Pyotr Ilyich Tchaikovsky, nascido em 1840, foi o primeiro compositor russo a deixar uma marca duradoura no panorama internacional. Reconhecido pela sua vasta produção composicional – desde bailados, óperas e sinfonias a música de câmara e até a adaptações para voz da liturgia ortodoxa russa – Tchaikovsky foi capaz de harmonizar um estilo nacional profundamente enraizado com as influências composicionais dos grandes nomes da música ocidental, mesclando a sua voz pessoal e expressiva com materiais programáticos marcadamente descritivos e evocativos, inseridos em orquestrações elaboradas de modo singular e plenas de timbres variados. Apaixonado pela dança, Tchaikovsky foi, a um dado momento, acusado – arbitrariamente – de escrever sinfonias demasiado baléticas e bailados demasiado sinfónicos, embora o público de então, e de agora, possa certamente apreciar o melhor dos dois mundos que o compositor conseguiu sintetizar em cada um dos seus célebres bailados.
O Quebra-Nozes, o adorado bailado de Tchaikovsky em dois actos, deu uma grande dor de cabeça ao compositor durante a sua gestação. Adaptada a partir de O Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos de E.T.A. Hoffman, a história do bailado revelou-se um pouco restritiva para o compositor. Quando o coreógrafo Marius Petipa lhe apresentou a sinopse anotada com ideias musicais detalhadas, compasso a compasso, Tchaikovsky exclamou simplesmente: “Estou a passar por uma crise”. Inicialmente relutante em comprometer-se com tal projecto, a trágica morte da sua irmã, Sasha, acabou por se revelar o agente motivador para o angustiado compositor. Os investigadores têm argumentado de forma convincente que a icónica Fada do Açucar de O Quebra-Nozes é inspirada na própria Sasha, tendo outros demonstrado que inúmeras cenas do bailado poderão aludir às suas infâncias pessoais, entrelaçadas com a fantasia e a magia da partitura de Tchaikovsky.
O Quebra-Nozes e Eu abre com música retirada de O Castelo Mágico, cena 10 do 2.º Acto do ballet. Arranjada para piano pelo próprio Tchaikovsky, a partitura aproveita ao máximo a escrita original do compositor para harpa. A partitura arranca com uma nostalgia alegre, evocando de forma brilhante uma aura devaneante, captando a transição etérea da vida real para um sonho vivo. O piano pinta esta sensação sobrenatural com cintilações reluzentes, transportando a nossa protagonista para a nova dimensão de “O Castelo Mágico na Terra dos Doces”, repleto de possibilidades e sonhos infinitos.
A Abertura em Miniatura de O Quebra-Nozes está imbuída de uma alegria ágil e festiva. Os seus gestos cativantes assentam sobretudo no registo agudo e o arranjo de Stépan Esipoff para piano solo tira o máximo partido da escrita original do compositor, permitindo que as teclas efervescentes do piano brilhem e floresçam com vitalidade radiante. Preparando a cena para o bailado, o cintilar do arranjo para piano invoca uma caixa de música, da qual emerge uma boneca bailarina, girando com cada nota rutilante.
O 1.º Acto do bailado decorre numa festa de Natal, durante a qual Clara recebe um quebra-nozes. Com arranjo para piano de Gavin Sutherland, a cena abre habilmente com uma alusão ao subtil tiquetaque do relógio de um avô. Os gestos melódicos intensificam-se com entusiasmo à medida que o irmão de Clara luta com ela pelo Quebra-Nozes, acabando inevitavelmente por parti-lo. As arrebatadoras linhas do piano proporcionam uma sensação de magia à medida que o Quebra-Nozes vai sendo reconstituído por inteiro, aparentemente reparando-o com um toque de magia.
A Marcha seguinte, com arranjo para piano de Mikhail Pletnev, apresenta o tema icónico de O Quebra-Nozes, com a sua fanfarra arquetípica, utilizando tercinas para realçar o compasso 4/4. Verificando o Quebra-Nozes, Clara é animada pelo tratamento virtuosístico de Pletnev da escrita de Tchaikovsky, com gloriosas execuções do piano a embelezar o motivo principal da marcha com grande desenvoltura.
Em A Batalha, Clara é confrontada por ratos que enchem a sala e vão ficando cada vez maiores. O tratamento pianístico que Sutherland dá à partitura de Tchaikovsky é particularmente eficaz, aproveitando ao máximo as capacidades percussivas do piano para realçar o drama e o perigo com gestos rítmicos repetidos e implacáveis. O Quebra-Nozes salta então para defender Clara, acompanhado por escalas descendentes no piano, e Clara junta-se finalmente à luta com coragem e triunfo. A escrita propulsiva e rodopiante capta o frenesim do combate, cheio de tensão e perigo, até que os ratos fogem, por fim, derrotados.
A música toma um rumo sonhador, quando Clara descobre que o Quebra-Nozes assumiu a forma humana como Príncipe da Terra dos Doces. A partitura é exuberante e o arranjo para piano de Pletnev capta este momento íntimo, cheio de encanto e fascínio. Neste Pas de Deux na Neve, o Príncipe oferece-se para levar Clara ao seu reino, altura em que a escrita para piano se eleva e expande cada vez mais grandiosa e com virtuosismo crescente à medida que os dois levantam voo. A dinâmica imprecisa ecoa a cintilação das casas em baixo, enquanto o Príncipe e Clara voam para longe, e a filigrana de arpejos no piano prepara o ambiente para toda a fascinante magia que está por vir.
Chegada à Terra dos Doces, Clara é apresentada à Fada do Açucar, que estava encarregada de cuidar do Castelo Mágico durante a ausência do Príncipe. A icónica Dança da Fada do Açucar, que, na verdade, faz parte de um conjunto de variações do Pas de Deux do 2.º Acto, traduz-se na perfeição a partir da orquestração original de Tchaikovsky para piano. Captando o brilho do instrumento original, a celesta, Pletnev apropria-se da sua característica sonoridade de sino com graciosidade e elegância.
A Tarantella, retirada do mesmo Pas de Deux, propõe uma série de tercinas fluidas. O arranjo para piano de Pletnev é particularmente eficaz, aproveitando ao máximo a capacidade do instrumento para pontuar certas consonâncias e evocando discursos entusiastas e apaixonados entre velhos e novos amigos.
O “Divertimento”, uma sequência de danças associadas a personagens de diferentes países, é apresentado a Clara como gesto de agradecimento por ter salvado o Príncipe. A Dança Árabe, com a sua tonalidade exótica, apresenta um acompanhamento semelhante a uma canção de embalar georgiana. A mão esquerda grave e repetida do piano, com arranjo de Esipoff, proporciona um exuberante fundo de notas pulsantes para a melodia plangente. Com um tema tão cativante, Tchaikovsky pinta um mundo colorido que é, ao mesmo tempo, desconhecido e comovente.
O Trepak, uma dança russa, começa com uma firmeza viva e, a cada iteração do tema principal, o arranjo para piano de Pletnev vai acrescentando cada vez mais ornamentação, especialmente na mão direita. A sua constância rítmica diminui rapidamente à medida que a dança acelera prontamente em direcção a um final turbulento.
A Dança Chinesa, um momento fugaz com acompanhamento dedilhado na partitura de Tchaikovsky, apresenta um solo de flauta virtuosístico e dinâmico. Espelhado no arranjo de Pletnev, a baixa cadência da mão esquerda ao piano serve de base a esta dança, contrastando vivamente com os fugazes floreados melódicos na mão direita. A alternação entre notas agudas e graves trocadas entre as duas mãos revela-se mais do que adequada para o piano.
A Dança dos Mirlitons apresenta um trio de flautas sublinhado por cordas graves dedilhadas. A versão para piano de Esipoff consegue captar a leveza das flautas, encontrando, ao mesmo tempo, uma vasta diferença de timbre entre os gestos agudos e volúveis e as figurações constantes do baixo. Até uma interjeição de corne-inglês no meio de uma escrita tão vivaz é captada em tom e timbre no piano.
O Pas de Deux, ou dueto entre dois bailarinos, começa com um sentido de nobreza comedido nas cordas e na harpa, aqui magnificamente arranjado para piano por Pletnev. Com a entrada de uma das melodias mais sublimes de Tchaikovsky e as figurações crescentes e expansivas do piano, a textura cresce em densidade, ecoando a união dos sopros e das cordas na partitura original. Segue-se uma série de solos temáticos, à medida que a partitura vai assumindo um rumo mais sombrio, crescendo, ao mesmo tempo, com uma intensidade inquieta e apaixonada a cada frase. O piano capta a pontuação dos metais em cada pico do clímax melódico, e a partitura de Tchaikovsky, apesar do repouso momentâneo, continua a crescer e a dilatar-se com figurações pianísticas virtuosísticas até às arquejantes cadências finais.
A Valsa das Flores, talvez a valsa mais conhecida do compositor, começa com o icónico coral que conduz a uma deslumbrante cadência de harpa, aqui ouvida ao piano com um arranjo virtuosístico de Percy Grainger, que se desvia, criativamente e em grande medida, da escrita de Tchaikovsky. Com os impulsos de dança proporcionados pela mão esquerda, o coral de abertura adapta o ritmo característico da valsa com interjeições a solo na mão direita. À medida que o chamamento e a resposta entre o tema e o adorno de filigrana ganham momento e se intensificam, Grainger intervém com mais escrita para piano solo, oferecendo à valsa um certo fluxo e refluxo de ritmo, bem como de tons, sem nunca se esquivar à interpolação pianística que está ausente na partitura de Tchaikovsky. Transformando efectivamente esta valsa numa peça de concerto, por oposição a um arranjo na mesma forma, Grainger acaba por regressar ao material de origem, sem, contudo, deixar de fazer a sua própria interpretação ao concluir a valsa com uma celebração do piano e tudo o que o instrumento tem para oferecer.
O Final do 2.º Acto começa imediatamente com uma aura majestosa e cortês, e Tchaikovsky transforma a melodia principal em iterações aparentemente intermináveis. Os episódios apresentam vários grupos instrumentais, realçando os seus timbres e sons singulares, os quais são apropriadamente captados por Sutherland ao piano através de uma série de figurações pianísticas e florescentes. Com o retorno da melodia da valsa principal, estes gestos doces e idílicos culminam numa série de gestos ondulantes e celebrativos, conduzindo à conclusão deste capítulo particular da viagem e aventura mágicas de Clara.
Por Jules Lai