F. Mendelssohn: Quarteto para Cordas n.º 1 em Mi Bemol Maior, op. 12
O compositor alemão Felix Mendelssohn, nascido em 1809 em Hamburgo, permanece como um dos mais talentosos prodígios da história da música ocidental. Felizmente para Mendelssohn, a sua família abastada não poupou despesas a estimular os seus talentos musicais desde o início, resultando numa série de autênticas obras-primas, concluídas ainda muito jovem, incluindo o seu octeto de cordas, três quartetos de piano, o primeiro quinteto de viola e os seus dois primeiros quartetos de cordas.
O seu opus 12, o Quarteto de Cordas N.º 1, o primeiro dos seus quartetos a ser publicado, foi concluído em 1829, tinha apenas 20 anos. Pleno de imaginação e até de uma dimensão operática, este quarteto revela o desejo do compositor de transcender os limites do género, tanto a nível da expressão como da forma. O primeiro andamento, Adagio non troppo, começa com uma introdução lenta, com as cordas a revezarem-se com o premente motivo de três notas. Uma melodia lírica e fluida assume o comando, descontraída no início, mas ganhando cada vez mais pujança antes de voltar a perder força. Surgem variantes do tema e o quarteto assume plenamente a expressividade refinada e ousada de Mendelssohn. Com um lirismo crescente, o ambiente muda uma vez mais e oferece ao primeiro violino explosões rapsódicas de melancolia declamatória, subvertendo as expectativas do ouvinte a cada esquina antes de concluir com aquiescência elegante.
O andamento que se segue, Canzonetta: Allegretto, toma o título de uma canção secular italiana que remonta a 1560. Definida em métrica dupla, Mendelssohn toma liberdades e evita a habitual métrica tripla que normalmente se encontraria, à época, nos andamentos de um quarteto ou de outras obras de quatro andamentos. Encantadora e divertida, a melodia principal é abafada e contida, pontuada por cordas dedilhadas e toques de arco curtos e saltitantes. A secção central apresenta um motivo fugaz, quase evocando um bater de asas ou um desfile de duendes brincalhões. Com o retorno do tema de abertura, o andamento termina com o mesmo sentido de humor velado que o iniciou, com o mais subtil dos floreados.
Com o Andante espressivo, Mendelssohn explora as suas ideias operáticas com afinco. O violino começa com uma ária sincera e sentida, que se desenvolve como uma corrente de consciência, ganhando uma extensão emocional com frases ainda mais figurativas. Avançando para uma série de clímaces, o violino é explicitamente indicado pelo compositor para tocar con fuoco (“com fogo”). Apesar da sua brevidade, o andamento não carece certamente de emotividade ou profundidade. À medida que o tom apaixonado se vai suavizando, Mendelssohn oferece uma conclusão calma e terna, imbuída de paz.
Assim que a nota final esmorece, os dois acordes iniciais do Molto allegro e vivace do último andamento despertam os ouvintes da tranquilidade que pairava no ar. Figurações apressadas levam a episódios turbulentos de tensão dramática e rítmica, que utilizam o ritmo para quase perturbar ou impedir sensações de placidez ou equilíbrio. No centro do andamento regressam lentamente os temas da abertura por entre a insistência premente do final. Uma explosão do violino solo evoca o oposto da emotividade do andamento anterior, sendo o tema, seguidamente, ainda mais reformulado, levando a um solo de violino muito mais introvertido. O andamento parece encontrar consolo no meio da turbulência, terminando com uma série de figurações ascendentes e descendentes do violino, antes de se apaziguar em três acordes tranquilizantes.
Wang Jianmin: Capricho sobre um tema de Xinjiang para Solo de Guzheng
Natural de Wuxi, na Província de Jiangsu, o compositor chinês Wang Jianmin ganhou destaque durante a década de 1980, quando muitas das suas composições foram alvo de prémios e distinções aos quais se seguiram muitos outros ao longo de uma respeitada carreira. Nascido em 1956, Wang Jianmin – para além de ser professor em várias instituições de ensino superior – tem desempenhado funções em inúmeras associações musicais, incluindo a de vice-presidente do Sétimo Conselho da Sociedade Nacional Orquestral Chinesa e da Federação Internacional de Educação Artística e a de director da Escola de Música da Universidade de Artes de Nanquim. Sendo um compositor prolífico, Wang Jianmin contribuiu em grande medida, com a sua obra, para o crescimento da tradição da música instrumental chinesa.
Os instrumentos musicais chineses e as composições escritas para estes continuam a incorporar uma poderosa intersecção entre a música chinesa e outras técnicas, numa síntese do Oriente e do Ocidente, da tradição e da modernidade. O guzheng (cítara dedilhada) remonta à dinastia Qin e as suas cordas terão sido originalmente feitas de seda. Hoje em dia, estas cordas são quase sempre de nylon com revestimento de aço, após várias fases de transição em que foram utilizados arames de aço ou latão, dependendo do género musical específico e das exigências e preferências musicais. A evolução do instrumento, incluindo o aumento do número de cordas, proporciona um som mais amplo, captando, ao mesmo tempo, o seu timbre cativante.
Evidenciada em Capricho sobre um tema de Xinjiang para Solo de Guzheng, a ressonância dos meros primeiros gestos dedilhados revela o alcance e a profundidade do guzheng. Encapsulando o espírito de Xinjiang, o Capricho de Wang Jianmin apresenta uma vasta gama não só de sons, mas também de imagens musicais. O tilintar de sinos distantes, o vento a soprar e a pungência de um lenço a esvoaçar ao sabor do vento são captados para definir o panorama do corpo principal da obra. A diversidade de técnicas, das mais subtis e delicadas ao virtuosismo, passando pela dedilhação melódica e até mesmo pelas batidas percussivas, possibilitam múltiplas transformações do tema principal. Atravessando agudos dramáticos e graves frágeis e tirando partido de cada centímetro do guzheng, a coda veloz do Capricho conduz a uma série de floreados brilhantes, concluindo com três acordes decisivos.
F. Devienne: Quarteto para Fagote e Cordas em Sol Menor, op. 73, n.º 3
O compositor François Devienne, nascido em 1759, cresceu em Joinville, França, sendo o mais novo de 14 irmãos. Após ter crescido como corista, mudou-se para Paris e rapidamente se tornou um flautista e fagotista muito procurado na cidade, actuando em inúmeros agrupamentos e chegando mesmo a realizar os seus próprios concertos para flauta e fagote como solista. Considerado o mais célebre virtuoso da flauta e do fagote de França, Devienne compôs também uma vasta obra de peças instrumentais e até óperas cómicas, o que lhe valeu o título de “Mozart da Flauta” entre muitos colegas e sucessores.
O Quarteto para Fagote e Cordas de Devienne foi publicado em 1800 e tem partituras para fagote, violino, viola e violoncelo. A escrita de Devienne é afável, sendo imbuída de melodias cantadas e, evidentemente, realçando a essência tonal do fagote. O Allegro con espressione começa com um fagote cantante a conduzir as cordas para a congregação musical. A melodia vai-se tornando cada vez mais complexa, na maior parte do tempo sob a liderança do fagote, enquanto as cordas proporcionam suporte harmónico ou acompanham qualquer iteração do tema. Após uma secção central taciturna, o retorno do tema principal é ainda mais realçado com mais uma deslumbrante filigrana de fagote, sem nunca perder o sentido de encanto e graciosidade.
No Adagio, o fagote conduz, uma vez mais, o ensemble ao longo de um tema semelhante a uma ária, acompanhado por pulsações subtis no violino e na viola e pelo dedilhar do violoncelo. A ária sofre uma viragem dramática, desta feita, dando protagonismo às cordas. O fagote regressa com o tema de abertura, decorando esta segunda iteração com ornamentos floridos, seguindo-se um abrandamento gradual do ritmo para assinalar o fim deste agradável episódio.
Segue-se um elegante Rondo, em que o fagote e as cordas adoptam frequentemente gestos afáveis, ao mesmo tempo, virtuosísticos. A melodia sedutora circula pelos instrumentos, por vezes a solo, por vezes em pares, trios ou em tutti, e de forma sempre um pouco diferente da expressão anterior. As frases inteligentes, impulsionadas pela graciosidade e seriedade, terminam com uma brilhante torrente a correr impetuosamente até ao fim.
Á. Piazzolla / Arr. J. Bragato: As Quatro Estações Portenhas, arr. para Trio com Piano
Nascido em 1921, o compositor argentino Ástor Piazzolla foi fortemente influenciado pelo jazz, pelo tango argentino, pelas estruturas musicais tradicionais e pelos sons e harmonias da música ocidental do século XX. Um intérprete virtuosístico do bandoneón, um instrumento folclórico semelhante ao acordeão, comum na América Latina, Piazzolla compunha frequentemente para as suas próprias actuações com vários agrupamentos folclóricos e de formação clássica.
As Quatro Estações de Buenos Aires, de Piazzolla, estabelece um paralelo directo com a popular obra de Antonio Vivaldi, As Quatro Estações, um conjunto de concertos para violino e orquestra que evocam musicalmente o espírito da mudança das estações. No entanto, separado de Vivaldi por séculos, Piazzolla compôs originalmente cada uma das suas Quatro Estações como peças independentes para o seu agrupamento de música de câmara folclórica. Concluindo, primeiramente, Verano Porteño (“Verão em Buenos Aires”) em 1965 para acompanhar uma peça de teatro, Piazzolla escreveu três outros tangos no ano seguinte para completar a sua versão de As Quatro Estações.
As Quatro Estações, na sua forma original, foi composta para violino, guitarra eléctrica, piano, baixo e bandoneón – uma combinação clássica de agrupamento de tango. A versão de José Bragato para trio de piano foi provavelmente arranjada logo após Piazzolla ter concluído o conjunto. Outras versões de As Quatro Estações de Piazzolla foram arranjadas para quinteto de sopros, violoncelos e contrabaixo, tendo inúmeras outras versões para instrumentos clássicos surgido desde então, incluindo para piano solo e para orquestra de câmara com solista e coro.
Bragato nasceu em Itália em 1915 e cresceu no seio de uma família de músicos, tendo deixado o país para se estabelecer na Argentina em 1927. Bragato continuou aí a sua formação em piano, iniciada em Itália, mas também estudou violoncelo. A par da sua florescente carreira como intérprete de música clássica, actuou também em diversas bandas de tango e jazz, trabalhando, ao mesmo tempo, no célebre Teatro Colón, onde foi o principal violoncelista da ópera. Quando começou a dirigir orquestras, começou também a fazer arranjos de peças para diversas rádios. Após vários anos a tocar violoncelo nos agrupamentos de tango de Piazzolla, este homenageou o seu amigo com um dos seus tangos, intitulando-o Bragatissimo.
Embora cada uma das estações de Vivaldi inclua três andamentos contrastantes, a interpretação das estações de Piazzolla apresenta apenas um andamento por estação. No entanto, cada andamento sazonal ostenta tons variados, incorporando as inspirações sonoras que ocorrem naturalmente em qualquer época do ano, juntamente com a emotividade de vidas vividas. Sendo cada estação totalmente separada, os artistas são livres de ordenar os andamentos como desejarem. Ao contrário de Vivaldi, Piazzolla não incluiu poesia descritiva para acompanhar cada uma das suas estações, instigando a imaginação dos ouvintes a uma imersão plena na vida portenha.
Primavera abre com uma linha de violino impulsionada ritmicamente com acompanhamento de violoncelo dedilhado e piano esparso. Todos os instrumentos acabam por executar o tema irregular numa fuga ardente antes do violino e do violoncelo se fundirem para realçar o tema principal. Um solo lamentoso de violoncelo atinge o registo mais agudo do instrumento antes do retorno do violino. Pouco depois, o pulso enérgico regressa e conclui Primavera com vigor e esplendor.
Verano (Verão) começa com um solo de piano arrastado, acompanhado de uma batida na lateral do violoncelo. Gestos repetidos de duas notas expandem-se organicamente e o tom tranquilo de uma secção contrastante, com o violino melancólico e depois o violoncelo, capta um certo ritmo de vida lento na cidade. Golpes violentos contra as cordas dos instrumentos quebram a disposição descontraída e exibem força e energia percussiva. Com uma abundância de atmosferas mutáveis, Verano termina energicamente com um glorioso floreado no piano.
A uma soturna introdução de piano em Otoño (Outono), juntam-se rapidamente as cordas, conduzindo a mais um solo de violoncelo desamparado, repetindo continuamente os gestos chorosos. O violino entra com o tema das folhas a cair, oferecendo uma perspectiva lustrada e reflectindo sobre memórias de anos passados. O encanto é subitamente quebrado, como se o pulsar de Buenos Aires rompesse finalmente a melancolia.
O violino e o violoncelo introduzem o tema de abertura de Invierno (Inverno) em uníssono, sendo o tema então apoderado por acordes vigorosos. Uma cadência de piano, indagante e exploratória, encontra o tema principal para si com solidão e introspecção. Uma vez mais, as mudanças de tom são drásticas, desta feita com acordes repetidos e pontuados, que vão perdendo gradualmente a sua energia antes de se transformarem em mais um triste solo de violoncelo, posteriormente acompanhado pelo violino. As duas cordas tocam novamente em uníssono, proporcionando profundidade e seriedade ao tema principal. Tal como acontece com outras estações, a constante mudança de tom – do animado e robusto – encontra sempre caminho para mais uma melodia maravilhosamente elaborada. Nostálgico e com frases requintadas, o tema final encerra a estação com grande pungência e serenidade.
Por Jules Lai