é que me dá/ o imperador?

Richard Wilhelm dilucida esta situação: o trabalhador nada devia ao imperador, mas sim, tudo, ao seu próprio trabalho.

Este poema reflecte um espírito, mais acabado do que latente, de como eram as injustiças do mundo, e como eram constatadas, e que a Lao Zi não passavam, obviamente, despercebidas. Por tal razão, "a ordem social, e as regras de comportamento desmoronavam-se, perante o agravamento das desigualdades sociais, e dos conflitos feudalistas; quebradas as relações entre os monarcas e ministros, os eunucos tomavam conta do poder do estado, os filhos faltavam ao respeito aos pais. Deste modo, as leis que protegiam os interesses das classes dominantes foram reforçadas, apareceram códigos de penas, em livros e vasos de bronze".

Depois de afirmar que a filosofia de Lao Zi propunha a libertação do povo em relação aos preceitos religiosos e teológicos, Ren Jiyu (ib.) acentuará que a teoria taoista do Céu, seguindo a via natural, e a inacção (ou não interferência) contribuíram para o desenvolvimento do materialismo.

"À luz apenas da sua concepção teísta, a sua doutrina é progressista quando contesta a teoria religiosa e supersticiosa do poder do Céu, isto é, o poder de privilegiar, ou punir o povo, atribuído ao Céu pela classe religiosa".... Nestes termos, na sua filosofia, o Céu não tinha personalidade, mas era apenas uma espécie de estado natural, entre outras coisas naturais, nascido "graças a TAO".

A sua obra não ilude, Lao Zi conhecia bem a história do sofrimento do seu povo, tinha a experiência do que viam os seus olhos, do que sentia a sua consciência, teve acesso aos documentos, sopesou, como devia ser, os citados Livros, das Odes, dos Documentos, da História, e outros, avaliou bem o que eram, em especial, o primeiro, um estendal acumulado de lamentos e queixas, acusações contra violências e extorsões, contra as guerras, contra a prepotência, contra a exploração do trabalho. Na sua obra, Zi intelectualiza o queixume do povo, incita, indirecta, mas claramente, as pessoas à não-aceitação das regras do sistema instituído, à recusa do trabalho escravo, ou compelido, ao aviltamento individual, instrumentalização do ritualismo tradicional, e da mobilização para a guerra. (J. C. R. ibidem)

Confúcio, pelo contrário, como foi referido, com vistas à perenidade do estado, e ordem social, fazia da moral, e da cultura, o eixo essencial do comportamento das pessoas, (A vida de um homem moral - diz-se que dizia - é um exemplo da moral universal (chung yung); enquanto a vida de um homem vulgar estava em contradição com a moral universal) - portanto, do dever, e da submissão às regras, da sujeição perante o poder, era isso o que preconizava nas suas prelecções didácticas - organizando, a partir daí, o seu sistema filosófico, e de relações humanas.

À base, pois, da moral, da reverência por classes, e da institucionalização dos preceitos tradicionais, foi que se elaborou um código de conduta e de postura, com mais de três mil regras, das quais a ordem (social) a primeira emanada dos Céus, deveria ser, rigorosamente, seguida, sem contestação.

Enquanto para o Venerável Mestre a senha que preconizava, de comportamento social, era Reverência e Moralidade, para o Velho Mestre, uma e outra, e mais a cultura, não passavam de sinais de decadência e de opressão, porque significavam a força de uma interferência na vontade, e na liberdade das pessoas, e harmonia das coisas cósmicas. A moral, como instrumento que condicionava, não representava um valor absoluto. Atrás da moral e da cultura, vinham os homens bons, os ministros leais, os patriotas - símbolos opressores da espontaneidade, e da singularidade dos comportamentos, que transformavam os homens em seres não-naturais, artificiais, afectados, preocupados em caminharem nos bicos dos pés.

Mas o conceito de previdência acabaria, também, por arrastamento, por ser alterado, o povo começou a ressentir-se contra o Céu, ao mais alto grau. "O teísmo religioso da antiguidade chinesa (Din. Xang)- escreveu Wilhelm - fundara-se na existência de um deus no céu, de quem todo o mundo dependia, e que privilegiava os bons, e punia os maus. Era um deus com consciência humana, que elegia santos e acolhia acólitos humanos, na sua corte. A ideia, por isso, dado o número de espíritos ancestrais, e deuses menores que, todavia, reverenciavam o grande deus, estava longe de ser monoteísta". Esta circunstância, aliada a outras, como desgraças, inundações, e demais tragédias naturais, das quais deus não poupava, sobretudo os mais desprotegidos - conduziria, portanto, à eliminação da tradição, e do pressuposto religioso.

Nessa altura, o povo olhava o céu com desconfiança

Quão grande e poderoso é o Céu (Deus)

Rei da humanidade

Como é terrível a sua majestade!

E ainda:

Eis o todo poderoso!

A quem será que Ele odeia?

Nesta granja caberia, por igual, a definição e a natureza teoditética de relações de que o povo não mostrava quaisquer sinais de regozijo. Pelo contrário, considerando o Céu (Deus) como entidade responsável por todos os fenómenos e fatalidades, que ocorriam na Terra, quando o conceito passou a ser entendido de modo mais radical, o povo não se eximia a pronunciar-se com notório desagrado. Ficou nos livros o registo das suas queixas:

É muito grande esta seca / Queima os montes, seca os rios / O demónio do fogo/ semeia a dor e a desolação / Queima o nosso coração / de desgraças tão cansado / Nem reis nem antigos governantes / nos prestam qualquer atenção/ Oh! Senhor das Alturas, Céus distantes / Porquê tanta maldição?

Ou

Agora os Céus (Deus) fustigam-nos

Com grandes fomes e pestes

As mortes e as desordens são frequentes

E o povo queixa-se amargamente

Já que ninguém mitiga o seu dolório

O grande Céu (Deus) é injusto com os infelizes

Oprime-nos com grandes sacrifícios

Usa de grande ferocidade

Quando nos inflige tantas ofensas

O Céu não tem piedade de nós

As guerras nunca mais acabam

Todos os meses o Céu as faz redobrar

Sem nos deixar finalmente em paz!

Com o tempo, e o agravamento das calamidades e guerras, as queixas tornam-se mais duras, conforme ainda o Livro das Odes:

O povo está cansado de mortes

Merece um pouco de paz

Por favor atendei às nossas preces

Senão os que ainda restam

Morrerão também

Quando acabou por entender, (conforme se escreveu nas Crónicas de Zuo Qiuming no 32° ano do Duque Zhou, Sec. IV a. n. e.) que "os estados não conservavam uma soberania eterna, e que tanto reis como os seus ministros, também não possuíam o estatuto da eternidade") que as mudanças do mundo fenomenal não eram obras de cega coincidência, ou do acaso, mas que obedeciam a leis fixas, de forças opostas da criatividade e de receptividade, o Um e o Dois, a Luz e a Sombra, O Inverno e o Verão, o Positivo e Negativo, o Masculino e o Feminino" Lao Zi assume a ideia de uma harmonia imanente e absoluta que transcendia o espaço e o tempo, abrangia toda uma concepção cósmica.

ⅩⅨ

Dois mil e quinhentos anos depois de Lao Zi, a astrofísica moderna, apetrechada de toda uma engenharia altamente sofisticada, com naves equipadas de instrumentos de orientação e perscrutação, e toda uma série de descobertas surpreendentes relativamente à expansão do Cosmos, e prodigioso alcance do espaço sideral aberto - não adregou ainda de responder às quatro perguntas fundamentais: quando, porquê, como e onde, de súbito, uma pequeníssima reverberação, ou seja o que tenha sido, precipitada não se sabe porquê, em relação ao quer que fosse, que até então não existia, isto é, o Vazio, o Vácuo, o Nada - deu origem às dez mil coisas. Zhuang Zi afirma que, como o Vazio - Te, a Virtude (ou o Princípio) está plena de tudo, todavia, não está repleta. Acrescentar (lastro) à Virtude, não a encherá por completo. Aliviá-la seja do que for, jamais a esgotará. Ninguém sabe de onde veio o seu conteúdo, apenas se poderá dizer que contém luz (energia).

Com efeito, o que é que nos tem sido ensinado pela Ciência Astronómica moderna, servida por homens da mais elevada e especializada qualificação, que dominam o campo? - Que o universo terá nascido de um Vazio Cósmico, do Nada de Nada, (embora o genial paraplégico Stephen Hawking, pretenda que não houve um começo, que o universo existiu sempre, e que jamais deixará de existir!) quando, em tempo e espaço que não existiam, fulgiu uma centelha, partícula elementar de uma energia anónima, à qual corresponderam, em simultâneo, ou um após outro, dois campos de energias opostas, a partícula (propriamente dita, positiva) e a anti-partícula (negativa) por isso, por serem contrárias entre si, se atraíam, e mutuamente se auto-destruíam. Constituída por uma pequeníssima fracção energética superior, remanesceria da colisão, milhões de muitos mais milhões de vezes repetidas, um infinitesimal resíduo positivo, que terá crescido até ao tamanho de uma ervilha, tão densamente concentrada de energia, que, de há vinte mil milhões de anos (a esta parte) acabou por explodir - transformando-se o seu potencial energético em nebulosas, constelações e galáxias, etc. que andam por aí - mais o movimento (de rotação e de expansão) a noção do tempo, a dimensão do espaço, o Céu, o Sol, a Terra, os Seres, o Espírito e o Vale, enfim, as dez mil coisas do universo.

Em 780 a. e. a. (duzentos anos antes de Lao Zi) - ocorreu na China um grande terramoto. Um observador daquele terrível fenómeno explicou deste modo a razão do sismo: Yang, quando comprimido, sem poder expandir-se; e o Yin igualmente sofreado, sem poder expandir-se - provocam o deflagrar dos terramotos.

Pela sabedoria actual, a pressão interna de uma pequena "ervilha" sobrecarregada de partículas, de energia positiva - que não podiam expandir-se - rebentou num clarão de luz...

Terá sido, em todo o caso, "qualquer coisa" deste género que Lao Zi, influenciado ou não, pelo Livro das Mutações - intuiu uma mágica presciência de um Vazio-Ante-cósmico a que deu o nome aleatório de Tao, e a Mãe-Natureza, origem do universo, e de todas as coisas que se lhe seguiram. Em Tao nascera uma singularidade. Desta singularidade bipartiram-se duas, de forças opostas (partícula, e anti-partícula) a que foram dados os nomes de Yin e Yang, e das duas originou-se uma terceira singularidade, o Hwo-hi, o sopro, ou fluido vital, (por aproximação aleatória, já se vê, à exegese cristã, do Espírito Santo...).

O excepcional, neste caso, é Lao Zi ter tido a percepção dessa virtualidade, diga-se, proto-científica, e tê-la equacionado nos termos em que o fez, no tempo em que viveu. Isto é, o princípio elementar da bipolaridade, a teoria das transformações (evolução da matéria) o movimento de rotação universal, a esfericidade da Terra (e dos Astros) e a dimensão abrangente dos efeitos consequentes. A intuição referida, aliás, nada tem de milagrosa, ou de pura coincidência. No tempo em que foi formulada, esta chamada intuição, coerentemente pensada, ficou, para o tempo, a valer por um postulado. Para a ter, desta forma, compreendido socorreu-se de uma estratégia original: abstraiu-se de toda a sabedoria (catequética) adquirida, e de todos os sinais que constrangiam a sua consciência, atingiu, na mais completa vacuidade, a mais perfeita serenidade e equilíbrio, sem se submeter a interferências ou coacções de qualquer ordem, física ou mental, tornou, assim, instintivo, espontâneo, e independente, todo o seu pensamento de homem livre e autêntico.

Como dirá Sima Qian "aprendera a fazer o seu trabalho em profundo recolhimento, e anonimamente"...

Pela prática da inacção, nada há que não possa ser entendido. A cultura e a moral (Cap. 18) arrastam consigo a hipocrisia, são condicionantes, por isso, símbolos de decadência e de opressão. Cada um deve isentar-se das ilusões, erradicar de si todos os desejos ou ambições. Lao Zi compreendeu a mecânica do universo, sem precisar de sair de casa. Sem se sair da porta para fora, pode conhecer-se tudo do mundo; sem olhar pela janela, pode conhecer-se a virtude da Harmonia cósmica. O sábio toma conhecimento das coisas sem se mover, compreende tudo sem olhar, e realiza-se pela não-interferência, entra em meditação profunda sem necessidade de utilizar palavras.

Para tanto, apenas lhe bastou libertar-se dos axiomas pressionantes da sabedoria pré-adquirida, que lhe obnubilavam, ou coagiam o raciocínio - num sentido errado!

ⅩⅩ

Uma vez Yin, uma vez Yang, - lê-se no grande tratado de adivinhação e de cosmologia, Livro das Mutações " I Ching."

Uma vez vida, uma vez morte - eis a teoria da transformação dos seres - proclamou, por seu turno, Zhuang Zi, o grande místico do taoismo antigo". A isto define Zhuang Zi, em consonância com os princípios taoistas, como a Harmonia das coisas. "Quando foi tempo de chegar, o Mestre (Lao Zi) chegou. Quando foi tempo de partir, partiu.

Aceitando com serenidade, o tempo e o lugar para tudo, nem a dor, nem a alegria podem intrometer-se. Os braços cansam-se de levar galhos para o fogo, o fogo crepita, até à extinção, porém, quando se extingue, ninguém sabe" (O Livro de Zhuang Zi, trad. livre).

Um dia, cansado da luta, desmoralizado por ver a sua cidade desmoronar-se, o mundo a ruir à sua volta, compreendendo que o ciclo Yang da sua vida entrava no apogeu, que as suas energias cósmicas, prestes a consumir-se, iam retroceder à matriz original, resolveu partir. Na porta da montanha de Xian Gu, que servia de fronteira entre a vida e o regresso às origens, ou à Mãe-Natura, o guarda Yin Hsin, pediu-lhe:

-Já que vai partir, escreva-me, para meu proveito, um livro, sobre os princípios da sua doutrina.

Desse modo, Lao Zi escreveu, em cinco mil caracteres, a sua obra genial sobre Tao e a Virtude. Depois - desapareceu. Ninguém chegou a saber onde morreu.

Quando se trata de um homem de qualidade, ele sobrevive, naturalmente, à morte. Se assim não fosse, acabaria por nada deixar atrás de si...

Lao Zi era um Homem de qualidade!

O grande intérprete de Lao Zi (estampa antiga).

NOTAS

1 WU WEI = INACÇÃO

Sintetizando a questão

O Céu nada produz - e a sua imobilidade

Condiz com a mais profunda serenidade

A Terra nada produz - e da sua inactividade

Depende toda a sua tranquilidade

Na configuração destas inactividades

Procedem todas as actividades

Quão misterioso, e imprevisível

É o porvir

Todas as coisas vêm de parte nenhuma

Nada consegue explicar este segredo

Todas as coisas na sua perfeição

Tiveram origem na Inacção

Por isso se diz

Que o Céu e a Terra nada produzem

Mesmo assim

Deste Nada é que tudo foi produzido

Quem será capaz de explicar este enigma?

2 Qu Yuan (340-278)

Duzentos anos depois da morte de Lao Zi, o mais famoso poeta da antiguidade chinesa colocava o problema da criação do Universo. O que revela, além de outras, não só a capacidade mental do Autor como a substância cultural atingida na China em tão recuados tempos. Eis um excerto significativo deste longo poema de cento e setenta versos, identificado sob a epígrafe "ENIGMAS":

Antes da Criação quem poderia prever

As transformações que vieram a acontecer?

Que estranha força resistiu

A tudo quanto antes era Vazio?

Antes da fusão no espaço da luz e escuridão

Quem desse fenómeno entendeu a razão?

Imponderáveis poeiras que se aglomeraram

Quem poderá dizer como é que elas se formaram?

Quem poderia dizer que a luz e a madrugada

Iam sair do escuro da noite mais cerrada?

Força feminina (Yin) masculino poder (Yang)

Quem foi que assim os fez nascer?

E a concluir

Nem rezando aos Céus nos salvaremos

Se guardar respeito por nós próprios não sabemos

Os reis orgulhosos que exigem submissão

Se não se arrependerem não têm salvação

3 A HARMONIA NO UNIVERSO.

O grande conceito de Lao Zi foi a HARMONIA. A Harmonia fundada no equilíbrio perfeito do universo, e de tudo quanto dele veio a fazer parte, baseado na dicotomia de forças cósmicas que dariam origem, governavam e transformavam as relações entre todas as coisas. Foi desta noção que Zhuang

Zi partiu para a elaboração desta parábola.

Khing o mestre entalhador foi contratado pelo príncipe de Lu para fabricar, em madeira preciosa, um pedestal para um sino do palácio. Quando a tarefa foi concluída, todos aqueles que viram o trabalho, ficaram extasiados com a sua beleza. Deveria ser - diziam - obra dos espíritos.

Perguntou o príncipe ao artífice qual tinha sido o segredo de construção de Obra tão requintada.

O artesão respondeu:

- Sou apenas um humilde entalhador. Não tenho segredos. Quando comecei a pensar na obra que me foi encomendada, concentrei o meu espírito, não o distrai com ninharias. E como não havia razões para me inquietar, mantive o coração na mais absoluta serenidade.

Depois de três dias passados nessas condições, consegui esquecer as recompensas prometidas pelo sucesso do meu trabalho. Cinco dias depois disso, esqueci os louvores ou críticas que me esperariam, e sete dias ainda depois disso, desprendi-me das preocupações do meu próprio corpo e membros. Por esta altura, todos os pensamentos em V. Alteza e na corte se dissiparam, e assim tudo o que pudesse distrair-me do meu trabalho esvaneceu.

Concentrei-me, pois, no único objectivo de construir a peanha do sino. Fui então à floresta, para avaliar as árvores no seu ambiente natural. Quando no meio de todas, diante dos meus olhos surgiu a árvore apropriada, com a sua imagem, apareceu também, sem qualquer dúvida, a visão do pedestal já talhado. Tudo então que tinha a fazer, era deitar mãos à obra, e começar a talhar.

Se eu não tivesse encontrado esta árvore especial, e com ela a visão da obra encomendada, não haveria o pedestal que aqui está. Que aconteceu então? O meu próprio pensamento (intuição) encontrou o material que a harmonia das coisas destinara a este trabalho.

Deste encontro resultou a obra que V. Alteza atribui aos espíritos...

4 Como se lê no livro Huai-nan Zi, atribuído a Li An (+ 122 a. e. a.). Para se alcançar a Harmonia no (do) Universo, deve rejeitar-se tudo o que seja supérfluo. Assim, os ouvidos e os olhos não serão perturbados, os pensamentos não serão confundidos, ao mesmo tempo que o sentimento interior se expande até se alcançar a pureza Absoluta. A Harmonia no Universo está associada à longevidade, cuja lenda, ou a do elixir da longa vida, vinha desde os tempos do Imperador Huang Di, o Imperador Amarelo (2704-2595). Por isso se diz que tenha sido o primeiro dos taoistas (antes de Lao Zi...).

A tese proposta neste caderno, de o Livro Tao Te Ching ter sido profundamente desvirtuado em relação às ideias fundamentais do seu Autor - deduz-se, sem qualquer hesitação, das substituições e restauros cacologicamente operados, duzentos, ou trezentos anos depois, por pessoas de probidade, ou escrúpulos condicionados - na versão ou versões deterioradas, da sua edição original.

Vários autores têm vindo a caucionar a evidência das anomalias. Mas de que se tenha conhecimento, ou sido visto, um esforço no sentido de repor a coerência do texto laociano não foi ainda experimentado, libertando-o assim das contradições e notórios erros que a grafognosia possa distinguir, e a lógica de um raciocínio primígeno adregue de redefinir. (Ver Pag.217).

O texto (quer-se dizer, as traduções'do texto) actualmente disponível, além da diversidade, nem sempre convergente, ou rigorosa, das interpretações - tem conduzido à quase sacralização de padrões preconcebida, e consabidamente convencionais, virtualmente, portanto, de duvidosa probidade, que, por todas as razões, conviria, definitivamente, expurgar, restituindo ao Livro, e ao seu Autor, a dignidade que a justiça e a moral exigem. Mas aí - pode ser que o pecado não seja tanto dos académicos, cuja aletologia, apesar de tudo, tem proporcionado a divulgação da obra, e os ensaios e estudos sobre ela produzidos, mas muito mais desta demérita e presumida increpação.

5 Por duas vias se chega à formação da palavra TAO.

Ambas correspondem a movimento (e daí, porventura) a sua tradução, na maioria das versões em língua inglesa, ser WAY (The Way and the Virtue). A primeira é LU - conforme R. Wilhelm - combinação de dois símbolos para andar e poema ; e a segunda, sem variar muito, correspondendo à combinação dos caracteres referentes a cabeça (ou princípio) e (no sentido, portanto, de pathos) -mais destino, ou fim, do que caminho, entendido, por isso, igualmente, como movimento ou acção. Por este conjunto de regras se atribuiu ao vocábulo TAO a ideia do universo em rotação, ou ao círculo circunvogante do Céu e da Terra. A cabeça significaria a origem das coisas, e o pé, o movimento ou a transformação das mesmas coisas.

Como já foi visto, não foi esta a ideia primordial que Lao Zi deixou patente nos versículos, que se consideram genuínos da sua Obra. TAO, com efeito, era um Vazio, não poderia significar um Caminho, a despeito de se alegar em defesa desta teoria, que a palavra é constituída caracteriologicamente, pelos símbolos de cabeça e pé, o primeiro como sede da Vontade, e o segundo, associado ao movimento. A proposição pode estar tecnicamente correcta, em relação ao TAO não-verdadeiro - mas nada tem a ver com TAO verdadeiro de que fala Lao Zi, desde logo no primeiro capítulo do seu Livro.

6 Mo Zi (479-381 - a. e. a.) que parecia ter um instinto nato de solidariedade social, não obstante algumas ideias um tanto obnóxias, como a de que o poder deveria ser totalitário, e exercer a autoridade de uma forma absoluta; negava a asserção referida, falando deste modo sobre os seguidores de Confúcio: "Os princípios confucionistas arruinam o mundo inteiro, por quatro vias:. - 1) os confucionistas não acreditam na existência dos Espíritos (Deus), dando como razão o facto de ser (Deus) enfadonho; 2) Os confucionistas insistem na prática realizar rituais fúnebres de um parente, e guardarem luto por três anos, razão pela qual, a saúde e a energia s e desgastam; 3) os confucionistas insistem na prática da música, o que conduz ao mesmo resultado; 4) os confucionistas acreditam numa predestinação, levando o povo à ociosidade, e a resignar-se a tudo sem resistir.

7 As equivalências eram as seguintes: (v. ad.)

1= Água = norte = preto = tartaruga negra

2 = Fogo = sul = vermelho = pássaro vermelho

3 = Madeira = ocidente = verde = dragão verde

4 = Metal = oriente = branco = dragão azul

5 = Terra = centro = amarelo = tigre branco

8 Por aquilo que já foi dito, e subentendido, o Yin e o Yang serão as duas forças energéticas, a partir das quais toda a matéria do universo, acabado de nascer, Não será, pois, bem a mesma coisa da explicitação antecedente.

9 Por tripé pode entender-se uma trindade, matéria de que a seguir se falará.

Face à referida "dinâmica de TAO", e à "interferência directa de TAO no acto da criação", etc. - torna-se penoso à crítica, cingindo-se, como primariamente se faz, apenas ao texto, e à lógica do discurso do Filósofo Chinês Autor, objectar com razões que não mais contribuiriam, senão para amesquinhar os padrões de avaliação, quiçá, o teor do entendimento comum.

10 Comparando os chamados paradoxos de Lao Zi com os de Oscar Wilde, conhecido "príncipe dos paradoxos" - Henry Wei (The Guiding Light of Lao Zi) escreveu que "os paradoxos de Wilde eram brilhantes, e muitas vezes provocavam risos, eram excelentes para festas sociais; os de Lao Zi eram, ao contrário, profundos, provocadores e desafiantes; primeiro, surpreendem, mas depois conduzem a uma meditação profunda.

11 Uma vez, quando pescava placidamente na margem de um rio, dois emissários abordaram-se de Zhuang Zi, informando-o de que o soberano o convidava para ministro na Corte. Sem virar a cabeça, nem deixar de pescar, Zhuang Zi respondeu:- Ouvi dizer que em Zhou existe a carapaça de uma sagrada tartaruga, morta há três mil anos. E que o rei guarda esta tartaruga, cuidadosamente fechada num cofre, sobre o altar dos antigos reis. Pensam vocês que esta tartaruga preferiria ser assim venerada, estando morta, ou estar viva, a agitar o rabo num lameiro?

-Preferiria, decerto, estar viva e arrastar-se na lama - replicaram os emissários.

- Vão-se embora - resmungou Zhuang Zi - eu também prefiro arrastar o meu rabo no lameiro.

* Licenciado em História. Antigo docente na Faculdade de Letras de Lisboa e na U. A. O. (Univ. Macau).

desde a p. 109
até a p.