Nascido a 22 de Dezembro de 1858, em Lucca, na Toscânia, o compositor italiano Giacomo Puccini continua a ser um dos mais impactantes e eficazes representantes do realismo operático até aos dias de hoje. O verismo, termo italiano para “realismo”, ganhou destaque em Itália durante os finais do século XIX, centrando-se nas pessoas comuns, nas suas lutas e nas duras realidades da vida. O verismo centra-se frequentemente em temas como o amor e até a violência, apresentando árias apaixonantes regidas por harmonias emotivas, acompanhadas por exuberante orquestração.
Puccini descende de uma longa linhagem de músicos. O seu trisavô, o bisavô, o avô e, finalmente, o seu pai, todos se sucederam no cargo de director musical e organista na Catedral de San Martino, em Lucca, uma descendência musical que durou 124 anos. Na altura em que o pai de Puccini faleceu, este tinha apenas cinco anos de idade e, dado o tremendo impacto musical que a família teve em Lucca, o município apoiou-a financeiramente, chegando mesmo a manter a vaga na Catedral até que Puccini atingisse a maioridade e fosse devidamente formado para ocupar o cargo do pai.
Orientado pelos seus tios, Puccini começou por estudar na Escola de Música Pacini, na sua cidade natal, tendo prosseguido os estudos no Conservatório de Milão. Compondo sempre enquanto estudava, Puccini ganhou rapidamente boa reputação acabando por se consagrar como um dos grandes jovens compositores emergentes da época.
Puccini deparou-se pela primeira vez com La Tosca, uma peça da autoria do dramaturgo francês Victorien Sardou, em 1889. Tendo alcançado um sucesso tremendo, La Tosca foi representada pela Europa fora mais de 3.000 vezes A ideia de compor uma ópera baseada na obra de Sardou germinou em Puccini quando este estava ainda a terminar as suas outras adoradas óperas: Manon Lescaut e La Bohème. Numa carta ao seu editor, escreveu: “Nesta Tosca vejo a ópera que me é necessária, não de proporções excessivas, nem como espectáculo decorativo, nem passível de dar azo à habitual superabundância musical.”
No entanto, Sardou teve inicialmente as suas dúvidas e apreensões, preferindo que a sua peça fosse adaptada por um compositor francês. Os libretistas também tinham dúvidas sobre a forma como La Tosca seria traduzida para o público na forma operática. Após uma série de negociações entre o editor de Puccini e o agente de Sardou (bem como outro compositor a quem foram inicialmente concedidos os direitos da peça), Puccini conseguiu, por fim, levar a sua avante. Seis anos após ter visto La Tosca pela primeira vez, Puccini decidiu compor a sua própria Tosca, em colaboração com o libretista Luigi Illica.
Estreada a 14 de Janeiro de 1900, em Roma, Tosca, com os seus três actos, tendo cada um dos quais como cenário monumentos romanos conhecidos – a Igreja de Sant’Andrea della Valle, o Palácio Farnese e o Castelo Sant’Angelo – segue o percurso de uma cantora caprichosa, um pintor idealista e um chefe de polícia cruel. Apesar de o tema ter inicialmente suscitado alguma hostilidade (incluindo ameaças de violência), às 11:00 horas da manhã do dia de estreia, havia já uma enorme multidão reunida em torno do teatro para assistir ao espectáculo dessa noite. Segundo relatos publicados na Gazzetta Musicale, o público que tentava entrar no teatro gritava tão alto e fazia tanto barulho que a orquestra, que mal tinha começado a tocar, teve de suspender a actuação e esperar que todos se acalmassem para recomeçar.
No final da estreia de Tosca (com inúmeras ovações para a soprano e o tenor após os seus encores), Puccini recebeu seis ovações em palco e o elenco recebeu 21, tendo este oferecido mais cinco encores a um público alucinadamente entusiástico. Apesar da recepção do público, os críticos revelaram-se paradoxalmente menos efusivos. A Gazzetta Musicale alude à produção dita “imperturbada” como efeito da multidão caótica sobre o espectáculo, bem como às ameaças violentas que se presume terem provindo de colegas invejosos do compositor. Independentemente disso, Puccini escreveu calmamente ao seu editor: “Isto não é de todo orgulho da minha parte. É a convicção de ter expressado da melhor forma que consegui o drama que estava diante de mim.”
A história de Tosca tem início na manhã de 17 de Junho de 1800 e termina na madrugada do dia seguinte. Cesare Angelotti, um antigo cônsul da República Romana, fugiu da prisão. Procurando refúgio na Igreja de Sant’Andrea della Valle, esconde-se numa capela onde a sua irmã havia escondido uma chave.
O artista Mario Cavaradossi entra para retomar o trabalho na sua pintura de Maria Madalena. Um velho sacristão observa a imagem, comentando que o rosto de Maria lembra muito o de uma mulher que visitou a mesma capela onde Angelotti está escondido. Cavaradossi revela que a mulher loira do seu quadro é, na verdade, inspirada na irmã de Angelotti. Na sua curta, mas exaltada, ária de tenor Recondita armonia (“Harmonia oculta”), para desespero do sacristão, Cavaradossi compara o seu amor pela célebre cantora Floria Tosca ao seu retrato de Maria, comentando a capacidade da arte de conjugar duas belezas contrastantes. Ostentando linhas melódicas longas e desinibidas sobre uma orquestração exuberante, a ária atinge o clímax pontuada pelos tímpanos enquanto Cavaradossi proclama, com emoção genuína, que Tosca continua a ser a dona dos seus pensamentos enquanto pinta Maria.
Assim que o desaprovador sacristão sai, Angelotti aparece em cena e implora ao pintor para o ajudar, ciente de que este tem simpatias políticas pelo cônsul. Com a promessa de Cavaradossi de o ajudar nessa noite, Angelotti esconde-se mais uma vez ao ouvir Tosca a aproximar-se.
Entra Tosca, cheia de ciúmes, suspeitando que o pintor anda a traí-la. Na sua ária de soprano, Non la sospiri, la nostra casetta (“Não suspiras pela nossa casinha”), pergunta a Cavaradossi se a perspectiva de uma vida em comum o satisfaz, ilustrando a sua futura casinha com todas as contradições que os rodeiam e expressando o seu amor louco por ele. A ária começa com um tom plangente, com um acompanhamento de cordas dedilhadas, aparentemente retratando o lar idílico do casal no bosque e tornando-se melancólica com perguntas e mágoas. Puccini transforma a melodia peculiar com que iniciou a ária em súbitas explosões de proclamação descarada e a ária termina abruptamente, uma vez mais, com algumas meras notas dedilhadas.
Inicialmente tranquilizada por Cavaradossi, Tosca reconhece subitamente o rosto da bela loira da pintura como sendo o da irmã de Angelotti, a marquesa Attavanti. Para amenizar novamente o ciúme inflamado, o pintor reafirma a sua fidelidade a Tosca, explicando que tinha simplesmente visto a marquesa a rezar na capela enquanto pintava. Em Qual’occhio al mondo (“Que olhos no mundo”), Cavaradossi apazigua Tosca e convence-a do seu amor por ela. A escrita de Puccini denota entrega, com linhas crescentes que captam ao mesmo tempo a insegurança de Tosca e o sentimento desenfreado de Cavaradossi pela sua amada ciumenta. Mais uma vez, a orquestra enche-se de impulsividade, explodindo de emoção enquanto Tosca, finalmente apaziguada, sai da capela. Angelotti reaparece e, com uma salva de canhão a assinalar a descoberta da sua fuga, os dois regressam a correr à residência de Cavaradossi em busca de refúgio.
O sacristão e o coro da igreja comemoram a derrota francesa no norte de Itália quando o barão Scarpia, o chefe da polícia de Roma, chega com os seus homens, Spoletta e outros agentes da polícia. Passando revista à igreja, descobrem um leque com o brasão de Attavanti. Ao ficar a saber que Cavaradossi, de quem Scarpia desconfia politicamente, tinha estado a trabalhar na igreja, Scarpia conclui que o pintor deve ser cúmplice na fuga de Angelotti.
Quando Tosca regressa para se encontrar com Cavaradossi, Scarpia – reconhecendo o rosto da marquesa no retrato – recorre ao leque para levá-la a acreditar que Cavaradossi foi, afinal, infiel. Enfurecida, Tosca corre para casa e jura vingança, sem saber que os homens de Scarpia a estão a seguir para chegar a Cavaradossi. A congregação enche então a igreja e começa a entoar o Te Deum, um hino latino de louvor e acção de graças. Juntando-se ao coro, Scarpia declara que sempre quis Tosca para si, e eliminar Cavaradossi.
O segundo acto abre com Scarpia a jantar nos seus aposentos, no Palácio Farnese. Spoletta relata que, embora Angelotti continue desaparecido, Cavaradossi foi detido e levado para o palácio. Após interrogar um Cavaradossi desafiador, e sabendo muito bem que Tosca cantará no palácio nessa noite numa festa de gala, Scarpia manda buscá-la. Enquanto é escoltado a caminho da tortura, Cavaradossi cruza-se com Tosca e sussurra-lhe, implorando-lhe que nada revele. Quando começa a questionar Tosca sobre o paradeiro de Angelotti, Scarpia informa-a que o pintor está a ser torturado mesmo ali ao lado. Incapaz de tolerar os gritos de Cavaradossi, Tosca, a princípio resoluta, acaba por revelar o esconderijo de Angelotti.
Scarpia ordena que o pintor seja trazido de volta, ensanguentado e ferido, e revela cruelmente que Tosca o traiu. O agente da polícia Sciarrone chega com a notícia de que o exército francês de Napoleão marcha em direcção a Roma e Cavaradossi grita a Scarpia que o seu reinado de terror terminará em breve. De imediato, Scarpia ordena que o artista seja levado para ser executado.
Quando se vê sozinho com Tosca, Scarpia faz-lhe uma proposta: libertará Cavaradossi se esta for sua amante. Indignada e revoltada, Tosca rejeita repetidamente os seus avanços cada vez mais insistentes. Ao ouvir os tambores lá fora a anunciar uma execução, Tosca começa a rezar. A sua ária, Vissi d’arte (“Vivi para a arte”), talvez uma das árias mais icónicas de Puccini, é uma oração que questiona por que razão Deus a abandonou. Abrindo com um lamento sombrio de cordas subtis, Tosca pronuncia “Vivi para a arte, vivi para o amor, nunca fiz mal a uma alma viva!”. Com a entrada da harpa, a oração floresce à medida que vão entrando mais cordas. A melodia ascendente e descendente, cheia de tristeza e desespero, afrouxa e eleva-se. O ritmo de Puccini dá eco à dor e à condição humana, oferecendo pausas para reflectir, respirar e chorar. A voz de Tosca atinge um auge pleno e desprendido, terminando então num sussurro desolado.
Spoletta regressa subitamente, anunciando que Angelotti se suicidou. Profundamente angustiada, Tosca aceita relutantemente a proposta de Scarpia para salvar o seu amado. Scarpia ordena a Spoletta que prepare a execução simulada de Cavaradossi e Tosca exige receber, por escrito, um salvo-conduto para escapar de Roma.
Concordando com estes termos, Scarpia redige o documento na sua secretária, sem saber que Tosca acaba de esconder nas costas um punhal que tirou da mesa de jantar. Scarpia aproxima-se alegremente de Tosca após terminar a redacção do documento e, ao abraçá-la, Tosca esfaqueia-o e grita: “Este é o beijo de Tosca!”. Após certificar-se de que está morto, Tosca pega no salvo-conduto, coloca algumas velas junto do corpo de Scarpia deixando-lhe o punhal sobre o peito antes de se retirar.
O terceiro acto começa ao amanhecer, com Cavaradossi a aguardar a sua execução no Castelo de Sant’Angelo. Um pequeno pastor pode ser ouvido à distância a cantar Io de’ sospiri (“Dou-te suspiros”), uma melodia melancólica e rítmica que contrasta fantasmagoricamente com os sinos pesados e sinistros da igreja.
Cavaradossi tenta escrever uma carta a Tosca, mas fica desesperado. A sua ária, E lucevan le stelle (“E reluzem as estrelas”), abre com uma melodia triste no clarinete, que ascende e descende, terminando a frase com uma simples viragem de algumas notas que mimetizam o tremor da voz. Sendo mais uma das árias mais reconhecidas de Puccini, o clarinete solo evoca a sensação de solidão, pairando sobre a voz do tenor como uma sombra. Cavaradossi prossegue com a melodia triste, agora sublinhada por cordas, ascendendo lentamente em emotividade e força bruta, culminando no grito: “Ai de mim que morro desesperado! E nunca a vida me foi tão querida, não, nunca, tão querida, não, nunca!”.
Tosca chega subitamente, mostrando-lhe o salvo-conduto e revelando que matou Scarpia depois deste lhes ter facultado o documento e dado ordens para uma falsa execução. Vencido pela audácia e destemor da sua amada, Cavaradossi canta O dolci mani (“Oh, doces mãos”) enquanto olha para Tosca. Abrindo com frases longas por excelência e imbuído de textos de gratidão e alívio, Puccini consegue, contudo, incorporar harmonias sinistras que prenunciam o que realmente está para vir. Os dois unem-se em harmonia e êxtase, sonhando com a sua vida a dois muito, muito longe de Roma.
Depois de implorar a Cavaradossi que finja a sua morte de forma convincente, Tosca assiste de longe à falsa execução. Quando o pelotão de fuzilamento dispara, Tosca chega mesmo a exclamar Ecco un artista! (“Que grande actor!”), quando ele cai. Assim que o pelotão sai, Tosca corre para Cavaradossi, apercebendo-se então que Scarpia havia mentido e que a execução era afinal real. Segurando o cadáver de Cavaradossi nos braços em plena agonia e angústia, ouve as vozes de Spoletta, Sciarrone e de soldados a gritar que Scarpia está morto e Tosca é culpada.
Quando os homens correm para a prender, Tosca empurra-os e corre para o parapeito, enquanto Spoletta grita “Ah, Tosca, vais pagar caro pela vida dele!”. Em desafio, Tosca responde: “Com a minha!”, e atira-se do parapeito, gritando ao cair para a morte: “Oh, Scarpia! Diante de Deus!”
Por Jules Lai