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O PROBLEMA DA EVACUAÇÃO DE MACAU NOS PRIMEIROS ANOS DO REINADO DO IMPERADOR KANG XI DA DINASTIA QING
E O CASO DA CHANTAGEM POR SUBORNO DE LU XINGZU, VICE-REI DE CANTÃO

Tang Kaijian*

Adoptando uma proposta de Huang Wu, chefe militar que renegara da causa da resistência que ainda mantinha Zheng Chenggong na ilha de Taiwan em nome da já extinta dinastia Ming, no sentido de impossibilitar qualquer contacto entre o continente já conquistado e a ilha rebelde, a corte imperial da recém-implantada dinastia Qing decretou, no ano 18 do reinado do imperador Shun Zhi (1661), a evacuação ao longo de todo o litoral das províncias de Jiangsu, Zhejiang, Fujian e Fuangdong, "transferindo toda a população costeira terra adentro, deixando completamente despovoado o litoral e traçando uma linha proibitiva de qualquer passagem, sob pena de morte".1 No segundo mês do ano 1 do reinado do imperador Kang Xi (1662), teve início na província de Guangdong a execução do decreto de evacuação. "No segundo mês do ano Ren Yin (1662), chegou de repente o decreto de evacuação do litoral. Dois altos dignitários manchus, Koerkun e Jieshan, vieram pessoalmente ao litoral e deram a ordem de que todos os moradores da costa se mudassem cinquenta li terra adentro, de modo a impossibilitar os fornecimentos para Taiwan".2 Foi também no mesmo ano que começou a evacuação do litoral do distrito de Xiangshan.

Segundo as Crónicas do Distrito de Xiangshan (Xiangshan Xian Zhi, 香山縣誌), "começou a evacuação no ano 1 do reinado do imperador Kang Xi, sendo transferidos 218 moradores". "Começou a evacuação no ano 1 do reinado do imperador Kang Xi, deixando-se desertos 1.180 qin e 10,151325 mu de terras".3 Como era natural, o decreto devia-se aplicar, também, a Macau, que fazia parte do distrito de Xiangshan, uma vez que "estavam a ser evacuadas todas as comarcas costeiras do distrito como Huangliangdu, Shawei, Beishan, Qiduao, Huangqijiao e Tanzhou, e mesmo a ilha de Luhuan (Coloane)".4

No entanto, Macau sobreviveu, como por milagre, à evacuação, catástrofe a que conseguiu escapar este enclave dos fidalgos portugueses sito numa diminuta península. O que é que explica isto? Quais as razões subjacentes a tão enigmático milagre? A este respeito não consta nem uma só palavra nas crónicas oficiais da História da dinastia Qing nem em nenhum dos textos regulares de História. Também não há nas fontes ocidentais qualquer registo pormenorizado e fidedigno sobre o que aconteceu realmente, facto que gerou as mais variadas conjecturas entre os estudiosos. Recentemente, tive ocasião de ler com atenção os Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça da dinastia Qing e descobri um facto surpreendentemente escandaloso que foi a chantagem que cometeu Lu Xingzu, então vice-rei de Cantão, para obter dos Portugueses de Macau um avultado suborno em prata. Os registos do facto, muito pormenorizados, que constam destes fragmentos de actas permitirão, não apenas pôr a nu o referido caso escandaloso, de excepcional gravidade para os primórdios da dinastia Qing, caso até agora desconhecido, como também apurar as verdadeiras razões porque Macau conseguiu escapar à severa campanha de evacuação costeira.

I. TEXTOS INTEGRAIS DOS FRAGMENTOS DE ACTAS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DA DINASTIA QING

São três os textos, todos em forma incompleta, os Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça da dinastia Qing. Estão incluídos nos Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing (Ming Qing Shi Liao, 明淸史料), compilados pelo Instituto de História e Linguística da Academia Central (Zhongyang Yanjiu Yuan Lishi Yuyan Yanjiu Suo, 中央研究院歷史語言研究所), volume final, livro 6. Vamos a seguir transcrevê-los na íntegra, com pontuação minha.

TEXTO I

(...) como é que foi ocultado, etc., etc.. Verificou-se (faltam 11 caracteres) não haver provas convincentes que confirmem a chantagem, e (faltam 8 caracteres). Por isso, são infundadas as sete acusações de cobiça e chantagem contra Lu Xingzu.

Há o depoimento do magistrado distrital Yao Qisheng:

O vice-rei Lu Xingzu mandou-me para tomar posse das mercadorias sujeitas a confisco dos cinco navios. Desloquei-me a Macau acompanhado de Zhan Qizhen e dei ordem ao bárbaro Ouvidor que me entregasse as mercadorias sujeitas a confisco. O Ouvidor e outros bárbaros responderam-me que já no ano da chegada das mercadorias tinham presenteado o vice-rei com 13 mil taéis de prata e, com a sua permissão, retirado as mercadorias, que logo acabaram de vender. Se agora se torna novamente necessário confiscar estas mercadorias, que já foram compradas por comerciantes chineses, a solução poderia ser ficarem as autoridades chinesas com as quatro décimas partes deixando ao dispor destes comerciantes chineses as restantes seis décimas partes das mercadorias já vendidas. Pediram-me que transmitisse ao vice-rei uma solicitação, deles, no sentido de os autorizar a continuar a residir em Macau e a manter o comércio marítimo, oferecendo eles, em troca, outros 200 mil taéis de prata. Ao informar o vice-rei dos resultados da minha missão, falei-lhe de tudo, mas não ousando mencionar o pagamento precedente dos 13 mil taéis que lhe tinha sido efectuado.

O vice-rei disse:

Vou informar Sua Majestade deste assunto e solicitar-lhe autorização. Caso esta seja obtida, o montante deverá ser de 200 mil taéis. Quer se obtenha a autorização, quer não, o próprio facto de informar o imperador e lhe solicitar autorização já implicará a necessidade dum montante de 50 mil taéis. Quanto às mercadorias, dizia, é aceitável e pode ser posta imediatamente em prática a ideia de arrecadar as quatro décimas partes das já vendidas. Então, disse eu ao vice-rei que os comerciantes Cheng Zhiwan e Li Zhifeng estavam à espera de oportunidade para retirar as mercadorias anteriormente compradas em Macau deixando para as autoridades as quatro décimas partes.

Obtida a permissão do vice-rei, comuniquei a Li Zhifeng e outros comerciantes que se podiam deslocar a Macau, e eu também me desloquei para lá logo a seguir. Arrecadei as quatro décimas partes das mercadorias e anunciei a decisão do vice-rei de isentar Macau da evacuação. O vice-rei mandou os seus servidores privados Shi Tai e Chen Degong e o comerciante Li Zhifeng para me acompanharem na minha viagem a Macau para eu exigir aos Portugueses de Macau os 200 mil taéis de prata. Com esta missão, levei os três para Macau e disse aos Portugueses de lá que já podiam ser isentados de evacuação mas que deviam pagar por isso os 200 mil taéis. E os Portugueses responderam que poderiam pagar o montante se lhes fosse permitido mercadejar por mar e que em caso contrário não teriam donde obter tanto dinheiro. O acordo foi atingido, devendo eles começar por pagar, numa primeira prestação, 100 mil taéis. Como primeiro passo, pagaram a Shi Tai 1.400 e a Chen Degong 2.600 taéis de prata para eles comprarem com esse dinheiro rosários de contas de pérolas e de coral para oferecer como prendas ao vice-rei. Pagaram, além disso, 1.000 taéis a Liu Yijin e outros 2.600 taéis a Wang Qinglü para serem entregues ao vice-rei. O facto de eu ter levado comerciantes a ultrapassarem a fronteira proibida não se deve, porém, a nenhuma intenção minha de fazer lá comércio ilícito para proveito pessoal, etc., etc.. Ora, é sabido que as mercadorias sujeitas a confisco já foram vendidas em Macau com a permissão do vice-rei, e no entanto sob pretexto de trazer as mercadorias sujeitas a confisco, o arguido permitiu-se levar um grupo de comerciantes a ultrapassarem a fronteira proibida e a se deslocarem a Macau para arrecadar as quatro décimas partes das mercadorias sujeitas a confisco e oferecer como prenda ao vice-rei o produto da venda de mercadorias não sujeitas a confisco. O arguido deslocou-se, conjuntamente com Shi Tai e outras pessoas, a Macau para comunicar aos bárbaros de lá que podiam ser isentados da evacuação se pagassem 200 mil taéis de prata, de modo que pagaram um total de 7.600 taéis a Shi Tai, Chen Degong, Liu Yijin e Wang Winglu para eles o entregarem como prenda ao vice-rei. Com base em todos estes factos, Yao Qisheng deve arcar com toda a responsabilidade da suposta chantagem ao obter dos Portugueses de Macau prata e outros bens materiais, sendo cúmplices aqueles que o acompanharam na viagem.

Outro depoimento de Yao Qisheng:

Por serem insuficientes as mercadorias sujeitas a confisco, depois de consultas com Zhan Qizhen, fiz trazer produtos de porcelana e vendi-os aos bárbaros para reverter ao fisco o produto da venda e compensar a insuficiência das mercadorias sujeitas a confisco. Por isso, aos servidores privados foi dada a ordem de trazerem com Cheng Qiwen os produtos de porcelana, que no entanto não chegaram a ser carregados a bordo antes de serem surpreendidos pelas pessoas do vice-rei, etc., etc.. Tu, que és o vice-rei em funções efectivas, compraste porcelanas fazendo-as passar por produtos do fisco e trataste de levá-las para além da fronteira proibida e vendeste-as secretamente a fim de obter lucro. Quanto ao magistrado distrital Yao Qisheng, embora não tenha juramentado irmandade com Peng Xing e outras pessoas em cerimónia solene, queimando incenso, agiu como irmão juramentado com eles no sentido de se atenderem mutuamente e de ajudarem os pobres, constando tudo isso em cartas de correspondência. Sendo funcionário em funções efectivas, Yao Qisheng permitiu-se levar para além da fronteira proibida servidores privados do vice-rei e comerciantes privados, arrecadando uma percentagem das mercadorias compradas pelos comerciantes. Deve por isso arcar com toda a responsabilidade por esta transgressão. Além disso, trouxe prata e outras prendas dos bárbaros para o vice-rei. Por todos estes delitos, Yao Qisheng deveria ser punido com a decapitação, mas como tudo isso aconteceu antes da amnistia decretada no dia 26 do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, pode ser amnistiado, mas administrativamente deve ser demitido e excluído para sempre dos quadros burocráticos.

Há os depoimentos de Li Chengjiao, Lu Yingfeng, Zhang Yichun, Zhang Jinzhong, Xu Zhen, Shi Guobao, Jia Liangcai e Zhang Feng, todos servidores privados de Yao Qisheng:

É verdade que acompanhámos o nosso amo Yao Qisheng na sua viagem a Macau para retirar mercadorias, mas não o fizemos com intenção de comércio ilícito, etc., etc.. Apesar de Li Chengjiao e os outros não terem cometido o delito de viajar ilicitamente a Macau com fins comerciais, ultrapassaram a fronteira proibida acompanhando o seu amo Yao Qisheng. Com base nestes factos, devem todos eles ser decapitados.

Há o depoimento de Zhan Qizhen, chefe de administração (zhaomo, 照磨): Desloquei-me a Macau acompanhando Yao Qisheng. Arrecadámos as quatro décimas partes das mercadorias compradas pelos comerciantes e exigimos a compensação das mercadorias sujeitas a confisco mas já vendidas. É verdade que fui consultado por Yao Qisheng, mas não fui quem decidiu. Obtivemos a crédito produtos de porcelana para os vender. O dia em que acabássemos de compensar todas as mercadorias sujeitas a confisco, pagaríamos o preço das porcelanas, etc., etc..

Há outro depoimento de Yao Qisheng:

Depois de consultas com Zhan Qizhen, fiz trazer produtos de porcelana para os vender aos bárbaros e com o preço obtido compensar as mercadorias sujeitas a confisco. Apesar de Zhan Qizhen afirmar que não sabia nada do arrecadamento das quatro décimas das mercadorias compradas em Macau por comerciantes chineses e da compensação, com o produto da venda, da insuficiência das mercadorias sujeitas a confisco, é inegável o facto de ele ter levado comerciantes a ultrapassarem a fronteira proibida e participado no arrecadamento das quatro décimas partes, bem como ter comprado, juntamente com Yao Qisheng, produtos de porcelana para os levar a vender em Macau. Com base em todos estes factos, Zhan Qizhen deve ser punido com a decapitação segundo a lei da fronteira proibida.

Há os depoimentos dos comerciantes Cheng Wanli, Wu Peiyu, Huang Bahua, Fang Yu, Li Qi, Cheng Zhifu e Hu Liu:

Como é que ousámos ir para além da fronteira proibida? Fizemos isso porque o magistrado distrital Yao Qisheng nos disse que o vice-rei tinha autorizado a nossa viagem para retirar de lá mercadorias dos bárbaros sujeitas a confisco. Muitos comerciantes aproveitaram o ensejo para fins comerciais pagando as quatro décimas partes. A notícia divulgou-se, e nós fizemos a viagem levando connosco alguma prata. Ao passarmos pelo posto de controle fronteiriço, conseguimos ocultar a prata. Chegados a Macau, comprámos sândalo, pimenta e outros produtos, etc., etc.. Vós, que estáveis cientes de que o que fazíeis era proibido, já que, embora tivésseis ouvido a notícia, divulgada por Yao Qisheng, da autorização do vice-rei, ocultastes propositadamente a vossa prata ao passardes pelo posto de controle fronteiriço, fostes, na verdade, cúmplices de Yao Qisheng num acto de comércio ilícito. Segundo o depoimento de Li Zhifeng, ele ouviu a notícia divulgada por Yao Qisheng e ultrapassou a fronteira ocultando a prata que levava consigo e comprou em Macau sândalo, pimenta e outros produtos, de modo que fez a viagem confiando na notícia de Yao Qisheng e, no entanto, ocultou a prata ao passar pelo posto de controle fronteiriço, o que significa que, em cumplicidade com Yao Qisheng, cometeu, sabendo, um acto de comércio proibido. Quando se deslocavam a Macau os servidores do vice-rei, foram também Xu Zhong e Pan Dingchen. Lá, exigiram aos bárbaros droguete, aloés e coral, no valor de milhares de taéis de prata, produtos que foram entregues e Pan Dingchen como prendas para o vice-rei. Além disso, deslocou-se com Yao Qisheng a Macau para exigir 200 mil taéis de prata.

Segundo o depoimento de Shen Xianming, Li Zhifeng disse-lhe:

Você é bom conhecedor das mercadorias. Vou a Macau, venha comigo. Mas nem na viagem de ida nem na de volta levei mercadoria nenhuma, etc., etc.. O que fiz foi ultrapassar a fronteira proibida acompanhando Li Zhifeng para fins comerciais. Apesar de Cheng Wanli afirmar que foi lá porque iam, também, barcos oficiais, fê-lo consciente de que estava a franquear uma fronteira proibida movido pela cobiça e acreditando, por isso, no que dizia Yao Qisheng e agindo em cumplicidade com ele. Com base em todos estes factos, Cheng Wanli, Wu Peiyu, Huang Bahua, Fang Yu, Li Qi, Cheng Zhifu, Cheng Qiwen, Hu Liu, Li Zhifeng e Shen Xianming deveriam ser punidos com a decapitação. Mas verificando-se que o delito foi cometido antes da amnistia decretada no dia 26 do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, devem ser todos absolvidos. Quanto a Tang Fengming, Tan Shouren e Wu Yan, o confisco das suas mercadorias, já efectuado, não deve ser revisto. Devem ser revertidos às autoridades tanto o produto da venda das suas mercadorias antigas e novas como as quatro décimas partes arrecadadas. Zhan Qizhen deve ser demitido.

Há o depoimento de Qiu Rusong, chefe da guarnição (shoubei, 守備):

Por ordem do vice-rei, desloquei-me a Macau para apurar o assunto dos cinco navios. Trouxe para o vice-rei 13 mil taéis de prata como prenda dos Portugueses de Macau. Deram-me também aguilaria gallocha, lençóis de lã, bandejas de prata e tecidos de seda para entregar ao vice-rei, e aceitei.

Mais tarde, eu disse a Tan Shouren e Wang Weizhong:

Quando vocês forem interrogados, eu sê-lo-ei também e direi que eles me deram 240 taéis de prata e que aceitei.

De modo que todos os arguidos se reconheceram culpados.

Há o depoimento de Shi Tai:

Mandado pelo amo Lu Xingzu, fiz uma viagem a Macau para exigir os 200 mil taéis de prata. Comprei, para o meu amo, pérolas, coral e contas para rosários de rezar. Reconheço que aceitei cem taéis de prata.

De modo que reconhece ser culpado.

Há o depoimento de Chen Degong:

Mandado pelo vice-rei, viajei a Macau com Shi Tai para exigir os 200 mil taéis de prata. Quando regressei e ia entregar ao vice-rei cinco árvores de coral e contas, grandes e pequenas, de coral para rosários, no valor de 2.600 taéis de prata, ele mandou que eu as guardasse comigo. Logo a seguir, fui mandado pelo vice-rei a examinar a situação dos vendedores de sal. Li Dayi e outros disseram que eu pelo meu trabalho merecia ser recompensado com 1.200 taéis de prata, e reconheço ter aceitado o dinheiro.

Eis outra auto-confissão.

Há também o depoimento de Pan Dingche:

Mandado pelo vice-rei de Cantão, desloquei-me com Li Zhifeng a Macau, e de lá trouxe, para o vice-rei, prendas apreciadas em sete mil taéis de prata. Entreguei as prendas a Jiang Dashou para ele as entregar ao vice-rei, e reconheço que são verdade, as minhas confissões.

Tan Shouren também reconhece ter exigido para si próprio cem taéis de prata. Com base nestes factos, Qiu Rusong, Shi Tai, Chen Degong e Pan Ding Chen deveriam ser punidos com a decapitação por terem ultrapassado a fronteira proibida. Mas o que fizeram ocorreu antes da amnistia decretada, de modo a que são absolvidos. A prata e os outros bens devem ser confiscados. Qiu Rusong e Chen Degong devem ser demitidos como chefes militares e excluídos para sempre do quadros administrativos.

Há o depoimento do comerciante Huang (ou Wang) Qinglü:

O magistrado distrital Yao Qisheng deu-me 2.600 taéis de prata para eu os entregar ao vice-rei, e é verdade que entreguei a prata a Jiang Tingmo para ele a entregar ao vice-rei.

Há o depoimento de Liu Yijin:

Yao Qisheng deu-me mil taéis de prata. Depois de eu a ter aceite, servidores privados de Jiang Dashou foram retirando, sucessivamente, todos os mil taéis para comprarem tecidos de lã, arames metálicos e outras coisas, dizendo que as iam entregar ao vice-rei, etc., etc..

Há o depoimento de Hu Zongxue:

Quando fui com Pan Dingchen apanhar Tan Shouren, o seu irmão Tan Shouli deu-me cem taéis de prata, e é verdade que a aceitei e reconheço a minha culpa.

Há o depoimento de Ma Chenglong:

Quando fui com Pan Dingchen apanhar Tan Shouren, aceitei, 24 taéis de prata que me ofereceu Tan Shouli e reconheço a minha culpa.

Há o depoimento de Chen Risheng, secretário do vice-rei:

Jiang Dashou deu-me mil taéis de prata dizendo que era dos comerciantes Li Qi e Zheng Xiande, aceitei e reconheço a minha culpa. Destes factos infere-se que, servindo de intermediários do suborno, Wang Qinglü, Liu Yijin, Hu Zongxue, Ma Chenglong e Chen Risheng incorreram na mesma culpa que a pessoa subornada. Mas como a sua culpa foi anterior à amnistia, devem ser absolvidos, devendo a prata que receberam ser confiscada. Quanto aos mil taéis de prata que recebeu Chen Risheng dos referidos comerciantes de sal, o assunto será tratado quando Jiang Dashou for apanhado.

Há o depoimento de Li Jinbo, servidor privado de He Fanghu:

Recebi mil taéis de prata do meu amo He Fanghu. Com o dinheiro comprei tecidos de seda para os vender em Zhaoqing, Xinhui, Shunde e outros lugares. Tang Fengming, colega meu, disse-me que nesses lugares os tecidos de seda não podiam vender-se a bom preço. Contou-me que pessoas das autoridades oficiais iam deslocar-se a Macau para retirar mercadorias sujeitas a confisco, e por isso era preferível guardar por enquanto em casa dele os tecidos de seda, à espera do momento da viagem dos homens das autoridades oficiais para lá, momento em que talvez pudéssemos nós ir, também, mercadejar a Macau. Assim, deixei os produtos em casa de Tang Fengming. Mas não sei quem denunciou a nossa intenção, e os funcionários fronteiriços revistaram a casa e descobriram os tecidos. Não encontrando, porém, nada de ilícito, devolveram-nos. Logo a seguir, pessoas enviadas pelo vice-rei vieram arrebatar 17 arcas guardadas na casa, entre as quais 8 com tecidos de seda meus, e que eram mais de 300 peças, sendo as restantes 9 de Tang Fengming, o meu colega.

TEXTO II

(...) vendera, etc., etc., tudo isso chegando ao conhecimento deste servidor de Vossa Majestade. Apesar de estar sempre ciente de que os assuntos que se prendem com os bárbaros de Macau competem (ao vice-rei e) ao governador civil, não ousei deixar de intervir para impedir semelhante acção, levando em conta a rigorosa interdição marítima. É por isso que ordenei ao referido magistrado distrital que reexaminasse o assunto e indiquei-lhe que o vice-rei só podia tomar uma decisão de acordo com as instruções imperiais. Mais tarde, o vice-rei voltou à capital da província, em fins do sétimo mês e, ao ser informado de que eu tinha ordenado o adiamento para o dia 7 do oitavo mês, não concordou com a minha ideia, e todos tiveram que obedecer. De repente, no dia 8 do oitavo mês deste ano, por carta do vice-rei fiquei a saber que foram apanhados barcos transgressores pertencentes a Li Qixiang e outras pessoas, entre as quais três subalternos meus, a saber, Tan Shouren, Cheng Wanli e Wang Weizhong, que foram conduzidos para serem interrogados. Verifiquei que Tan Shouren e Wang Weizhong estão agora na capital da província e que, até agora, não conseguimos apanhar Cheng Wanli. Em vista da gravidade do assunto, preferi não esperar muito antes de submeter Tan Shouren e Wang Weizhong aos interrogatórios por parte do vice-rei. Quanto a Cheng Wanli, conduzi-lo-ei perante o vice-rei mal o tivermos apanhado. Mais tarde, porém, cuidei que o caso era alarmante uma vez que ocorreu numa época de rigorosíssima interdição fronteiriça, e fiquei surpreso perante um facto de tão insolente transgressão. Reflecti uma e outra vez e no dia 18 consegui deter Cheng Wanli e conduzi-lo algemado para a capital da província, para eu o interrogar pormenorizadamente.

O depoimento de Cheng Wanli é o seguinte:

Sempre observei honestamente a lei. O que aconteceu foi que o meu parente Zhang Yuantai, sub-magistrado do distrito de Nanhai e encarregado da superintendência dos barcos mercantes, ia deslocar-se a Macau numa missão de serviço e pediu-me que o acompanhasse. Entretanto, Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, disse que o vice-rei tinha anunciado explicitamente que, por ocasião da viagem de funcionários oficiais a Macau para retirarem as mercadorias, sujeitas a confisco, dos bárbaros, os comerciantes eram autorizados a ir lá também mas tinham de pagar as quatro décimas partes. Eu tinha assuntos a tratar em Macau e por isso reuni alguma soma de dinheiro como capital e declarei perante o magistrado Yao que queria ir comprar algumas mercadorias. O magistrado concedeu-me um salvo-conduto carimbado e escrito em caracteres vermelhos a tinta de cinábrio. Eram muitos os comerciantes que nessa ocasião se deslocavam a Macau, muitos deles desconhecidos para mim. Só conhecia Wu Peiyu, Huang Bahua, Cheng Qiwen, Fang Yu e Li Qi, bem como Shi Tai, o mordomo de Sua Excelência o vice-rei, de alcunha Shi o da Cabeça Rachada, o capataz (qigu, 旗鼓) Chen Xunyu, e os comerciantes mandarins Cheng Zhifu e LI Zhifeng, e quatro homens que eu conhecia. Eles vendiam mercadorias finas, guardadas em várias arcas de couro, além de sândalo, pimenta, barbatanas de tubarão, noz moscada, Aucklandia lappa, Acacia catechu, e outras coisas, em quantidades que eu ignorava. Foram lá com o magistrado Yao, ochefedeadministração (zhaomo, 照磨) Zhan, o sub-magistrado distrital (xiancheng, 縣丞) Zhang e o secretário-ajudante (limu, 吏目) Gu, e todos eles voltaram juntos, sem que os molestassem os guardas do posto de controle fronteiriço, que pareciam já saber quem eram e para que vinham. Só depois de arrecadar as quatro décimas partes é que foi permitido o carregamento das mercadorias e o seu transporte para as nossas lojas. Chegado tudo isso ao conhecimento deste servidor de Vossa Majestade, mandei averiguar os endereços de Wu Peiyu, Huang Bahua e Cheng Qiwen. Enviei agentes para os prender, mas só conseguiram apanhar Wu Peiyu e trouxeram-no perante mim.

Eis o depoimento de Wu Peiyu:

Sou oriundo da província de Fujian e moro na aldeia de Shicun, distrito de Xiangshan, vivendo da lavoura. No dia 25 do quarto mês intercalar deste ano, o senhor Yao, magistrado do distrito de Xiangshan, ia para Macau a fim de exigir as mercadorias sujeitas a confisco. Anunciou perante os comerciantes que aqueles que tinham mercadorias antigas em Macau podiam aproveitar o ensejo para as retirar pagando as quatro décimas partes, e só uma décima parte em caso de mercadorias novas. Na altura, havia, ainda, algumas dúvidas entre os comerciantes, e então o senhor Yao prometeu, perante todos, que informaria de tudo isso a Sua Excelência o vice-rei, e só assim os comerciantes se deixaram convencer. Eu ia carregar um barco de mercadorias tais como sândalo e pimenta. Apresentei a factura ao senhor Yao, paguei a percentagem e vistoriaram o peso das minhas mercadorias antes de me autorizarem a carregar o barco. Mantenho ainda o recibo e o certificado de autorização de carregamento. Foi o chefe de administração (zhaomo) Zhan que custodiou a navegação dos barcos até a Cantão, onde as mercadorias foram distribuídas entre os diversos comerciantes. No caminho, sempre que os guardas interrogaram, foi o senhor Yao quem se apresentou como o responsável e a passagem foi franqueada. Continua o depoimento:

O meu barco era do tipo Xiangshan 16, ao passo que os outros tinham sido cedidos aos comerciantes pelo senhor Yao, na minha ausência. Todos os outros não oriundos da província de Guangdong tinham como chefe Li Boming, e eu não os conhecia, excepto o próprio Li Boming, que era comerciante oficial ao serviço de Sua Excelência o vice-rei. As mercadorias de todos os barcos estavam sob o controle do magistrado Yao e de Li Boming, e eu não ousei perguntar-lhes nada.

Conseguiram apanhar Fang Yu e Li Qi e conduziram-nos perante mim.

O depoimento de Fang Yu é o seguinte:

Foi com algum dinheiro que me emprestara Tan Shouren, o meu amo, que há alguns anos pude comprar em Macau certa quantidade de bétel, chumbo negro, pimenta e sândalo. Mas sobreveio o decreto de interdição marítima, e não pude trazer os produtos comprados. Já dava o caso por perdido, quando no quarto mês deste ano ouvi dizer ao magistrado Yao do distrito de Xiangshan que Sua Excelência o vice-rei tinha anunciado explicitamente que podiam deslocar-se a Macau todos os comerciantes, quer para trocas por novas mercadorias, quer para retirar as mercadorias antigas já compradas mas lá detidas pela interdição marítima, e que teriam de pagar um imposto equivalente às quatro décimas partes dessas mercadorias. Homem inculto que sou, não pude compreender a complexidade das coisas, e tomei parte na jornada. Além disso, vi que durante a navegação dos nossos barcos nos conduziam quatro mandarins, a saber, o magistrado distrital Yao, o chefe de administração (zhaomo) Zhan, o sub-magistrado distrital Zhang e o secretário ajudante (limu) Gu. Foram também eles, os quatro, que custearam a viagem de regresso. Antes de partirmos para a viagem de regresso, o chefe de administração Zhan examinou com precisão as quantidades a arrecadar, antes de nos permitir carregar os barcos e iniciar a navegação para Cantão e descarregar os barcos levando cada um as suas mercadorias para as suas lojas. Como prova da minha inocência tenho ainda o certificado expedido pelo magistrado Yao, carimbado e escrito em caracteres vermelhos com tinta de cinábrio, que demonstra que não fiz a minha viagem sem autorização. Lá foram também Shi Tai, o mordomo do vice-rei, o seu capataz (qigu, 旗鼓) e os comerciante oficiais Cheng Zhifu e Li Zhifeng, todos com destino a Macau. As mercadorias que estes quatro trouxeram de Macau foram sândalo, pimenta, pérolas, rosários de coral, bezoar de boi, borneol, penas coloridas de aves exóticas, droguete, etc., mercadorias preciosas que ninguém desconhece. Mais tarde, no início do sétimo mês, fizeram outra viagem para lá a bordo de vários barcos, acompanhando o magistrado Yao, etc., etc..

Idêntico é o conteúdo do depoimento de Li Qi, interrogado logo a seguir:

Foi apanhado e conduzido perante mim um tal Chen Bing, aliás Cheng Qiwen. O seu depoimento é o seguinte:

No quarto mês deste ano, como o magistrado distrital Yao anunciara a decisão do vice-rei de convocar comerciantes para irem a Macau, declarando que das mercadorias antigas se arrecadariam as quatro décimas partes e que em caso de compra de mercadorias novas só se arrecadaria uma décima parte, e que sobre as vendas aos bárbaros se arrecadariam as três décimas partes, tudo isso para completar a proporção global das quatro décimas partes, e que as mercadorias só podiam ser levadas para os barcos para carga depois do pagamento do devido imposto das décimas numa mesa de controle montada pelo chefe de administração (zhaomo) Zhan.

Wu Peiyu mostrou cinco recibos de pagamento de imposto; Fang Yu e Li Qi, um recibo concedido a Wu Yan, e Cheng Wanli, outro concedido a Cheng Fangyu. Ao serem interrogados sobre o número de recibos que tinham sido concedidos, os arguidos disseram que como foram muitos os comerciantes que participaram na jornada, foram muitos também os recibos expedidos. Alguns recibos foram para uma só pessoa, e outros, para várias conjuntamente. Considerando que nos depoimentos dos arguidos estavam mencionados os nomes do mordomo e do capataz do vice-rei, eu, como humilde servidor de Vossa Majestade, achei muito intrigante a hipótese de Sua Excelência o vice-rei ter enviado pessoas suas para além da fronteira proibida, caso espantoso, se revelasse verdadeiro. Receava que houvesse mentiras nos depoimentos. Mas segundo as afirmações categóricas de Cheng Wanli, Fang Yu e outros nos seus depoimentos, é pura verdade o vice-rei ter enviado pessoas suas a Macau. Então enviei agentes para averiguar, confidencialmente, os factos junto do comandante das forças navais (shuishi tidu, 水師提督), e um sargento (bazhong, 把總), de nome Ruan Yu, testemunhou que no dia sete do sétimo mês, Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, a bordo de um barco, o juiz de paz (fumu, 撫目) levando um barco de espadela e outro de remos, Liang Jingyi, a bordo de um barco de remos, e Chen Degong e Shi Tai, a bordo de dois barcos, passaram por Jikouzi, de Hengshi, em direcção a Xiangshan, etc., etc..

Além do mais, conseguimos apanhar Huang Bahua. O seu depoimento é o seguinte:

Sou oriundo da província de Fujian. No dia 18 do quarto mês intercalar, Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, anunciou perante os comerciantes que, por decisão do vice-rei (...)

TEXTO III

(...) o droguete, carcomido, não era bom, deram (faltam 8 caracteres) perguntar a Yao Qisheng. Segundo o depoimento de Chen Degong, deram-lhe (faltam 6 caracteres) respondi a Yao Qisheng para ele, por sua vez, responder aos bárbaros, etc., etc..

No interrogatório do vice-rei Lu Xingzu, perguntámos-lhe:

Segundo os depoimentos do magistrado distrital Yao Qisheng, oferecestes aos Macaenses a isenção da evacuação, com a condição de que te pagassem 200 mil taéis de prata. Quer pudessem continuar a residir lá, quer não, o simples facto de propores a isenção perante a corte imperial pressupunha a necessidade de 50 mil taéis. Chegou-se a um acordo no sentido de, em caso de aprovação imperial da isenção, poderiam os Macaenses continuar a residir sem mudança. Enviaste o teu subalterno Chen Degong e o teu servidor privado Shi Tai para cobrar o dinheiro prometido. Eles foram a Macau com Yao Qisheng. Chen Degong recebeu cinco árvores de coral, um rosário de contas de coral com bolinhas de âmbar, sete rosários de contas pequenas de coral, e Shi Tai recebeu 1.300 taéis de prata, tudo para ser entregue a ti. Como é que aconteceu tudo isso? O arguido responde:

Recebêramos o decreto imperial de evacuação de Macau, mas um dia Wang enviou a minha casa Liu Bing, um subalterno seu, para me comunicar que os Macaenses tinham proposto aos nossos funcionários que foram impor a execução do decreto de evacuação, que se nos abstivéssemos de os forçar a mudar e os deixássemos continuar o seu comércio marítimo, eles poderiam pagar 200 mil taéis de prata. Ao ouvir isso, eu afirmei que entendera e que teríamos de pensar com calma sobre esse assunto. A seguir, redigi (...)5

II. PANO DE FUNDO DA CHANTAGEM DE LU XINGZU POR PEITAS DOS MACAENSES

Não está datado nenhum dos três textos dos Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça da dinastia Qing. No entanto, pode-se inferir do seu conteúdo que devem ser posteriores ao undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi (1667). Os dois arguidos principais envolvidos no caso investigado pelo Ministério da Justiça eram Lu Xingzu, vice-rei de Cantão (Liang Guang Zhongdu), literalmente, governador geral das províncias de Guangdong e Guangxi e Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan. Nos textos consta que, para evitar a catástrofe da evacuação e poderem continuar o comércio marítimo, os Portugueses de Macau, no momento de maior severidade da execução da interdição marítima durante o reinado do imperador Kang Xi, prometeram a Lu Xingzu um suborno de 200 mil taéis de prata, suborno que ficou confirmado num inquérito posteriormente instaurado. Trata-se de um caso escandaloso, pouco comum nos primórdios da dinastia Qing. Porém, é de estranhar que a respeito de um caso tão grave não se encontre nem uma só palavra nas fontes em língua chinesa, nem nas crónicas oficiais da História, nem nos livros de acontecimentos políticos históricos, nem mesmo nas crónicas locais, havendo como única fonte estes três textos que estamos a examinar.

Vejamos, antes de mais nada, as informações sobre a pessoa de Lu Xingzu. Não há biografia sua nem no Qing Shi Lie Zhuan (清史列傳, Crónicas Gerais da História da Dinastia Qing), nem no Qing Dai Qibai Mingren Zhuan, (Biografias de Setecentas Pessoas Ilustres da Época da Dinastia Qing 清代七百名人傳 ).

A sua biografia é ausente, também, do Bei Zhuan Ji (Colectânea de Biografias Gravadas em Lápide, 碑傳集), tanto na sua primeira e segunda edição continuada, como, também, das várias Crónicas de Guangdong posteriores ao começo da dinastia Qing. A sua vida só é mencionada no Qing Guo Shi (História do Estado de Qing, 清國史), onde há uma "biografia de Lu Xingzu" no volume 27, em que encontramos a seguinte passagem:

Lu Xingzu, pertencente à comunidade Han de bandeira branca orlada, foi promovido para o cargo de governador civil (xunfu, 巡撫) de Guangdong. (...) No segundo mês do ano 4 do reinado do imperador Kang Xi, chegou a ser governador civil de Guangdong. (...) Pouco depois, foi eliminado o cargo de governador civil de Guangxi, e ele foi designado para acumular esse cargo. (...) No nono mês do ano 6 do reinado do mesmo imperador, solicitou, por sua própria iniciativa, a demissão atribuindo-se a culpa de não ter podido liquidar o alastrante bandoleirismo. O imperador despachou para o Ministério de Quadros Administrativos estudar o assunto. O Ministério sustentou que ele devia ser demitido por não ter podido esmagar o bandoleirismo, proposta que foi aceite pelo imperador. Morreu no undécimo mês do mesmo ano.6

Eis a única biografia escrita de Lu Xingzu, segundo a qual foi demitido por não ter podido eliminar o bandoleirismo e morreu dois meses após a sua demissão. Mas o texto não diz nada a respeito da maneira como morreu.

Segundo o Qing Shi Lu (Crónicas Verdadeiras da Dinastia Qing, 清實錄), Lu Xingzu foi promovido a governador civil de Guangdong no dia 15 do segundo mês do ano 4 do reinado do imperador Kang Xi e demitido no ano 6 do reinado do mesmo imperador. No Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Kang Xi, ou Shengzu, da Dinastia Qing, vol. 24), encontramos:

No dia 14 do undécimo mês (do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi), Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, e Wang Lairen, governador civil de Guangdong, atribuindo-se incompetência nos seus cargos, solicitaram a demissão e foram demitidos.7

Vê-se bem que a informação desta passagem é ainda mais ambígua, omitindo totalmente as razões da demissão e, mesmo, o facto da sua morte. Sabemos que solicitou a demissão no nono mês e foi demitido no dia 18 do undécimo mês, e, segundo a História do Estado de Qing, já citada, morreu no undécimo mês, isto é, logo após a notícia da sua demissão.

A respeito da morte de Lu Xingzu, há informações complementares em fontes ocidentais. Montalto de Jesus diz no seu livro Macau Histórico:

Informado de que o governador de Guangdong, movido com intuitos de proveito pessoal, tinha autorizado tacitamente o comércio exterior, o imperador deu-lhe, sugestivamente, uma cinta de seda. O governador teve de se suicidar, sendo condenados à morte mais de cem subalternos seus.8

O estudioso americano J. E. Jr. Wills, que consultou numerosas fontes (incluindo documentos do Padre Luís da Gama e do Senado da época), diz:

A 9 de Janeiro de 1668, Lu Xingzu suicidou-se na cadeia, muito provavelmente porque sabia ter sido condenado à morte. Yao Qisheng foi demitido. Os comerciantes implicados foram severamente multados, sofrendo grandes prejuízos. No dia do suicídio de Lu, todos eles foram amnistiados.9

O dia da demissão de Lu Xingzu foi o dia Mu Wu (14) do undécimo mês do ano 6 do reinadodo imperador Kang Xi, isto é, o dia primeiro de Janeiro de 1668 no calendário gregoriano. O dia do seu suicídio, isto é, o dia 9 de Janeiro de 1668 na versão de Wills, foi o dia 22 do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, que coincide com a informação fornecida pela História do Estado de Qing, onde se diz que "morreu no undécimo mês do mesmo ano".

Ainda mais complexas são as informações biográficas de Yao Qisheng, o outro protagonista do caso da chantagem e suborno de Macau. Célebre pela sua contribuição, durante o reinado do imperador Kang Xi, para a pacificação de Taiwan, Yao aparece biografado em todos os livros de História. Na História do Estado de Qing, vol. 62, há uma "Biografia de Yao Qisheng", onde se diz:

Yao Qisheng (...), bem sucedido nos exames imperiais do ano 2 do reinado do imperador Kang Xi, foi nomeado magistrado do distrito de Xinagshan, província de Guangdong. No ano 8 (deve ser 6) do reinado do imperador Kang Xi, foi destituído por ter autorizado arbitrariamente a abertura marítima.10

No Qing Shi Gao (História da Dinastia Qing, 清史稿), vol. 260, há uma "Biografia de Yao Qisheng", onde se diz:

Yao Qisheng, aliás Xizhi, (...) bem sucedido como o primeiro nos exames imperiais do ano 2 do reinado do imperador Kang Xi, foi nomeado magistrado do distrito de Xiangshan, província de Guangdong. Os seus predecessores estavam na cadeia por não terem podido arrecadar os impostos nas quantias fixadas pela dinastia. Yao Qisheng informou o vice-rei e o governador civil de que todos os défices já estavam cobertos por ele. Mais tarde, foi demitido por ter autorizado arbitrariamente o fim da interdição marítima.11

No livro Ju Ye Tang Wan Ji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye), vol. 5, há uma biografia de Yao Qisheng onde se lê:

Yao Qisheng (...) foi o primeiro nos exames imperiais que se verificaram no ano 2 do reinado do imperador Kang Xi e logo foi nomeado magistrado do distrito de Xiangshan, província de Guangdong. (...) Recém-chegado a Xiangshan, achou a zona muito assolada pelas correrias duma quadrilha de ladrões chefiados por Huo Lucheng, sem que os pudessem reprimir nem o vice-rei de Cantão nem o governador civil de Guangdong. Valendo-se de um inteligente estratagema, Yao conseguiu capturar o cabecilha dos ladrões, que, porém, fugiu do cativeiro e voltou às suas malfeitorias. Yao conseguiu capturá-lo novamente numa acção militar de surpresa e trouxe, triunfalmente, de volta o cativo, de modo que a paz voltou a reinar nas áreas marinhas. No entanto, o vice-rei de Cantão e o governador civil, ciumentos do talento de Yao, imputaram-lhe a grave culpa de ter aberto arbitrariamente o tráfico marítimo, infringindo o decreto imperial de interdição marítima. Sobre ele já pairava o perigo de morte. Yao foi de noite pedir audiência ao príncipe de Pingnan, e impressionou-o falando-lhe da verdade dos factos, de modo que o príncipe de Pingnan informou a corte imperial defendendo a inocência de Yao, e que tanto o vice-rei como o governador civil, derrotados na sua calúnia, se viram forçados ao suicídio. Todavia, Yao foi demitido.12

Mais ou menos idêntica informação é fornecida por Quan Zuwang no seu Yao Gong Shendao Di-er Beiming (Segunda Versão da Biografia do Senhor Yao Gravada em Lápide):

No ano 2 do reinado do imperador Kang Xi, (...) foi nomeado magistrado do distrito de Xiangshan. Mal tinha tomado posse, achou a zona gravemente assolada pelos ladrões de Macau chefiados por Huo Lucheng. Com inteligente estratagema, Yao conseguiu capturar Huo Lucheng, mas este escapou logo, e Yao capturou-o novamente numa operação de surpresa, pacificando assim Macau. Pelos seus merecimentos, Yao devia ter sido alvo de grandes recompensas. Mas o vice-rei de Cantão e o governador Civil odiavam-no, por ciúmes e, contra toda a razão, acusaram-no de abertura arbitrária do tráfico marítimo, ameaçando-o com a pena de morte. À meia noite, Yao foi visitar Shang Kexi, o príncipe de Pingnan, e contou-lhe a injustiça de que estava a ser vítima. Shang Kexi informou a corte imperial do trato injusto que Yao estava a sofrer. Tanto o vice-rei de Cantão como o governador civil, perante o fracasso da sua caluniosa acusação, tiveram de se suicidar. Yao, por sua parte, foi demitido e ficou morando em Guangdong.13

Yuan Mei escreve na sua Biografia do Sr. Yao, governador civil de Fujian:

De apelido Yao, (...) foi bem sucedido nos exames imperiais do ano 2 do reinado do imperador Kang Xi. Foi nomeado magistrado do distrito de Xiangshan, província de Guangdong. Desde os últimos anos da dinastia Ming que a província estava a ser assolada pelos bandidos e era impossível arrecadar os impostos. Sete magistrados, sucessivos, estavam na cadeia por não terem podido cobrar os impostos nas quantias fixadas pela dinastia. O nosso biografado disse entre suspiros: "No ano que vem, seremos oito". Arranjou um jantar com música, pôs em liberdade os sete ex-magistrados que o precederam, convidou-os para o jantar bebendo vinho à vontade, e logo, vestindo-os decentemente, deixaram-nos voltar a casa tranquilamente. Então encaminhou um relatório ao vice-rei e ao governador civil da província informando-os de que os 170 mil taéis de prata, défice fiscal da responsabilidade acumulada dos sete ex-magistrados, já tinham sido cobrados e revertidos ao fisco em tal dia de tal mês. Grande foi a surpresa do vice-rei e do governador civil ao receberem o relatório. Suspeitavam que Yao devia ser um ricaço e que o que fazia era um acto de liberalidade e misericórdia a expensas da sua própria fortuna, sem saberem que Yao, na realidade de condições materiais modestas, não tinha podido fazer nada para compensar os défices fiscais. Algum tempo depois, explodiu a rebelião dos três príncipes (isto é, o levantamento iniciado em 1673 contra a dinastia Qing por Wu Sangui, o príncipe de Pingxi, Geng Jingzhong, filho de Geng Jimao, o príncipe de Jingnan, e Shang Zhixin, filho de Shang Kexi, o príncipe de Pingnan, levantamento que foi esmagado em 1681 - Nota do trad.), e o imperador mandou uma expedição punitiva para o Sul, chefiada pelo príncipe Lian. Yao disse ao'seu amigo Wu Xingzha: "Meti-me em tão grandes apuros que não poderei ficar a salvo a menos que consiga fazer uma extraordinária contribuição para o esmagamento da rebelião ajudando o príncipe Lian. E você é a única pessoa em condição de me recomendar".14

Esta passagem revela ainda uma circunstância relevante ao caso, isto é, o relacionamento entre Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, por um lado, e Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, e Wang Lairen, governador civil da província de Guangdong, por outro.

No ano 2 do reinado do imperador Kang Xi (1663), Yao Qisheng tomou posse como magistrado do distrito de Xiangshan, numa época em que existia em Macau uma força contrária à dinastia Qing, chefiada por Huo Lucheng, força que nas passagens que citámos era chamada de "quadrilha de ladrões de Macau". Das fontes citadas nada consta a respeito do que realmente eram os referidos "ladrões". Mas segundo o Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Kang Xi da Dinastia Qing, 清聖祖康熙實錄), vol. 15, no quarto mês (do ano 4 do reinado do imperador Kang Xi), Lu Chonjun, governador civil de Guangdong, informou que Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, tinha conseguido pacificar, com amnistia, mais de 4.000 ladrões tancareiros, chefiados por Huang Qide.15

Vê-se bem que os chamados "ladrões de Macau" eram na realidade tancareiros das águas de Macau (incluindo as ilhas da Taipa e Coloane, o canal da Taipa e o Porto Interior). Naquela ocasião, foram "pacificados" mais de 4.000, depois da captura do seu cabeça Huo Lucheng. Deve ter havido um período de grande influência desta "quadrilha", já que nem o vice-rei nem o governador civil podiam "reprimi-los",16 ao passo que Yao Qisheng, dois anos depois de tomar posse, conseguiu eliminar os "ladrões", de modo que tanto o vice-rei como o governador civil ficaram "ciumentos do talento de Yao",17 facto que determinou desavenças entre ele e os seus dois superiores. Eis uma das circunstâncias que fazem parte do pano de fundo do caso da chantagem de Lu Xingzu por obter peitas dos Portugueses de Macau.

Uma segunda circunstância consiste nos atrasos no arrecadamento dos impostos que o distrito de Xiangshan devia entregar ao fisco da dinastia Qing. A partir dos últimos anos da dinastia Ming, a província de Guangdong vinha sendo cenário de intermináveis guerras devastadoras da sua produção agrícola, que empobreceram os lavradores a tal ponto que não podiam pagar os impostos: "... era impossível a arrecadação dos impostos". Sete magistrados sucessivos que precederam a Yao Qisheng "estavam na cadeia por não terem podido cobrar os impostos nas quantias fixadas pela dinastia".18

No livro História do Estado de Qing, "Biografia de Lu Chongjun", encontramos uma informação pormenorizada sobre os atrasos no pagamento dos impostos na província de Guangdong:

Considerando as consequências dos longos anos de guerra na província de Guangdong, Lu Chongjun solicitou à corte imperial a isenção do pagamento retroactivo dos impostos acumulados até ao ano 4 do reinado do imperador Kang Xi. Mas a resposta imperial foi a seguinte:

Dada já a isenção do pagamento dos impostos em atraso acumulados até ao ano 18 do reinado do imperador Shun Zhi, é improcedente a proposta de Lu Chongjun, motivada simplesmente por considerações para com os interesses do povo miúdo, no sentido de solicitar a isenção do pagamento em atraso dos impostos acumulados até ao ano 4 do reinado vigente. Ordenamos que a arrecadação se efective com todo o rigor que se impõe.19

Ainda mais dramática era a situação dos atrasos no pagamento dos impostos no distrito de Xiangshan. Não pode ser anterior ao ano 7 do reinado do imperador Shun Zhi (1650) a data da implantação do controle da dinastia Qing sobre este distrito.20 No entanto, no ano 2 do reinado do imperador Kang Xi (1663), sete magistrados sucessivos do distrito já "estavam na cadeia por não terem podido cobrar os impostos nas quantias fixadas pela dinastia", e a soma do défice ascendia a nada menos que 170 mil taéis de prata. Yao Qisheng tomou posse justamente numa época em que no distrito de Xiangshan e nos outros distritos vizinhos se estava a impor com mão de ferro a evacuação do litoral decretada pelas autoridades centrais da dinastia. Tudo isso demonstra o quanto era difícil cumprir as quotas de cobrança fiscal impostas ao distrito de Xiangshan pelas autoridades centrais. Qual a solução? A única solução possível era a abertura do comércio de Macau, que não permitiria apenas cumprir as tarefas dele de cobrança de impostos, como também salvar os sete ex-magistrados do distrito que o precederam e que "estavam na cadeia". No entanto, a abertura do comércio de Macau significaria uma franca infracção duma rigorosa interdição decretada pela dinastia. Ainda no quarto mês do ano 4 do reinado do imperador Kang Xi, foi promulgado um novo decreto imperial:

Caso alguém, sob qualquer pretexto, ouse mercadejar arbitrariamente, no litoral, em conluio com os rebeldes, os responsáveis das comunidades da vizinhança que, sabendo isso, não o denunciarem, serão punidos com o enforcamento, e os oficiais e soldados das guarnições costeiras que, sabendo isso, o tolerarem, serão considerados como cúmplices e punidos com a decapitação.21

Yao Qisheng parece ter sido um homem generoso e cavalheiro. Ao salvar os sete predecessores seus que "estavam na cadeia", levou as coisas até às últimas consequências pondo-os a todos em liberdade e informando as autoridades superiores de que "os 170 mil taéis de prata, défice fiscal da responsabilidade acumulada dos sete ex-magistrados, já tinham sido cobrados e revertidos ao fisco".22 O que fez foi "abrir sem autorização o proibido comércio" de Macau e elevar a percentagem da arrecadação fiscal, passando das "duas décimas" para as "quatro décimas partes" das mercadorias: ... O magistrado distrital Yao anunciara a decisão do vice-rei de convocar comerciantes para irem a Macau, declarando que das mercadorias antigas se arrecadariam as quatro décimas partes e que em caso de compra de mercadorias novas só se arrecadaria uma décima parte, e que sobre as vendas aos bárbaros se arrecadariam as três décimas partes, tudo isso para completar a proporção global das quatro décimas partes.23

A intenção de Yao Qisheng de resolver deste modo o problema dos atrasos no pagamento dos impostos no distrito de Xiangshan deve ter sido outra das circunstâncias que faziam parte do pano de fundo do caso da chantagem de Lu Xingzu ao obter peitas dos Portugueses de Macau.

Uma terceira circunstância foi o facto de os Portugueses de Macau estarem a defrontar-se com extremas dificuldades de sobrevivência após a promulgação, no ano l do reinado do imperador Kang Xi, do decreto de evacuação do litoral e de interdição marítima. O problema da evacuação marítima de Macau reveste-se de grande complexidade. Muitos dos estudiosos sustentam que o decreto de evacuação promulgado pelo imperador Kang Xi se aplicava também a Macau e que Macau escapou à evacuação graças, nomeadamente, aos bons ofícios efectivados em Pequim pelo Jesuíta Johann Adam Schall von Bell, que foi quem salvou os Portugueses de Macau desta catástrofe. Segundo Anders Ljungstedt, o imperador Kang Xi promulgou em 1662 o decreto de que todos os moradores do litoral deviam mudar-se 30 li terra adentro e que todas as embarcações eram proibidas de sair ao mar, sob pena de morte. Foi graças às actividades de Schall von Bell que o imperador Kang Xi concordou com não impor a mudança dos moradores de Macau terra adentro, mantendo-se em vigor, porém, a interdição marítima.24 (traduzido do chinês)

E segundo Montalto de Jesus, em 1662, a corte imperial promulgou o decreto do litoral estabelecendo que todos os moradores do litoral deviam mudar-se 30 li terra adentro e que se deviam suspender todo o comércio e toda a navegação marítimos, sob pena de morte. Nessa altura, a situação de Macau tornou-se muito precária. Em cumprimento do referido decreto, todos os moradores chineses mudaram-se, mas isso não satisfez ainda as prementes precauções da corte imperial, que exigiu que os Portugueses obedecessem igualmente a esse decreto e que fossem destruídas as fortificações por eles construídas em Macau, para que não as pudessem aproveitar as forças de Zheng Chenggong. A não ser pelos bons ofícios de Schall von Bell, jesuíta então bastante em graça em Pequim, teria deixado de existir aquela colónia.25 (traduzido do chinês)

É duvidosa a versão, sustentada tanto por Ljungstedt como por Montalto de Jesus, de que Macau deveu a sua isenção da evacuação aos bons ofícios de Johann Adam Schall von Bell. O decreto de evacuação do litoral foi oficialmente promulgado no ano l do reinado do imperador Kang Xi, ao passo que no ano 17 do reinado do precedente imperador Shun Zhi já começara Schall von Bell a cair em desgraça junto da corte imperial chinesa. O primeiro a atacá-lo foi o eunuco Wu Mingxuan, que apresentou acusações contra ele no ano 14 do reinado deste imperador (1667). Outro mandarim, Yang Guangxian, acusou-o no ano 17 do reinado do mesmo imperador (1660). No ano l do reinado do imperador Kang Xi (1662), Yang Guangxian desfechou uma intensa campanha contra os jesuítas, redigindo a sua obra Pi Xie Lun (Tratado sobre a Luta contra as Heresias, 闢邪論). No sétimo mês do ano 3 do reinado do imperador Kang Xi, Yang Guangxian atacou Schall von Bell num memorial apresentado ao imperador. No oitavo mês do mesmo ano, Schall von Bell foi preso e submetido a julgamento. No décimo mês do ano voltou a ser julgado e foi condenado à morte. Embora a sentença não fosse executada, o jesuíta permaneceu na cadeia até ao ano 5 do reinado do imperador Kang Xi, para morrer logo em Agosto do mesmo ano.26 Nestas circunstâncias, é difícil acreditar que ele estivesse ainda em condições de interceder na corte imperial chinesa em favor dos Portugueses de Macau para obter a sua isenção da evacuação. Isto, em primeiro lugar.

Em segundo lugar, na realidade, foi nos anos 1666 e 1667 que as autoridades cantonenses começaram efectivamente a impor a evacuação dos Portugueses de Macau e a sua mudança para o interior da China, ao passo que foi em Agosto de 1666 que morreu Schall von Bell, acabado de pôr em liberdade. Vejamos um registo de Beatriz Basto da Silva:

Em 1666, apareceu em Macau uma frota chinesa composta de 60 barcos com 6.000 soldados a bordo, para forçar os barcos portugueses a irem-se embora, ou, em caso contrário, os incendiar. (...) A 15 de Fevereiro de 1667, o magistrado do distrito de Xiangshan exigiu com insistência que a cidade de Macau pusesse em prática o decreto de evacuação do litoral, mas comprometeu-se a fazer o que pudesse para abrir novamente o comércio se Macau pagasse 250 mil taéis de prata. (...) A 31 de Março de 1667, uma carta procedente de Cantão diz que, face aos ataques do pirata Zheng Chenggong, inimigo do exército Qing, o imperador decretara a evacuação do litoral e a mudança de todos os seus moradores terra adentro, e que o governador de Guangdong tinha mandado pequenos barcos para Macau a fim de transferir terra adentro os Macaenses e os seus pertences. (...) A 7 de Abril de 1667, funcionários do forte de Qianshan tornaram público perante os moradores de Macau um decreto no sentido de que eles deviam arrumar os seus pertences e preparar-se para a mudança com destino ao interior, onde tinham sido escolhidos sítios para a sua morada. Mas tinham de começar por se concentrar na vila de Xiangshan, à espera de novo transporte fluvial.27 (traduzido do chinês)

O estudioso americano J. E. Jr. Wills, que obteve abundante material informativo de fontes portuguesas, indica:

No início de Novembro (de 1666), chegou às aguas de Macau uma frota de 60 a 70 barcos de guerra, com 5 ou 6 mil soldados a bordo. Reinava o pânico em Macau. Os presentes que o governo de Macau enviara foram rejeitados. Deu-se a ordem de que todos os barcos portugueses deviam ir imediatamente embora ou seriam incendiados... A acção verificou-se na noite entre os dias 14 e 15 de Novembro. Foram incendiados 4 veleiros e 3 juncos, e foi afundado um. Os mandarins exigiam que fossem incendiados todos os barcos portugueses, o qual só foi evitado graças a uma peita de 1.500 taéis de prata paga pelos proprietários dos barcos. (...) A 21 de Marco (de 1667), as autoridades chinesas afixaram em Cantão avisos, com cópias enviadas também a Macau, intimando os seus moradores a mudarem-se sem tardança terra adentro e dizendo que havia já uma área preparada no interior para a sua morada.28

É evidente que, como indicam Beatriz Basto da Silva e J. E. Jr. Wills com base em fontes portuguesas, a execução efectiva, em Macau, do decreto de evacuação só teve início em fins de 1666, altura em que Schall von Belljá tinha falecido. Estes factos demonstram que Macau escapou à trágica sorte da evacuação não devido a esforços de Schall von Bell, mas sim a outras razões.

Promulgado o decreto de interdição marítima, as autoridades da dinastia Qing não só impuseram um bloqueio marítimo a Macau impedindo os moradores chineses de saírem ao mar e de mercadejarem no litoral, "proibindo rigorosamente qualquer saída ao mar de qualquer barco dos comerciantes e dos moradores" e "implantando por toda a parte um estrito controle para não deixar entrar nem uma só embarcação do exterior",29 além do mais, em terra firme, estabeleceram em Hengshiji um posto de controle para vistoriar rigorosamente o trânsito do fornecimento de mantimentos para Macau com base num rigoroso cálculo do número da população macaense, abrindo o trânsito só a intervalos de alguns dias, controlando e mesmo impedindo a saída para Macau de todos os artigos de primeira necessidade".30 Atenazados por estas medidas asfixiantes que, tanto no mar como na terra, as autoridades do governo Qing adoptaram, os Portugueses de Macau viram-se privados dos meios essenciais de subsistência e mergulharam numa situação de indescritíveis privações".31 Sobretudo, a partir de Novembro de 1666, Macau ficou literalmente cercada por terra e por mar por uma frota chinesa de 60 a 70 barcos com 5 ou 6 mil soldados a bordo, bem como com a Porta do Cerco simplesmente fechada e o transporte de mantimentos cortado, debatendo-se assim com uma extrema miséria e fome. P. F. Navenete escreve mesmo: "Nos últimos anos, muitas mulheres chegaram a oferecer o seu corpo a troco do pão dos infiéis". Face a tanta miséria e fome, os Portugueses de Macau propuseram mesmo ao governador português de Goa o "abandono definitivo de Macau".32 Eis uma terceira circunstância que faz parte do pano de fundo do caso da chantagem de Lu Xingzu por obter peitas dos Portugueses de Macau.

III. COMO DECORREU, DO COMEÇO AO FIM, O CASO DA CHANTAGEM DE LU XINGZU PARA OBTER PEITAS DOS PORTUGUESES DE MACAU

Esclarecidas as três circunstâncias de fundo, já se toma fácil apurar como é que decorreu o caso da chantagem de Lu Xingzu por obter peitas dos Portugueses de Macau.

A fim de resolver o problema dos atrasos no pagamento dos impostos acumulados desde os anos do reinado do imperador Shun Zhi no distrito de Xiangshan, o magistrado Yao Qisheng tomou a audaciosa decisão de infringir a interdição marítima e abrir o comércio de Macau, única solução na altura para liquidar o "défice fiscal de milhares de taéis de prata" com que se defrontava o seu distrito. De outro modo, teria corrido a mesma sorte que os seus predecessores, indo parar também à cadeia. Eis a motivação por parte do distrito de Xiangshan, que concorreu para o que aconteceu.

Por parte de Macau, a interdição marítima, vigente de havia longos anos e que se vinha tornando cada vez mais rigorosa ao longo dos anos do reinado dos imperadores Shun Zhi e Kang Xi, impossibilitara praticamente o comércio exterior dos Portugueses de Macau. Como escreve H. B. Morse.

Durante dois anos inteiros desde 1662, os Portugueses de Macau não puderam realizar qualquer comércio. No verão de 1664, 15 barcos portugueses bem equipados e 4 barcos do rei do Sião foram forçados a ficar ancorados na baía de Macau, expostos à acção corrosiva e destrutiva das inclemências do tempo, sem que os seus proprietários ousassem solicitar permissão para uma pequena mudança de localização, por temor a severas punições por parte dos mandarins.33

Era do comércio marítimo que viviam os Portugueses de Macau. A impossibilidade de qualquer comércio durante longos anos representava, sem sombra de dúvida, uma gravíssima ameaça para a sua subsistência, condenando-os a tão grande miséria que "numerosos moradores estavam a passar fome" e que "muitas mulheres ofereceram o seu corpo a troco do pão dos infiéis".34 Era nestas circunstâncias que os Portugueses de Macau desejavam ardentemente obter da corte imperial chinesa o levantamento da interdição marítima bem como a abertura da Porta do Cerco, dando a entender às autoridades de Xiangshan a sua disposição em pagar tudo isso com um determinado preço.

Foi neste sentido que vieram a coincidir o que as autoridades de Xiangshan pensavam em fazer como solução para os seus problemas fiscais e o que os Portugueses de Macau almejavam como saída para a sua insuportável situação. No que diz respeito a Lu Xingzu, então vice-rei de Cantão, ele viu nisso uma excelente oportunidade para extorquir dinheiro aos Portugueses de Macau. Isto está registado tanto nos arquivos da dinastia Ming (sic? - o Tradutor) como em obras de Wills e outros autores. Segundo Wills,... em fins de Novembro de 1665, Yao Qisheng e um tal general Li trouxeram para Macau uma audaciosíssima proposta do vice-rei no sentido de que ele estava disposto a procurar a permissão de corte imperial para o levantamento da interdição marítima em Macau se os Portugueses de Macau lhe pagassem 100 mil taéis de prata. Os Portugueses consideravam que, incluindo o que já tinham pago (2.000 taéis por barco e o imposto de arqueação de cada barco), esta permissão para o reatamento do seu comércio marítimo lhes custaria uns 150 mil taéis de prata. Yao Qisheng e o general Li diziam que dos 100 mil o pagamento de 70 mil podia ser efectivado no momento da abertura do comércio marítimo, sendo necessário, porém, serem imediatamente pagos os restantes 30 mil (cuja necessidade tinham explicado os mandarins, noutro caso semelhante, aos Holandeses, dizendo que uma série de diligências de suborno a efectivar até a Pequim pressupunha a posse prévia de dinheiro de contado). Os Portugueses não tinham ao seu dispor uma soma tão vultuosa, mas ofereceram como hipoteca bens materiais no valor de 12 a 15 mil taéis, assegurando que pagariam os 30 mil no futuro.35

A versão de Montalto de Jesus é a seguinte:

A 4 de Novembro de 1665, o Senado, o Capitão, todos os clérigos e todas as pessoas importantes de Macau reuniram-se para estudar o problema do pagamento de uma soma vultuosa a troco da isenção de Macau da efectivação das medidas enervantes de restrição comercial adoptadas pelos mandarins. (...) o que disse ao chegar a Macau o magistrado do distrito de Xiangshan ajudou-os a acordarem para a necessidade de aceitar a proposta. Além dos direitos de desembarque já prometidos e do imposto de venda, o magistrado exigia de Macau outros 120 mil taéis de prata, dos quais 400 mil para a corte imperial, ficando o resto ao dispor dos mandarins locais de Guangdong. (...) o Senado decidiu solicitar uma redução do montante exigido, e noutro plenário o mesmo senador anunciou que, após todos os esforços possíveis, fora conseguido uma redução para 128.400 taéis, incluindo os direitos de descarga, já prometidos.36

Beatriz Basto da Silva escreve no seu livro:

Já em 1665 exigiram os mandarins o pagamento de 5 mil taéis de prata em troca de permissão para a nossa navegação, soma que ascendia aos 150 mil em 1666, dos quais 30 mil a pagar imediatamente. Como Macau não possuía dinheiro de contado, o pagamento foi realizado em prendas.37

Segundo os Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, que já citámos, o que se passou foi assim:

Há o depoimento do magistrado distrital Yao Qisheng: O vice-rei Lu Xingzu mandou-me para ir tomar posse das mercadorias sujeitas a confisco dos cinco barcos. Desloquei-me a Macau acompanhado de Zhan Qizhen e dei ordem ao bárbaro Ouvidor que me entregasse as mercadorias sujeitas a confisco. O Ouvidor e outros bárbaros responderam-me que já no ano da chegada das mercadorias tinham presenteado o vice-rei com 13 mil taéis de prata e, com a sua permissão, retirado as mercadorias, que logo acabaram de vender. Se agora se toma novamente necessário confiscar estas mercadorias, que já foram compradas por comerciantes chineses, a solução poderia ser as autoridades chinesas ficarem com as quatro décimas partes deixando ao dispor destes comerciantes as restantes seis décimas partes das mercadorias já vendidas. Pediram que transmitisse ao vice-rei uma solicitação no sentido de lhes autorizar a continuarem a residir em Macau e a manterem o comércio marítimo, oferecendo eles em troca outros 200 mil taéis de prata. (...) O vice-rei disse: Vou informar Sua Majestade deste assunto e solicitar-lhe autorização. Caso esta seja obtida, o montante deverá ser de 200 mil taéis. Quer se obtenha a autorização, quer não, o próprio facto de informar o imperador e lhe solicitar autorização já implicará a necessidade dum montante de 50 mil taéis.38

A coincidência, em geral entre os registos dos arquivos chineses e das fontes ocidentais (excepto certas diferenças em números) é suficiente para confirmar como verdadeiro o facto de Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, ter extorquido dinheiro aos Portugueses de Macau.

Além do mais, no intuito de reduzir à obediência e submissão os Portugueses de Macau e forçá-los a desembolsar o dinheiro, Lu Xingzu encenou toda uma série de ameaçadoras demonstrações de força. No início de Novembro de 1666, de 5 a 6 mil soldados das forças navais de Guangdong, a bordo de 60 a 70 barcos de guerra, vieram cercar Macau hermeticamente, intimando os barcos portugueses a irem-se embora imediatamente, sob pena de serem incendiados. O saldo foi o incêndio de 6 barcos.39 Em Fevereiro de 1667, 12 barcos chineses chegaram às margens de Vanchai e da Taipa, cercaram Macau e proibiram qualquer saída ao mar para a pesca ou para o transporte de lenha. Foi fechada, ao mesmo tempo, a Porta do Cerco e cortado o fornecimento de arroz.40 Em Março de 1667, foram afixados em Cantão avisos oficiais, com cópias enviadas a Macau, exigindo a mudança imediata, sem a menor demora, dos moradores de Macau para o interior, onde, segundo se dizia, já estava arranjada uma área para a sua moradia.41 Tão grande pressão tomou de pânico os Portugueses de Macau e prestou-se a que, sem se importarem com o preço, procurassem uma solução que possibilitasse a reabertura da Porta do Cerco e a retirada dos barcos de guerra chineses. Nos dias 21 e 22 de Abril de 1667, Yao Qisheng, em nome do vice-rei de Cantão, realizou em Macau negociações com os Portugueses. Ambas as partes chegaram a um acordo no sentido de os Portugueses se comprometerem a pagar 250.000 taéis de prata a troco da isenção da evacuação e da abertura de comércio marítimo.42 Yao Qisheng declarou ainda que os comerciantes chineses que tinham comprado mercadorias importadas pelos Portugueses podiam ir a Macau retirá-las com a condição de que entregassem as quatro décimas partes delas às autoridades oficiais. Esses comerciantes e outras pessoas podiam também levar mercadorias a vendê- las a Macau bem como comprar mercadorias dos Portugueses para vendê-las em Cantão.43

É evidente que, agindo assim, Yao Qisheng tencionava resolver o problema dos "atrasos no pagamento dos impostos" com que se defrontava o distrito de Xiangshan, enquanto Lu Xingzu se propunha extorquir uma vultuosa quantia em troca da solicitação de isenção de Macau da evacuação e de abertura da interdição marítima.

Foi após repetidas reflexões e mudanças de ideias que Lu Xingzu tomou a sua decisão. Segundo Wills, "Lu Xingzu foi o principal promotor que mais se esforçou para dissuadir a corte imperial de evacuar Macau. Os 250 mil taéis de prata foram-lhe pagos para cobrir as despesas de suborno e facilitar as coisas junto do mundo burocrático chinês, mas isso envolvia imensos problemas e riscos". Segundo um relatório de Lu Xingzu, com data de Fevereiro de 1667, ele estava muito contente com o acordo de abertura do comércio marítimo a troco dos 250 mil taéis dos Portugueses e preparava-se para interceder por Macau junto da corte imperial. A sua proposta, porém, esbarrou com a categórica oposição dos quatro ministros regentes, chefiados por Ao Bai, que rejeitavam qualquer ideia de abertura da interdição marítima. Rejeitaram, por exemplo, em Dezembro de 1666, a proposta dos Holandeses de abertura do comércio em Xiamen (Amoy), bem como a proposta de autorizar comerciantes cantonenses a deslocarem-se a Macau para comprar mercadorias importadas dos Portugueses. Lu Xingzu ficou particularmente alarmado com "a sorte final que tinham corrido aqueles mandarins do Norte contrários à política de Ao Bai respeitante à propriedade a terra". Além de tudo isso, após Fevereiro de 1667, a corte imperial decretou que "deviam reverter-se ao fisco, como artigos proibidos, todas as mercadorias que chegaram a Macau nos anos 1663-1664". De modo que Lu Xingzu começou a recuar, "não querendo apresentar activamente novas propostas para isentar Macau da evacuação costeira".44

Ora, porque é que mais tarde o mesmo Lu Xingzu ousou enviar Yao Qisheng a Macau para negociar a evacuação e o suborno com os Portugueses? Porque é que ousou aprovar o acordo de 22 de Abril entre Xiangshan e Macau e, para além disso, ousou fazer o que está registado na seguinte passagem?

Disse que para que ele pudesse abrir a Porta do Cerco, retirar os barcos que cercavam Macau e apresentar à corte imperial um relatório favorável a Macau, satisfazendo o desejo dos Portugueses de evitar a evacuação para o interior, era preciso que obtivesse imediatamente 30 mil taéis de prata. A câmara municipal insistia no montante de 20 mil, e Lu acabou por aceitá-lo. Assim, o governo de Macau teve de aprovar uma resolução sobre angariação de recursos para reunir a soma exigida.45

Segundo os Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, as prendas com que na altura os Macaenses presentearam Lu Xingzu foram as seguintes:

Como primeiro passo, pagaram a Shi Tai 1.400 e a Chen Degong 2.600 taéis de prata para eles comprarem com esse dinheiro rosários com contas de pérolas e de coral a oferecer como prendas ao vice-rei. Pagaram, além disso, 1.000 taéis a Liu Yijin e outros 2.600 taéis a Wang Qinglu para serem entregues ao vice-rei.46

Em suma, "a Shi Tai, Chen Degong, Liu Yijin e Wang Qinglu pagaram um total de 7.600 taéis para eles o entregarem como prenda ao vice-rei".47 Acrescentados a esta quantia "os 13 mil taéis" entregues a Lu Xingzu no ano da chegada dos cinco barcos com mercadorias sujeitas a confisco, como consta. dos Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, infere-se que até Abril de 1667 Lu Xingzu recebera dos Portugueses de Macau nada menos que 20.600 taéis de prata como peita.

Se Lu Xingzu ousou correr tão grande risco, fê-lo, segundo análise de Wills, não apenas motivado pela cobiça, mas também sentindo-se justificado por um argumento "legítimo", que era a necessidade de retirar as mercadorias de cinco barcos arrestados em Macau no momento da implantação da interdição marítima, para o qual era logicamente preciso enviar barcos a Macau e autorizar viagens de comerciantes para a península. Na sua análise, Wills sustenta ainda que Lu Xingzu tinha as costas quentes junto da corte imperial e estava tão estreitamente ligado ao grupo de Ao Bai que se sentia suficientemente forte para enfrentar qualquer escândalo provocado pela sua audaciosa acção.48 No entanto, acho, por minha parte, que para além destas razões, a tão grande audácia de Lu Xingzu não era alheio o apoio com que contava junto de Shang Kexi, o príncipe de Pingnan. Segundo os Fragmentos da Actas do Ministério da Justiça, (Lu Xingzu) responde: Recebêramos o decreto imperial de evacuação de Macau, mas um dia o Wang enviou a minha casa Liu Bing, um subalterno seu, para me dizer que os Macaenses tinham proposto aos nossos funcionários que foram lá impor a execução do decreto de evacuação, que se nos abstivéssemos de os forçar a mudar, e os deixássemos continuar o seu comércio marítimo, eles poderiam pagar 200 mil taéis de prata. Ao ouvir isso, eu disse que entendera e que teríamos de pensar com calma sobre esse assunto. Logo a seguir, redigi... (...)49

Aqui "o Wang ( 王 )" deve ter sido Shang Kexi, o príncipe de Pingnan (Pingnan Wang), sempre muito ligado a Macau. No seu livro Guangdong Xin Yu (Factos Novos de Guangdong, 廣東新語), Qu Dajun escreve:

Há tempo que vigora com muito rigor a interdição marítima, que impossibilita qualquer contacto do povo miúdo com Macau, mas os homens de confiança do príncipe mercadejam com Macau às escondidas.50

Shang Kexi não só "mercadejava com Macau às escondidas", como também intercedeu por Macau aquando da evacuação costeira decretada pela dinastia Qing:

(No ano 1 do reinado do imperador Kang Xi), o príncipe, na sua missão de inspecção fronteiriça, chegou a Haojing'ao. Era opinião geral que convinha localizar a fronteira no ponto de passagem em Qianshan, deixando para além da fronteira os bárbaros de Macau. O príncipe acrescentou ainda que dada a interdição marítima, os barcos dos bárbaros de Macau não podiam sair ao mar para mercadejar, nem pode o arroz daquém da fronteira ser transportado para o outro lado. Os bárbaros seriam difíceis de realojar como colonos no interior, pois não sabiam trabalhar como lavradores e, sem outro ofício para ganhar a vida, teriam de morrer irremediavelmente à fome. Mas tal resultado não parecia concordar com o espírito essencial da política da corte imperial de generosidade e magnanimidade para com os estrangeiros. Por isso, conjuntamente com o capitão geral, o vice-rei e o governador civil, solicitaram à corte imperial uma solução excepcional.51

Vê-se bem que Shang Kexi, o príncipe de Pingnan, não queria que os Portugueses de Macau se mudassem, terra adentro. Eis porque, ao ser informado de que eles ofereciam 200 mil taéis de prata a troco da isenção da evacuação, enviou Liu Bing, subalterno seu, transmitir a notícia a Lu Xingzu, com o evidente objectivo de empurrá-lo a solicitar, no seu próprio nome à corte imperial da dinastia Qing a isenção de Macau da evacuação, uma vez que tinha sido rejeitada uma solicitação similar que, no ano 1 do reinado do imperador Kang Xi, apresentara ele conjuntamente com o vice-rei e o governador civil.

E Lu Xingzu, efectivamente, apresentou a solicitação em causa. Segundo Wills, ... em Junho (de 1667), como subornado fiel à palavra empenhada, Lu Xingzu enviou uma carta a Pequim intercedendo por Macau e solicitando a sua isenção da evacuação.52

Ao mesmo tempo que solicitava a isenção à corte imperial, ordenou a abertura do comércio de Macau:

A 16 de Junho (de 1667), os comerciantes vieram em sete grandes juncos a Macau para mercadejar, pela primeira vez abertamente em cinco anos. Desde então que a Porta do Cerco abria-se regularmente, possibilitando o fornecimento de mantimentos suficientes.53

Beatriz Basto da Silva escreve no seu livro:

Em 1667, Macau voltou a comerciar em larga escala com o Norte (Xiangshan e Cantão), despachando para lá produtos preciosos procedentes da costa da África Oriental como coral, âmbar, gelatina de peixe, ninho de andorinha, barbatanas de tubarão, etc.. A Porta do Cerco, que até então só se abria irregularmente, começou a abrir todos os dias. Os moradores festejaram esta decisão tocando gongos e tambores, queimando panchões e disparando armas de fogo para o ar.54 (traduzido do chinês). E segundo os Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça:

Eis o depoimento de Wu Peiyu:

Sou oriundo da província de Fujian e moro na aldeia de Shicun, distrito de Xiangshan, vivendo da lavoura. No dia 25 do quarto mês intercalar, o senhor Yao, magistrado do distrito de Xiangshan, ia para Macau a fim de exigir as mercadorias sujeitas a confisco. Anunciou perante os comerciantes que podiam aproveitar o ensejo aqueles que tinham mercadorias antigas em Macau para as retirar pagando as quatro décimas partes, e só uma décima parte em caso de mercadorias novas. (...) Eu ia carregar um barco de mercadorias tais como sândalo e pimenta.55

O "dia 25 do quarto mês intercalar deste ano" corresponde ao dia 16 de Junho de 1667. Vê-se bem uma coincidência total entre as fontes chinesas e ocidentais no que diz respeito à data da abertura do comércio de Macau no ano 6 do reinado do imperador Kang Xi (1667). Dos Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça consta que na viagem a Macau participaram funcionários oficiais como Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, Zhan Qizhen, zhaomo (chefe de administração, 照磨) do distrito, Zhang Yuantai, magistrado adjunto do distrito de Nanhai, Shi Tai, mordomo de Lu Xingzu, e Chen Degong (Chen Xunyu), qigu (capataz, 旗鼓) dele. Tomaram parte também na viagem comerciantes oficiais como Cheng Zhifu, Li Zhifeng (Li Boming), Xu Zhong, Pan Dingchen, Shen Xianming, e comerciantes privados tais como Wu Peiyu, Huang Bahua, Cheng Qiwen (Cheng Bing), Fang Yu, Li Qi, Cheng Wanli, Hu Lin, Wang Qinglu e outros. Não estão especificadas as mercadorias que os comerciantes chineses levaram a vender a Macau, excepto os artigos de porcelana a bordo de um barco que levou Yao Qisheng. As mercadorias que compraram em Macau e trouxeram de volta foram principalmente sândalo, pimenta, pérolas, contas de coral, gengibre, borneol, penas de aves exóticas, droguete, bétel, chumbo, barbatanas de tubarão, cardamono, Aucklandia lappa, mimosa catechu, arames de ferro, aloés e tecidos de seda, este último produto em nada menos que 17 arcas,56 (o que indica que as transacções só nesta operação foram bastante apreciáveis. Wills fala em "sete grandes juncos", e Qiu Rusong, o shoubei (chefe da guarnição, 守備), falou em cinco. Desde então permaneceu constantemente aberto o comércio entre Xiangshan e Macau. No dia 7 do sétimo mês, segundo o calendário lunar, Yao Qisheng voltou a deslocar-se a Macau com fins comerciais, levando consigo Su Chang, Liang Jingyi, Chen Degong, Shi Tai e outras pessoas, a bordo de seis barcos.57

Neste assunto foi Yao Qisheng quem agiu com particular zelo, uma vez que tencionava resolver deste modo o problema dos atrasos no pagamento dos impostos no distrito de Xiangshan e a crise financeira em que se debatia a sua administração. Não apenas serviu de representante de Lu Xingzu nas negociações com os Portugueses, como também engendrou soluções que lhes eram favoráveis, chegando até a apresentar propostas à corte imperial intercedendo por Macau. Segundo Wills; ... nestas e noutras negociações, Yao comportou-se menos como magistrado distrital colocado muito acima do povo miúdo, impondo-lhe respeito e submissão, do que como mediador bastante convincente e competente. A 21 de Abril, decidiu recorrer à ajuda do padre jesuíta Luiz da Gama e, ao saber que este estava de cama, foi a casa dele e, após várias horas de conversa à sua cabeceira, arranjou uma solução.58

Ora, toda a situação mudou radicalmente quando no sétimo mês do ano 6 do seu reinado tomou o imperador Kang Xi pessoalmente as rédeas do governo, até então nas mãos dos ministros regentes. Chegara a Pequim a notícia da abertura do comércio de Macau por decisão arbitrária das autoridades cantonenses em infracção do decreto de interdição marítima, e o imperador Kang Xi decidiu instaurar inquérito aos responsáveis da flagrante infracção. Defrontado com as eventuais graves consequências do assunto, Lu Xingzu tratou de deitar todas as culpas a Yao Qisheng. No livro Ju Ye Tang Wen Ji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye, 居業堂文), vol. V, encontramos: ... O vice-rei de Cantão e o governador civil, ciumentos do talento de Yao, imputaram-lhe a grave culpa de ter aberto arbitrariamente o tráfico marítimo, infringindo o decreto imperial de interdição marítima.59

Wills diz também:

Evidentemente, Lu Xingzu já metera Yao Qisheng na cadeia e estava a atirar-lhe todas as culpas.60

Para justificar a sua inculpabilidade, Yao Qisheng teve de recorrer à protecção de Shang Kexi, o príncipe de Pingnan.

Yao foi de noite pedir audiência ao príncipe de Pingnan, e impressionou-o falando-lhe da verdade dos factos, de modo que o príncipe de Pingnan informou a corte imperial defendendo a inocência de Yao.61

Por sua parte, Shang Kexi também decidiu daí lavar as mãos sacrificando Lu Xingzu. "Na noite do dia 12 de Outubro, chegaram em segredo a Macau quatro mandarins de modesta categoria, com uma ordem assinada por Shang Kexi em que se pedia que os Macaenses apresentassem queixas por escrito contra Lu Xingzu. Não querendo deixar-se envolver nos conflitos internos da burocracia chinesa, o Senado rejeitou em forma eufemística a solicitação". Não querendo ficar inactivo perante o perigo de perdição, Lu Xingzu também se pôs a agir para se defender. "A 22 de Outubro, o magistrado adjunto de Xiangshan chegou a Macau e tratou de recolher provas desfavoráveis a Yao Qisheng".62 Tudo o que ouviu em Macau, porém, foi favorável a Yao, sendo Lu Xingzu mal sucedido nos seus desígnios.63 Logo a seguir, a corte imperial mandou altos funcionários para se ocuparem directamente do inquérito, e todas as pessoas envolvidas falaram da chantagem de Lu Xingzu. O caso ficou concluído no dia 6 do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, sendo demitidos Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, Wang Lairen, governador civil de Guangdong, Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, Zhan Qizhen, zhaomo (chefe de administração, 照磨) de Xiangshan, e Qiu Rusong, shoubei (chefe da guarnição, 守備) de Xiangshan, e ficando absolvidos todos os comerciantes que viajaram a Macau.64 Como está registado no livro Qing Shi Lu (Crónicas Verdadeiras da Dinastia Qing, 清實錄), no dia 14 do undécimo mês (do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi), Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, e Wang Lairen, governador civil de Guangdong, atribuindo-se incompetência nos seus cargos, pediram a demissão e foram demitidos.65

No momento da sua demissão, Lu Xingzu foi metido na cadeia. Segundo Wills, "A 9 de Janeiro de 1668, Lu Xingzu suicidou-se na prisão".66 Morreu a 9 de Janeiro de 1668, isto é, exactamente como está registado no livro Qing Guo Shi (História do Estado de Qing, 清國史), "Biografia de Lu Xiangzu", no dia 26 do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, só que na fonte chinesa a sua demissão é atribuída a "não ter podido esmagar o bandoleirismo", ao invés do facto de ele ter sido destituído pelo escândalo da sua chantagem para com Macau. Vê-se bem como o autor estava a aliviar os problemas do biografado.

São erradas as versões de Montalto de Jesus e de Beatriz Basto da Silva a respeito do que aconteceu a Yao Qisheng. Segundo Montalto de Jesus; ... até que em 1667 se suicidou (Yao) por ter desgostado os seus superiores.67

E segundo Basto da Silva, ... comprovados os seus crimes pelo governador civil de Guangdong ou pelo vice-rei de Cantão, (o magistrado distrital de Xiangshan) viu-se forçado a enforcar-se.68

Na realidade, por não ter recebido peitas no assunto em causa, Yao Qisheng não foi senão "demitido por ter levantado sem autorização a interdição marítima".69 Mais tarde, os seus merecimentos na obra da operação contra Taiwan valeram-lhe nova promoção, até ao posto de governador civil da província de Fujian. Só morreu de um tumor nas costas no undécimo mês do ano 22 do reinado do imperador Kang Xi.70 Tudo isso demonstra que há um erro nos registos de Montalto de Jesus e de Basto da Silva a esta respeito.

Acabado de descobrir o caso de Lu Xingzu, o imperador Kang Xi parece ter chegado a compreender, ele também, depois de pensar bem, que era na verdade pouco viável a evacuação de Macau e a transferência dos Portugueses terra adentro para o interior. Acresce que a missão portuguesa de Manuel de Saldanha, que chegara a Macau a 6 de Agosto de 1667, solicitou encarecidamente numa carta dirigida à corte imperial de Pequim a manutenção de Macau.71 Como resultado de tudo isso, o imperador Kang Xi, em fins do undécimo mês do ano 6 do seu reinado, decretou o indulto de Yao Qisheng da pena de morte e ao mesmo tempo a isenção de Macau da evacuação para o interior. Pouco antes da sua morte, Wang Lairen, governador civil de Guangdong, escrevia no sexto mês do ano 7 do reinado do imperador Kang Xi:

Para além de Xiangshan moram bárbaros em Macau. Falam uma língua incompreensível e não sabem lavrar a terra. No interior não há onde realojá-los, e é ainda mais difícil transferi-los após centenas de anos de residência fixa. Em data recente já foi decretada a sua isenção da evacuação. Tanto o distrito como Macau já são considerados como interior do país.72

"Data recente" deve referir-se ao ano anterior ao ano 7, isto é, ano 6, do reinado do imperador Kang Xi, e por isso pode-se inferir que o decreto de isenção da evacuação deve ter sido emitido mais ou menos em simultâneo com o indulto de Yao Qisheng, ou seja, em fins do undécimo mês do ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, o que significa que Macau foi oficialmente isentada da evacuação em Janeiro de 1668.

IV. CONCLUSÕES

A chantagem de Lu Xingzu para extorquir dinheiro de Macau, efectivada no ano 6 do reinado do imperador Kang Xi, foi um grave caso económico de grandes repercussões nos primeiros anos da dinastia Qing. Nele ficaram envolvidos, não apenas funcionários oficiais como Lu Xingzu, vice-rei de Cantão, e Wang Lairen, governador civil de Guangdong (com ambos a acabarem por se suicidar), Yao Qisheng, magistrado do distrito de Xiangshan, e Qiu Rusong, shoubei (chefe da guarnição) do distrito, como também um grande número de comerciantes oficiais e privados. Mesmo Shang Kexi, o príncipe de Pingnan, pode ter-se implicado também no escândalo. Porém, um caso tão estrondoso ficou silenciado nos registos oficiais e livros de História, sem que haja uma só palavra que lhe diga respeito, facto que sugere uma atitude escamoteadora dos autores desses documentos. Agora, uma exame comparativo de fontes chinesas e ocidentais permitiu reconstruir os factos e torná-los públicos. A revelação do caso em causa permitir-nos-á actualizar certas observações até agora prevalecentes.

Primeiro. Porque é que nunca foi posto em prática o decreto, promulgado no ano l do reinado do imperador Kang Xi da dinastia Qing, de transferir terra adentro os Portugueses de Macau e interditar o seu comércio marítimo? Os múltiplos bons ofícios levados a cabo em Pequim no ano l do reinado do imperador Kang Xi pelo Pe. Schall von Bell e outros missionários concorreram para retardar a execução do decreto. Idêntico efeito surtiram, entretanto, as insistentes solicitações que vieram apresentando Shang Kexi, o príncipe Pingnan, e as autoridades locais de Guangdong em geral intercedendo por Macau junto da corte imperial da dinastia Qing. No entanto, a esses rogos não acedia a corte imperial, permanecendo longo tempo sem emitir uma ordem de isenção. Eis porque até à data tardia do ano 5 do reinado do imperador Kang Xi continuava a corte imperial a impor a evacuação. Foi preciso que o caso da chantagem e suborno de Lu Xingzu surgisse à luz do dia e que a missão de Manuel de Saldanha dirigisse súplicas em carta ao imperador Kang Xi, para que Macau fosse oficialmente isentada da evacuação. Assim se torna preciso actualizar em grande medida as versões até agora comummente aceites acerca da verdade dos factos.

Segundo. O caso de Lu Xingzu permite entrever que o decreto de interdição marítima, promulgado no ano l de reinado do imperador Kang Xi, apesar de ter-se feito sentir muito negativamente no comércio de Macau, não chegou a impossibilitá-lo totalmente, uma vez que os Portugueses de Macau continuavam a mercadejar, em escala apreciável e utilizando os métodos mais variados, com o Sudeste asiático e com o interior da China. O facto de comerciantes cantonenses comprarem em Macau grandes quantidades de tecidos de seda demonstra que Macau servia de entreposto não só para a importação na China de mercadorias estrangeiras, como também para a exportação de produtos chineses e mesmo para trocas comerciais internas da China.

Terceiro. O caso de Lu Xingzu constitui um novo exemplo demonstrativo das contradições, bastante relevantes, entre as autoridades centrais e as locais da China no que diz respeito a Macau. Enquanto as primeiras, preocupadas antes de mais com a situação política global, tendiam a privilegiar, relativamente a Macau, o controle restritivo e mesmo a interdição de qualquer contacto e comunicação, as segundas, ligadas aos interesses locais de Guangdong, sabiam partir do ponto de vista da economia local e portanto ansiar por ampliar e desenvolver os contactos comerciais com Macau, no intuito de satisfazer as necessidades locais nos mais diversos domínios. Daí o conflito entre as autoridades centrais e as locais. A chantagem de Lu Xingzu pode não ter sido motivada exclusivamente pela cobiça pessoal, sendo provável que grande parte do dinheiro fosse destinada a cobrir as despesas financeiras das autoridades locais de Guangdong. Com razão se explicam as arriscadas viagens comerciais de Yao Qisheng a Macau pelo desejo dele de resolver as "dívidas fiscais" acumuladas em longos anos no distrito de Xiangshan.

Quarto. O caso de Lu Xingzu constitui ainda um novo exemplo da corrupção da burocracia chinesa. Ao longo dos anos, da dinastia Ming à dinastia Qing, os escândalos de peitas foram uma constante em redor do problema de Macau. Pulularam mandarins corruptos, começando por Wang Bo73 o aitão (subintendente marítimo, 海道) que facilitou a abertura do porto a troco de peitas, passando por Chen Rui,74 vice-rei de Cantão nos primeiros anos do reinado do imperador Wan Li, para chegar e He Shijin,75 que exercia o mesmo cargo em meados do reinado do imperador Tian Qi. Passaram apenas dez anos e tal depois de Macau ficar abrangida pelo poder da dinastia Qing, e aconteceu um caso tão escandaloso como foi o da chantagem de Lu Xingzu. Tudo isso basta para demonstrar que as peitas para os mandarins dos mais diversos níveis constituíram sempre uma das mais importantes alavancas utilizadas pelos Portugueses para manter com estabilidade e durante longos anos a sua ocupação de Macau.

NOTAS

1 Wang Yun ( 王澐) (época da dinastia Qing), Man You Ji Lüe (Apontamentos Concisos de Viagens, 漫遊記略), vol. 4, entrada "Evacuação Costeira".

2 Qu Dajun (屈大均) (época da dinastia Qing), Guangdong Xin Yu (Factos Novos de Guangdong, 廣東新語), vol. 2, entrada "Mudança de Fronteira".

3 Shen Lianghan (申良翰) (época da dinastia Qing), Xiangshan Xian Zhi (Crónicas do Distrito de Xiangshan, 香山縣誌), vol. 3, "Crónicas da Economia".

4 ibid., vol. 1, "Crónicas da Geografia".

5 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

6 Qing Guo Shi (História do Estado de Qing, 清國史), "Colectânea de Biografias Uniformes de Altos Funcionários Civis e Militares, Manchus e Hans, Versão Formal" (Man Han Wen Wu Dachen Huayi Liezhuan Zhengbian, 滿漢文武大臣劃一列傳正編 ), vol. 27, "Biografia de Lu Xingzu".

7 Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Kang Xi da Dinastia Qing, 清聖祖康熙實錄), vol. 24, entrada "Dia 14 do Undécimo Mês do Ano 1 do Reinado do Imperador".

8 Montalto de Jesus, Historic Macao, p. 118, Hong Kong,1902.

9 J. E. Jr. Wills, Embassies and lllusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

10 Qing Guo Shi, vol. 62, "Biografia de Yao Qisheng".

11Qing Shi Gao (Textos da História da Dinastia Qing, 清史稿), vol. 260, "Biografia de Yao Qisheng".

12 Wang Yuan (王源) (época da dinastia Qing), Ju Ye Tang Wenji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye 居業堂文集), vol. 5, "Biografia de Yao Qisheng".

13 Quan Zuwang (金祖望), "Segunda Versão da Biografia do Sr. Yao Gravada em Lápide", in Qian Yiji (錢儀吉 ) (época da dinastia Qing) (ed.) Bei Zhuan Ji (Colectânea de Biografias Lapidárias 碑傳集), vol. 15.

14 Yuan Mei ( 袁枚 ) (época da dinastia Qing), Xiao Cang Shan Fang Wenji (Colectânea de Textos da Casa Montanhosa de Xiao Cang, 小倉山房文集), vol. 6, "Biografia de Yao Qisheng, Governador Civil de Fujian".

15 Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu, vol. 15, entrada "Dia 2 do Quarto Mês do Reinado do Imperador".

16 Wang Yuan (王源) (época da dinastia Qing), Ju Ye Tang Wenji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye 居業堂文集), vol. 5, "Biografia de Yao Qisheng".

17 Yuan Mei (袁枚) (época da dinastia Qing), Xiao Cang Shan Fang Wenji (Colectânea de Textos da Casa Montanhosa de Xiao Cang, 小倉山房文集), vol. 6, "Biografia de Yao Qisheng, Governador Civil de Fujian".

18 Qing Guo Shi, vol. 63, "Biografia de Lu Xingzu".

19 Ming Qing Shi Liao, seg. ed., vol. 4, "Memorial Confidencial de Li Qifeng, Governador Civil de Guangdong"

20 Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu, vol. 15, entrada "Dia 4 do Quarto Mês do Ano 4 do Reinado do Imperador".

21 Yuan Mei (袁枚) (época da dinastia Qing), Xiao Cang Shan Fang Wenji (Colectânea de Textos da Casa Montanhosa de Xiao Cang, 小倉房文集), vol. 6, "Biografia de Yao Qisheng, Governador Civil de Fujian".

22 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

23 Yuan Mei (袁枚) (época da dinastia Qing), Xiao Cang Shan Fang Wenji (Colectânea de Textos da Casa Montanhosa de Xiao Cang, 小倉山房文集), vol. 6, "Biografia de Yao Qisheng, Governador Civil de Fujian".

24 Anders Ljungstedt, Chronicle of Portuguese Settlements in China, p. 68, Hong Kong, Vikings, 1992.

25 Montalto de Jesus, op. cit., pp. 116-117.

26 Fang Hao (方豪), Zhongguo Tianzhujiao Renwu Zhuan (Biografias de Figuras Eminentes do Catolicismo na China, 中國天主教人物傳), em 3 volumes, vol. 2, "Johann Adam Schall von Bell".

27 Beatriz Basto da Silva, Cronologia de Macau (ed. chinesa), "Macau do Século XVII", p. 56, Macau, Fundação Macau, 1995.

28 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

29 Qing Shizu Shun Zhi Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Shun Zhi da Dinastia Qing, 清世祖順治實錄 ), vol. 102, entrada "Sexto Mês do Ano 13 do Reinado do Imperador".

30 Jiang Risheng (江日昇) (época da dinastia Qing), Taiwan Wai Ji (Crónicas Suplementares de Taiwan 台灣外紀), vol. 6, "Memorial de Wang Lairen do Sexto Mês do Ano 6 do Reinado do Imperador Kang Xi".

31 Jiang Risheng (江日昇) (época da dinastia Qing), Taiwan Wai Ji (Crónicas Suplementares de Taiwan 台灣外紀), vol. 6, "Memorial de Wang Lairen do Sexto Mês do Ano 6 do Reinado do Imperador Kang Xi".

32 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

33 H. B. Morse, Chronicles of the East Indian Company Trading to China, 1635-1834, vol. 1, p. 33, cit. de Fei Chengkang (费成康), Aomen Sibai Nian (Quatrocentos anos de Macau, 澳門四百年), p. 133.

34 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

35 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

36 Montalto de Jesus, op. cit., pp. 117-118.

37 Beatriz Basto da Silva, op. cit., p. 35.

38 Qu Dajun, op. cit., vol. 2, "Macau".

39 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

40 Beatriz Basto da Silva, Cronologia de Macau (ed. chinesa), "Macau do Século XVII", p. 56, Macau, Fundação Macau, 1995.

41 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

42 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese 's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

43 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

44 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese 's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

45 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

46 Qing Guo Shi (História do Estado de Qing, 清國史), "Colectânea de Biografias Uniformes de Altos Funcionários Civis e Militares, Manchus e Hans, Versão Formal" (Man Han Wen Wu Dachen Huayi Liezhuan Zhengbian, 滿漢文武大臣劃一列傳正編 ), vol. 27, "Biografia de Lu Xingzu".

47 Qing Guo Shi (História do Estado de Qing, 清國史), "Colectânea de Biografias Uniformes de Altos Funcionários Civis e Militares, Manchus e Hans, Versão Formal" (Man Han Wen Wu Dachen Huayi Liezhuan Zhengbian, 滿漢文武大臣劃一列傳正編 ), vol. 27, "Biografia de Lu Xingzu".

48 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese 's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp.82-114, Harvard, 1984.

49 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

50 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

51 Yin Yuanjin (尹元進), Pingnan Wang Yuangong Chuifan (Exemplares Merecimentos do Príncipe de Pingnan, 平南王元功垂範), volume final, entrada "Problema, Discutido no Undécimo Mês do Ano l do Reinado do Imperador Kang Xi, Sobre se os Bárbaros de Macau Deviam Ir-se Embora ou Podiam Ficar".

52 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

53 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

54 Beatriz Basto da Silva, Cronologia de Macau (ed. chinesa), "Macau do Século XVII", p. 56, Macau, Fundação Macau, 1995.

55 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

56 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

57 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

58 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

59 Wang Yuan (王源) (época da dinastia Qing), Ju Ye Tang Wenji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye 居業堂文集), vol. 5, "Biografia de Yao Qisheng".

60 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

61 Wang Yuan (王源) (época da dinastia Qing), Ju Ye Tang Wenji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye 居業堂文集), vol. 5, "Biografia de Yao Qisheng".

62 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

63 Wang Yuan (王源) (época da dinastia Qing), Ju Ye Tang Wenji (Colectânea de Textos da Sala Ju Ye 居業堂文集), vol. 5, "Biografia de Yao Qisheng".

64 Fragmentos de Actas do Ministério da Justiça, in Ming Qing Shi Liao (Materiais Históricos das Dinastias Ming e Qing, 明清史料), volume final, livro 6.

65 Qing Shengzu Kang Xi Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Kang Xi da Dinastia Qing, 清聖祖康熙實錄), vol. 24, entrada "Dia 14 do Undécimo Mês do Ano l do Reinado do Imperador".

66 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portugues e's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984.

67 Montalto de Jesus, op. cit., p. 119.

68 Beatriz Basto da Silva, op. cit., p. 57.

69 Qing Shi Gao (Textos da História da Dinastia Qing, 清史稿), vol. 260, "Biografia de Yao Qisheng".

70 Quan Zuwang (金祖望), "Segunda Versão da Biografia do Sr. Yao Gravada em Lápide", in Qian Yiji (錢儀吉) (época da dinastia Qing) (ed.) Bei Zhuan Ji (Colectânea de Biografias Lapidárias 碑傳集 ), vol. 15.

71 J. E. Jr. Wills, Embassies and Illusion: Dutch and Portuguese's Envory to K'ang-hsi, 1666-1678, pp. 82-114, Harvard, 1984

72 Jiang Risheng (江日昇) (época da dinastia Qing), Taiwan Wai Ji (Crónicas Suplementares de Taiwan 台灣外紀), vol. 6, "Memorial de Wang Lairen do Sexto Mês do Ano 6 do Reinado do Imperador Kang Xi".

73 Zheng Shungong (鄭舜功) (época da dinastia Ming), Riben Yijian Qiong He (Miscelâneas Panorâmicas do Japão, 日本一鑑窮河話海), vol. 6, "Mercados Marítimos".

74 Matteo Ricci e Nicolas Trigault, China in the Sixteenth Century: Journal of Matteo Ricci: 1583-1610 (ed. chinesa), vol. 2, cap. 3, p. 146.

75 Ming Xizong Shi Lu (Crónicas Verdadeiras do Imperador Tian Qi da Dinastia Ming 明熹宗實錄 ), vol. 77, entrada "Dia 16 do Décimo Mês do Ano 6 do Reinado do Imperador".

* Professor catedrático do Instituto de Documentação Histórica e Cultural Chinesa, subordinado à Universidade Jinan, de Cantão.

desde a p. 47
até a p.