Texto Introdutório

Biquinhos e Barbatanas no Ar

Miúdos e crescidos estão convidados para uma explosão de penas, passinhos engraçados e piruetas estonteantes. A Circa está de volta à cidade com Laguinho dos Patos, uma nova mescla artística que junta os mundos do circo, ballet e teatro, fundindo um bailado clássico com um conhecido conto infantil. Chapinhemos um pouco enquanto espreitamos as histórias que inspiraram este espectáculo imaginado por Yaron Lifschitz, desde há muito director artístico da Circa!

Duas belas histórias numa só
Impelido por fantásticas acrobacias, no chão ou a lá no alto, Laguinho dos Patos é livremente inspirado no Lago dos Cisnes, um clássico frequentemente descrito como o ballet mais romântico de todos os tempos. Composto pelo mestre russo Pyotr Tchaikovsky, o bailado conta a história de amor entre o príncipe Siegfried e Odette, uma princesa que foi transformada em cisne por um malvado feiticeiro. Estreado pelo Bolshoi em 1877, ao longo dos tempos o ballet foi levado à cena pelas maiores companhias e interpretado por bailarinas de topo como Margot Fonteyn, que dançou o papel principal numa produção do Royal Ballet em 1963. Mais recentemente, a obra-prima inspirou inúmeras adaptações, como a emocionante versão contemporânea de Matthew Bourne, conhecida por ter substituído o clássico corpo de baile feminino por um conjunto totalmente masculino. Foi também no grande ecrã que este que é o primeiro dos três grandes ballets de Tchaikovsky (seguiram-se A Bela Adormecida e O Quebra-nozes) foi readaptado diversas vezes, tendo a sua música integrado uma série de filmes icónicos, do Fantasma da Ópera (1925) a Drácula (1931), e até a um filme televisivo na década de 80. Passando rapidamente para o nosso tempo, a maioria dos amantes do ballet e do cinema não terá esquecido o grande sucesso de Cisne Negro, a versão contemporânea do clássico realizada por Daren Aronofsky, lançada em 2010, com Natalie Portman no principal papel.

Embora tenham existido múltiplas versões deste ballet com uma diversidade de desfechos, a maior parte destas não incluía um final feliz. Essa talvez seja a razão que levou Lifschitz a juntar à cena O Patinho Feio, um conto escrito por Hans Christian Andersen, publicado pela primeira vez em finais do século XIX. Como muitos de nós recordarão, a história de transformação e aceitação de Andersen acaba em beleza quando, após alguns percalços, o pequeno protagonista se transforma num magnífico cisne branco. Tendo sido adaptado inúmeras vezes, tanto para o palco como para o ecrã, o conto tornou-se imensamente popular em dois inesquecíveis filmes clássicos de desenhos animados produzidos pela Walt Disney, há muito, muito tempo, na década de 1930. Foi muito mais tarde, já nos anos 80, que a história transbordou para o mundo da dança contemporânea. Foi então que o coreógrafo Mats Ek criou uma escandalosa paródia que, tal como Laguinho dos Patos, buscou inspiração no conto de Andersen para encenar a sua versão de Lago dos Cisnes. Num golpe arrojado, o pioneiro sueco transferiu a magia e beleza dos cisnes para um mundo mais realista cujas personagens retratou como estranhas e pouco atraentes.

Uma mente criativa
Foi também de forma arrojada e inovadora que a Circa floresceu nos palcos internacionais, sob a orientação de Yaron Lifschitz. Nascido na África do Sul, o director artístico da companhia é pai de três filhos (um já crescido e dois ainda pequenos) e cresceu em Sidney, onde a família se estabeleceu nos anos 80. Na Austrália, a sua enorme criatividade artística foi crescendo, levada pela pujante dinâmica do circo contemporâneo local. De eventos de grande escala, incluindo ópera e teatro físico, ao circo contemporâneo, Lifschitz encenou e dirigiu mais de 80 produções apresentadas em mais de 40 países em todo o mundo e vistas por milhões de pessoas. Ansioso por colaborar em todos os campos artísticos, a sua companhia tem vindo a redefinir os limites do circo. O criador não parou de experimentar, tendo levado uma dimensão acrobática a obras como A Sagração da Primavera, de Stravinsky, um bailado experimental que ao longo de mais de 100 anos inspirou novas reposições e nunca tinha sido adaptado ao circo, até a Circa ter levado à cena o espectáculo Sacre, em 2022. Um par de anos antes, o criador dirigiu a primeira encenação acrobática da 9.ª Sinfonia de Beethoven, e em 2019 a Circa aventurou-se no mundo da ópera com a estreia de Orfeu e Eurídice, um espectáculo que reinventa a influente peça de Gluck. Para além da excelente música, o espectáculo também foi louvado pelo incrível design de vídeo. O segredo da afirmação da Circa deriva sobretudo da capacidade que Lifschitz tem de emocionar diferentes públicos, inventando atmosferas diversas, à medida que incentiva a sua equipa a abraçar novas técnicas. E para consegui-lo produziu maravilhas como Shaun a Ovelha um espectáculo hilariante para toda a família, ou até produções um pouco mais sombrias como Partida, uma aventura assombrada que entre 2016 e 2017 levou artistas circenses, coristas e música electrónica numa ‘arrepiante’ digressão por vários cemitérios do Reino Unido.

 

De volta à cidade
Em Macau, os amantes das artes performativas ainda devem lembrar-se da primeira visita da Circa, há uns anos, com Carnaval dos Animais. Já nessa altura a companhia de Lifschitz nos trouxe um colorido exemplo de reinvenção, lembrando-nos que o circo terá contribuído para a evolução de muitas outras artes de palco. O segredo para continuar a alargar horizontes é, segundo o encenador, evitar a repetição. “Eu desconfio profundamente de qualquer coisa que se pareça com uma fórmula nas artes. Temos apenas que chegar e criar, é esse o trabalho de um artista. Essa é muito a forma de estar da companhia. É uma série de aventuras”, afirma. E como parte de muitas dessas aventuras, Laguinho dos Patos é uma bela ilustração da paixão e dedicação da companhia. Pleno de saltos, pinos, mortais e piruetas, o espectáculo cativa um público vasto, dos miúdos aos mais crescidos. No entanto, só por si, a capacidade física não seria suficiente para criar tamanha magia em palco. Enquadrado por uma eficaz iluminação e bonita música com salpicos de Tchaikovsky, o cenário simples enche-se de belos e elásticos figurinos, permitindo que os artistas se movam livremente. Do príncipe da coroa dourada aos cisnes, passando pelo engraçado bando de patos que marcham desajeitadamente com as suas barbatanas amarelas e armados de esfregonas laranja, tudo é magia pura, produzida de forma magnífica, só para nos encantar.