A arte do guqin é um testemunho da filosofia da civilização chinesa impresso na música. Os sons etéreos do guqin são reproduzidos através da direcção do dedilhar das cordas que, juntamente com o som que perdura no ar, transmitem um encanto oriental tal como o que é expressado através dos pontos e linhas de uma pintura tradicional chinesa. O som sustentado é semelhante ao espaço em branco de uma pintura, sendo o traço diacrónico da estética oriental acentuado pelas variações melódicas decorrentes da alternância de tons. Fazendo uma comparação estrutural estereoscópica, pode dizer-se que, na sua polifonia, a música clássica (ocidental) expressa um sentido de espaço mais forte, enquanto que a música chinesa enfatiza sobretudo a fluidez melódica. As conotações espirituais de civilizações diversas reflectem-se assim nestes dois estilos musicais amplamente diferentes.
Neste concerto, assistiremos ao encontro entre a sonoridade do guqin com a música de câmara, oferecendo a esta última uma nova faceta, concretizando, de forma inovadora, um diálogo entre diferentes civilizações através de notas musicais. Canção do Ch’in de Zhou Long recria os tons únicos e o encanto do guqin através da forma clássica do quarteto de cordas. Este “diálogo musical” terá início com o quarteto de cordas liderado por Ma Weijia, director assistente da Orquestra do CNAC com a sua reprodução incisiva do som deste instrumento milenar, seguindo-se três peças clássicas interpretadas pelo conceituado mestre do guqin Chen Leiji. Estas composições “descodificadas” a partir de partituras centenárias incluem Canção do Pescador, Água a Fluir e O Dragão em Ascensão, apresentando pensamentos de eruditos reavivados na música de diferentes escolas de guqin. Neste ponto, o tesouro que é este instrumento entrará em diálogo com a música de câmara ocidental. Com arranjo de Liu Yuan para guqin, violino e clarinete, a obra-prima A Lua Reflectida na Nascente Er-quan, de Hua Yanjun, explora a tentativa de uma representação mais estereoscópica da melodia. Mais Um Copo de Vinho Antes de Partir, composta por Yao Chen, baseia-se na antiga melodia chinesa Três Variações sobre a Passagem de Yang, na qual o quarteto de guqin, violino, viola e violoncelo retrata a apreciação mútua e os laços entre as pessoas, em tempos antigos. As peça seguinte deste concerto fará convergir a música chinesa e ocidental através de uma actuação em que os papéis serão trocados. Música da Nuvem Sagrada, composta por Zhao Jiping, é inspirada numa composição homónima que remonta ao século VII. A peça foi compilada pelo etnomusicólogo Rembrandt Wolpert com base em dois manuscritos arqueológicos. Nesta nova peça, algumas melodias para guqin foram rearranjadas para quarteto de cordas. No final, o magistral quarteto de cordas de F. Schubert, “A Morte e a Donzela”, e a melodia para guqin A Mansão Isolada, de Ji Kang, iniciam um diálogo musical entre a vida e a morte.
No seu ensaio A Música Não Tem Tristeza Nem Alegria, Ji Kang escreveu “a música não tem uma imagem fixa, mas pode ser moldada por um coração triste”, o que quer dizer que a música não tem significado em si mesma e a interpretação varia dependendo do ouvinte. Arthur Schopenhauer acreditava que “a música é uma manifestação directa da própria vontade”. Estes dois sábios do Oriente e do Ocidente consideravam a música o melhor meio para expressar pensamentos e sentimentos. A diversidade de civilizações, decorrente das suas diferentes línguas e geografias, é harmonizada na música. “Deve ser dada prioridade à compreensão da melodia e às suas implicações.” É a empatia para além das notas que faz da música a linguagem comum a toda a humanidade.
Zhou Long: Canção do Ch’in para Quarteto de Cordas
Escrita em 1982 com o tema da peça para guqin Canção do Pescador, esta composição procura recriar o imaginário do poema Um Pescador, da autoria do escritor da dinastia Tang, Liu Zongyuan. Canção do Ch’in estabelece um elo de ligação entre as culturas chinesa e ocidental, aplicando a essência da música chinesa antiga na composição da música instrumental ocidental. A interpretação do guqin caracteriza-se por uma variedade de ornamentos, tons e técnicas de dedilhado, incluindo o dedilhar para dentro e para fora do dedo médio e do indicador da mão direita, ou os vibratos e glissandos com a mão esquerda. Apresentada em forma de quarteto de cordas ocidental, esta composição baseia-se na técnica e no encanto das actuações de guqin para captar o ritmo especial da sua música.
Melodia Antiga: Canção do Pescador para Guqin Solo
A partitura indica que esta canção é uma melodia pujante baseada nas imagens evocadas pelo célebre poema de Liu Zongyuan da dinastia Tang: “Um pescador passa a noite no sopé da montanha Xishan, / e ao amanhecer acende uma fogueira com bambu para ferver água do rio Xiang. / A neblina dispersa-se e o sol nasce sem ninguém à vista; / Só o barco flutua entre as montanhas e águas glaucas. / Olhando para trás, está já a navegar no meio do rio; / Acima da montanha, há nuvens que se perseguem irreflectidamente umas às outras”. Além disso, esta canção está igualmente imbuída das típicas qualidades “puras, delicadas, silenciosas e profundas”, apresentando uma melodia antiga e serena de uma tranquilidade que acalma a respiração dos ouvintes e evoca um imaginário agradável. Esta composição produz uma impressão refrescante através do recurso a melodias e cantos folclóricos, bem como uma forte segunda modulação na coda.
Melodia Antiga: Água a Fluir para Guqin Solo
Encontrada nas Tianwenge Qinpu (Partituras de Ch’in do Pavilhão Tianwen) (1876), esta peça é considerada uma célebre canção para guqin do Período (histórico) da Primavera e do Outono da China (770-481 a.C.), retratando uma paisagem com pequenos riachos convergindo em rios e oceanos para expressar louvor e amor ao país. A canção é bem conhecida, sendo muito difundida junto do povo por estar intimamente associada à história folclórica dos amigos íntimos Boya e Ziqi, que se conheceram no mesmo período da história da China.
Melodia Antiga: O Dragão em Ascensão para Guqin Solo
Encontrada pela primeira vez nas Chengjiantang Qinpu (Partituras de Ch’in da Mansão Chengjian) (1686), esta é uma obra representativa da Escola Guangling de Guqin e acredita-se que foi inspirada na história de Wang Zhaojun quando esta parte para a fronteira, representando a sua miséria. De acordo com as partituras e actuações dos antecessores, porém, esta peça não é de todo miserabilista, transmitindo apenas pensamentos filosóficos que giram em torno da solenidade, da liberdade, da existência e da dissolução do eu, bem como uma vaga sensação de abandono.
Hua Yanjun / Arr. Liu Yuan: A Lua Reflectida na Nascente Er-quan, arr. para Guqin, Violino e Clarinete
Esta é uma peça escrita originalmente pelo intérprete de erhu chinês Hua Yanjun (Abing) para expressar a sua melancolia, constituindo o clássico de erhu mais conhecido na China. Começou por ser uma improvisação de Abing sem título a que o músico acabou por chamar de “melodia espontânea” e a que os seus vizinhos chamaram “melodia do coração”. A versão para trio de A Lua Reflectida na Nascente Er-quan, arranjada por Liu Yuan, é presença comum no repertório de música de câmara chinesa.
Yao Chen: Mais Um Copo de Vinho Antes de Partir para Guqin e Trio de Cordas
Este título deriva da célebre Canção da Passagem de Yang, um poema de Wang Wei, poeta da dinastia Tang, que expressa o elo profundo entre amigos inseparáveis, baseando-se na antiga canção Três Variações sobre a Passagem de Yang. O compositor desconstruiu os principais motivos musicais desta peça a partir de diferentes perspectivas e reconstruiu estes belos materiais com a sua própria lógica criativa, explorando as sinergias entre o guqin e o trio de cordas ocidental, revelando progressivamente as esplêndidas amizades e relações entre os músicos.
Zhao Jiping: Música da Nuvem Sagrada para Guqin e Quarteto de Cordas
Esta peça é inspirada numa composição homónima que remonta a cerca do ano de 640, tendo a composição original sido compilada pelo etnomusicólogo Rembrandt Wolpert com base em dois manuscritos arqueológicos. As melodias de guqin na segunda secção foram rearranjadas para quarteto de cordas, a fim de gerar um diálogo entre as antigas tradições musicais chinesa e europeia. As melodias de contraponto da última secção são executadas com o pizzicato do violoncelo.
F. Schubert: Quarteto de Cordas n.º 14 em Ré Menor, D. 810 “A Morte e a Donzela”, 1.º andamento
Na mitologia grega, o rei do submundo rapta Perséfone, filha de Deméter, a Deusa da Colheita, para fazer dela a sua rainha. A deusa lamenta a perda da sua filha, arruinando todas as colheitas. Apolo, o Deus do Sol não suporta a desolação e informa a deusa do paradeiro da sua filha. Zeus, não consegue revitalizar a terra e incumbe um outro deus de trazer Perséfone de volta, a qual, entretanto, já ingeriu seis sementes de romã, implicando o seu dever de regressar ao submundo durante seis meses todos os anos. Assim sendo, tudo na terra prospera durante os seis meses de união entre Deméter, a Deusa da Colheita e a sua filha. O mito, que simboliza o ciclo da vida e da morte, de ascensão e queda, inspirou inúmeros artistas, incluindo Schubert, o qual retrata a história em forma de quarteto de cordas. O compositor recria o classicismo de Beethoven ao estilo do Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), fazendo os instrumentos soar em uníssono conflituoso e permitindo assim à música de câmara criar o efeito emocionante das sinfonias e infundir dramatismo e uma qualidade trágica na composição.
Ji Kang: A Mansão Isolada para Guqin Solo
Esta composição, que apenas se encontra na Xilutang Qintong (Antologia de Ch’in do Pavilhão Xilu), compilada por Wang Zhi durante o reinado do Imperador Jiajing da dinastia Ming, relata um mito, recorrendo à música como linguagem narrativa. Segundo a inscrição, Ji Kang estava a tocar guqin à meia-noite quando, repentinamente, se levantaram rajadas de vento, e uma tempestade e oito espíritos apareceram para lhe relatar as suas misérias. Os espíritos acabam por conseguir que as suas injustiças sejam reparadas e despedem-se de Ji Kang no seu sonho, no dia seguinte.
Notas ao programa escritas originalmente em chinês, providenciadas pela Orquestra do CNAC da China e pela Naxos China