Artes

REFLEXÕES SOBRE A PINTURA DE KONSTANTIN BESSMERTNY

Fernando António Baptista Pereira *

Konstantin Bessmertny. Violonceloll,1996. Óleo sobre violoncelo.

Raras vezes tenho visto, nos últimos anos, uma imaginação figurativa tão prodigiosa como a do pintor russo radicado em Macau Konstantin Bessmertny. Desde a primeira hora em que tive a feliz oportunidade de conhecer a obra do pintor que me senti irresistivelmente atraído pelo seu fascínio narrativo, pela sua opulência cromática e pela excelência e ousadia da execução. Ansiava, pois, por este privilegiado momento em que posso falar em voz alta de uma tão importante proposta pictural para o nosso tempo.

Konstantin é um pintor profundamente russo na maneira como utiliza a matéria cromática e, sobretudo, no modo como absorveu e transformou a secular tradição da pintura de ícones, nomeadamente ao organizar de forma narrativa as suas composições utilizando registos sobrepostos de pequenas cenas (verdadeiros "quadros dentro do quadro"). Todavia, ao invés da repetição de fórmulas iconográficas e de processos pictóricos que caracteriza aquela tradição da Europa Oriental, Konstantin cruzou todas essas referências com multas outras, bebidas umas na esplendorosa tradição ocidental (Bosch, Brueghel, Hogarth, por exemplo), colhidas outras nos grandes sistemas visuais da contemporaneidade (o expressionismo, o surrealismo, o gestualismo, a abstração lírica, a nova figuração, entre outros), sem esquecer a paixão pela Ópera ou as inevitáveis "contaminações" do Oriente (da pintura budista às cores dos ambientes locais), e inventou uma linguagem própria, profundamente cosmopolita e genuinamente pós-moderna, que, longe de se esgotar, tem sabido encontrar as diferentes modalidades expressivas com que aborda uma original visão do mundo e dos homens.

Tanto no retrato (colectivo ou individual) como nas suas "histórias das humanas fraquezas", como ainda nas suas pinturas mais "selváticas" (formalmente falando, como iremos ver) ou nos seus "instrumentos musicais e outros objectos pintados" (verdadeiras "instalações" iconográficas), Konstantin representa uma humanidade, ora ciente da sua dignidade e da sua riqueza interior, ora amiudemente assombrada por fragilidades múltiplas, recorrendo, compensatoriamente, a uma panóplia de máscaras com que pretende disfarçar essas fraquezas com forças emprestadas pelo poder, pelo dinheiro, pelo sexo...

A estruturação narrativa das composições determina, na pintura de Konstantin, as diferentes opções espaciais, ora recriando ilusões tridimensionais povoadas por microcenas quase sempre burlescas, ora reduzindo o espaço pictural a uma superfície de encenação do gesto e da matéria, em que a figura humana aumenta de escala mas quase se dissolve no delírio gestual e cromático.

No primeiro caso, tornam-se evidentes as "citações" deliberadas de Bosch e, sobretudo, de Brueghel, quando estão em causa as diferentes situações da "Comédia Humana do nosso tempo" que o pintor descreve com um olhar satírico e mordaz (as "brincadeiras de adultos", as "torres de Babel", o "barco da anarquia", a "revolução ao contrário", as "lendas"). As figuras diminuem de escala, sendo a arquitectura espacial que estrutura as microcenas ou os "quadros dentro do quadro" a verdadeira protagonista, ao evocar, por vezes, a quadrícula imaginária da Banda Desenhada ou, na maior parte dos casos, um mundo feito (um pouco à maneira de Escher) das "impossibilidades" labirínticas em que a humanidade se "perde".

Num certo contraponto a estes universos picturais superpovoados de figuras e de subtis citações (da História da Pintura e da História Contemporânea) surgem os quadros que o artista designa por "wild things", composições de factura algo selvática no manejo da matéria, quase sempre dominadas por um registo cromático dominante (em "verde", em "rosa" ou em "vermelho") e em que os elementos figurais quase soçobram no gestualismo abstractizante que evidencia o próprio trabalho pictórico. Todavia, entre os dois grupos de pinturas, os contrastes detectáveis dir-se-iam mais significativos no que toca à metodologia de abordagem dos mesmos universos temáticos, figurativos e formais, do que na definição da linguagem própria do pintor, que nos aparece igualmente segura e pujantemente afirmativa nas duas séries.

O mesmo pode ser dito, finalmente, quanto aos objectos pintados, na sua maioria instrumentos musicais, em que o pintor retoma um dos seus temas mais queridos — a Música como palco das emoções humanas. Tirando partido da dualidade entre caixa e instrumento ou entre anverso e reverso, Konstantin, com a sua maneira muito especial de contar histórias através da pintura, constrói verdadeiras "instalações iconográficas" em torno de temas facilmente evocados pela música como são a Noite e o Dia, o Sono e a Vigília ou a Festa e o Poder.

Pelo modo como soube aliar tradição cultural e modernidade plástica, e pela forma inovadora como reintroduziu a narratividade na pintura do nosso tempo, a obra de Konstantin Bessmertny eleva-se como uma das mais sérias propostas plásticas da pós-modernidade, não apenas preocupada com a exibição puramente auto-referencial dos seus próprios processos mas, sobretudo, interessada em restaurar a Pintura como "fim-em-si" e "alteridade", ou seja, como "entidade própria" mas também como "comunicação" de uma visão "outra" do tempo que passa.

Konstantin Bessmertny. Caixa para Violino III, 1996. Óleo sobre madeira. Colecção Particular, Macau.

Konstantin Bessmertny. Caixa para Violino: O Dia e a Noite, 1996. Óleo sobre madeira. Colecção Particular, Macau.

Konstantin Bessmertny. Cavalgada, 1996. Escultura. Colecção Instituto Cultural, Macau.

Konstantin Bessmertny. Barco da Anarquia, 1996. Óleo sobre tela, 95 x 90 cm.

Konstantin Bessmertny. Panoramas de Macau (painéis 2 e 3), 1996. Óleo sobre tela, 180 × 55 cm. Colecção Particular, Macau.

Konstantin Bessmertny. Macau Histórico, 1996. Óleo sobre tela, 200 x 180 cm. Colecção Museu Marítimo, Macau.

Konstantin Bessmertny. Ópera Chinesa, 1996. Óleo sobre tela, 50 x 45 cm. Colecção Particular, Macau.

Konstantin Bessmertny. O Regresso das Torres, 1996. Óleo sobre tela, 111 x 132 cm.

* Força e Fraquezas: Konstantin Bessmertny, pp. [2-3], [catálogoda exposição realizada no Salão de ExposiçÕes "Comendador Ho Yin" do Clube Militar, em Novembro de 1996, sob o patrocínio do Instituto Cultural de Macau].

desde a p. 197
até a p.