Antropologia

O CULTO DA MULHER NO NEOLÍTICO CHINÊS

Ana Maria Amaro *

"O neanderthaliano não era o único tipo de homem a existir durante a última glaciação. Com efeito, o Oriente já tinha, no Wüm I, homens mais evoluídos do que ele na Sibéria (Afontova) e na China (Tseyang, Chilinshan, Liukiang)."

FERREIRA, O. da Veiga, LEITÃO, Manuel, Portugal Pré-históico, 2.a ed., Lisboa, Europa-América, s. d.

O letrado Yuan Tang (século I d. C.) considera quatro estádios históricos na civilização chinesa: o primeiro caracterizado pela utilização de armas de pedra, o segundo pela utilização do jade (polido), o terceiro pela utilização do cobre (bronze) e finalmente o quarto pela utilização do ferro. Esta ideia precedeu, em muitos séculos, a de C. J. Thomsen (1836) que considerava a pré-história humana dividida em três idades: pedra lascada, pedra polida e idade dos metais.

Quando Yuan Tang diferenciou a pedra (shi) do jade (yu), incluía na segunda categoria as pedras polidas em geral, de entre as quais sobressaía o jade como material de eleição.1

Segundo este mesmo autor chinês, foi durante o lendário reinado de Huang Di — o Imperador Amarelo, que apareceram as primeiras armas de jade na China.

O Imperador Amarelo (c. 3000 a. C.), cuja existência histórica se perde no domínio da lenda, é o 3.o dos três Augustos ou imperadores lendários, duma remota dinastia Xia da qual, até aos anos 70-80 do século xx, não se tinham encontrado quaisquer vestígios históricos. Admite-se que esta dinastia corresponderia a uma fase avançada do Neolítico chinês, uma vez que foram recentemente exumados no Norte da China, em Liaunim, vestígios arqueológicos duma antiga cidade com culto organizado e classes sociais bem demarcadas.2

O Neolítico chinês é, porém, um período ainda mal conhecido, por mal estudado, em resultado da escassez de dados arqueológicos até hoje exumados em tão vasto território.

Estabelecendo comparações, no tempo, entre a pré-história ocidental e a do Oriente, verifica-se que o período pós-glaciário de Wüm, na Europa, é equivalente, na China, ao período em que, ali, viveu o Homem de Dali, Homo Sapiens arcaico chinês (c. 50000 aproximadamente).

Vaso de cerâmica policromada, proveniente da província de Taitong, Xinghai, R. P. China.

Actualmente, por carência de estudos aprofundados de geologia, de paleoclimatologia e de pólens fósseis, é muito difícil imaginar qual o ambiente natural das áreas ocupadas pelos homens que viveram no Pleistoceno Médio em tão vasto território como é o da China. Por essa altura sabe-se que ventos do interior do continente asiático, carreando materiais detríticos, deram origem aos actuais planaltos loéssicos e a vastas extensões secas, que mudanças climáticas e a acção antrópica foram, a pouco e pouco, tomando hostis à fixação do homem.

Não é de estranhar, pois, que certas áreas onde, hoje, a caça e a colecta nos parecem impossíveis para sobrevivência humana, tivessem sido ocupadas, outrora, por bandos de homens capazes de se fixarem e desenvolverem uma cultura neolítica cujos vestígios são ainda muito mal conhecidos. Aliás, foi nos contrafortes dos montes Qinling, em Banpo (Shaanxi), que foram exumados os mais antigos restos de Hominóides e onde foi exumado, também, entre 1953 e 1957, o mais vasto conjunto neolítico hoje conhecido na China.

Esses vestígios arqueológicos, datados de 5000-3000 a. C., oferecem-nos uma imagem viva da primeira das grandes sociedades agrárias que floresceram na China. A povoação era constituída por abrigos semi-subterrâneos com coberturas feitas de vegetais. Eram construções, circulares ou quadrangulares, com cerca de 5 metros de diâmetro ou de lado. Admite-se que a vida comunitária dessa aldeia se desenvolvia já nas chamadas "casas dos homens", construções rectangulares, maiores do que as demais habitações, com cerca de 14 x 21 metros cujos vestígios foram ali exumados. Esta aldeia era protegida por um fosso de cerca de 100 x 200 metros, com uma profundidade de 5 a 6 metros, fosso onde corria água e que, para além da função de defesa, tinha a vantagem de irrigar os campos vizinhos. Para além deste fosso, encontraram-se túmulos rectangulares, repartidos por duas zonas distintas, uma destinada a mulheres e outra a homens, o que parece apontar para a existência de algumas regras funerárias, a mais aparente das quais era a separação dos sexos. As crianças, por seu turno, eram enterradas em vasilhas de barro, no chão das próprias residências ou nas suas imediações.

Anteriormente a este período hoje bem conhecido registou-se, na China, um hiato de cerca de 100000 anos, o que leva a muitas interrogações sobre o que se teria passado nos finais do Paleolítico, naquele tão vasto território até ao aparecimento das primeiras populações neolíticas.3

Desde o Paleolítico Inferior que as primeiras manifestações humanas apareceram extremamente diversificadas na China. Contudo, as descobertas actuais atestam a existência duma antiga rede humana, muito mais densa naquele território do que a escassez de vestígios fazia até hoje supor.

Desde o final do Pleistoceno Médio e durante todo o Paleolítico Inferior (c. 500000 a 200000 anos aproximadamente), o Homo Erectus Pekinensis habitou nos arredores da actual capital da China, na bacia do Rio Amarelo. A sua utensilagem era semelhante à acheulense sendo as suas armas simples, mas aperfeiçoadas ou endurecidas pelo fogo. Considerado único na China durante muito tempo, este grupo de Hominídeos, cujos primeiros restos fósseis foram exumados nas grutas de Zougoudian nos anos 20, está hoje longe de ser assim considerado, pois foram já exploradas numerosas outras jazidas, quer no Norte, nomeadamente em Shaanxi, quer no Sul da China. Os achados multiplicaram-se a partir dos anos 60 e, actualmente, conhecem-se já vários testemunhos fósseis de antepassados do Homo Erectus Pekinensis.

Segundo alguns antropólogos, a humanidade paleochinesa instalada na bacia (sensu latum) do Rio Amarelo evoluiu lentamente do Paleolítico para o Neolítico, sob influência de povoações situadas na China do Sul, região que se tomara então quente e luminosa, e propícia à vida sob todas as formas, e muito em especial à prática da agricultura dita "espontânea". Terá sido ali que o dito "grupo mongolóide" terá adquirido as suas características específicas que hoje lhe conhecemos. Para outros, a neolitização da China ter-se-ia verificado no Norte, em Gehe-Dingun, derivada da cultura Emaokon dos finais do Paleolítico Superior.4

A verdade é que o Homo Sapiens do Paleolítico Superior chinês era já conhecido desde os anos 20 deste século, tendo sido os seus restos encontrados na Gruta Superior de Zougoudian. Mas posteriormente, nos anos 50, foram encontrados vestígios duma distribuição desta espécie por várias províncias chinesas. Estes homens, que parece terem evoluído mais ou menos linearmente no território chinês, desapareceram sem se ter ainda chegado a conclusões definitivas ao que teria sucedido até reaparecem sob a forma de homens modernos, com características regionais mongólicas e, já com uma cultura neolítica avançada, cerca de 3000-1000 a. C., deixando atrás de si um grande hiato arqueológico.

Não é possível, ainda, seguir-se na China a lenta evolução de uma economia de caça e colecta para uma economia de produção.

As aldeias neolíticas do Rio Amarelo e do vale do rio Wei surgiram como que de repente, deixando um hiato de alguns milénios entre estes grupos e os seus predecessores que usavam a pedra lascada.

O centro de dispersão do Neolítico chinês, segundo a Escola de Pequim, deve ter-se situado numa grande planície da China do Norte, comparável às terras férteis da Mesopotâmia e do Egipto antigos.

No entanto, para além dos conhecimentos que a Ciência nos legou, e que se mostram insuficientes para explicar a evolução biológica e cultural do homem chinês da pedra lascada para a pedra polida, perdurou na tradição chinesa a história lendária das suas primeiras Cidades-Estados bem como o próprio mito da criação do mundo e da humanidade.

Nos tempos da China arcaica, alguns milhares de anos antes da nossa Era, foi o culto da mãe-terra e da fecundidade que deram estabilidade à relação mãe/filhos, relação que assegurava a continuidade ao grupo, em detrimento das relações entre os parceiros, e também da relação pai/filhos, tão cara à futura ética confucionista.

A mulher era a mãe. O pai era incerto e desconhecido foi durante muito tempo o seu papel na criação.5 Daí, a mulher não receber, naqueles antigos tempos, o nome da sua própria família. A Senhora Chang e a Senhora Deng eram, por exemplo, as duas esposas do Senhor Liu que viveu antes do século VI a. C.6

Nesses remotos tempos surgiram, na China, numerosos contos nos quais a heroína é uma mulher. De facto era ela, a mãe, o símbolo da fertilidade e da continuidade da família, aquela que representava o mais importante papel nas correntes espirituais da China arcaica.

Tão forte parece ter sido o papel da mulher na antiga China, se China se pode chamar aos antigos Estados dispersos pelo vasto território posteriormente unificado, estados que, então, se digladiavam pela posse de bens e de terras que, mesmo depois de se ter transformado a sociedade chinesa numa sociedade de estrutura patriarcal por influência de Confúcio (século Vi a. C.), no século VII d. C. foi ainda celebrada e ficou na história uma imperatriz que dirigiu sabiamente um mundo de homens. Surgiram, ainda nessa altura, numerosos poemas de poetas célebres, como Li Bo, que exaltavam a mulher, ao tempo relegada a uma condição social de pura inferioridade.

A crescente influência do confucionismo acabou, porém, por vencer e colocar a mulher definitivamente na sombra e num lugar de absoluta subserviência aonde se manteve teoricamente até à implantação da República (1911), mas realmente até há bem poucas décadas.

Desvalorizadas, as raparigas passaram a não ser desejadas pelos pais. O infanticídio feminino passou a ser corrente7 e sendo os casamentos contratados pelas famílias, a mulher como objecto procriador passou a pertencer à família do marido sem grandes benefícios para a sua família de geração. Todas as normas das relações familiares faziam, na China, parte da ordem social sendo, por isso, rigidamente estruturadas.

De divindade, a mulher passou, em alguns séculos, à condição de verdadeira escrava.

Para além dos achados arqueológicos que fizeram perdurar essa apagada imagem da mulher na China arcaica, o mito legou-nos, também, a ideia do seu importante papel, como "mãe-criadora", razão, talvez, da preponderância feminina na sociedade de então.

É de notar, porém, que pelo facto de ser bastante moderna na China a noção de mito (conhecida por "descrição sobre os espíritos" na literatura local), a Mitologia chinesa não pode ser estudada com a mesma facilidade daquela que Gregos e Romanos nos legaram, pelo que todas as interpretações têm de ser feitas com a maior prudência.

A razão da grande dificuldade que hoje os próprios Chineses têm em tirar conclusões dos seus antigos mitos é principalmente o marcado desdém que os letrados de formação essencialmente confucionista manifestaram, sempre, pelas "descrições fantásticas", fazendo, por isso, com que essas histórias em que os homens se confundiam com deuses, opostas aos valores ortodoxos tradicionais, acabassem por chegar aos nossos dias desprovidas de conteúdo coerente e, por vezes, mesmo contraditório.

É certo que os contos da dinastia Tang (618-906), o teatro dos Yuan (1280-1368) e os romances dos Ming (1368-1644) contêm elementos lendários interessantes. Nesta altura, porém, já bastante tardia, as descrições tinham perdido já a frescura dos primeiros tempos, e os empolamentos literários terão, apenas, uma longínqua relação com as crenças antigas. Como diz a sabedoria chinesa:"A cor, a força e o aspecto de um rio não são os mesmos na sua nascente e na sua foz."8

Recentemente, vários autores têm feito tentativas para agrupar os mitos chineses em ciclos, a fim de estudar a sua estrutura e, assim, procurar tirar deles alguns dados sobre a mentalidade e a organização social da China arcaica. Esta é, contudo, uma tarefa difícil e arriscada porquanto no decurso de vários milénios muitas teriam sido as influências recebidas do exterior, perdendo o pensamento antigo grande parte da sua originalidade.

Dos velhos mitos chineses que chegaram até nós, parece-nos, porém, particularmente interessante o de Nu Wa, jovem divindade que, depois de burilado o Mundo pelo transcendente Pan Gu, se divertiu a "criar à sua semelhança" pequenas figurinhas de barro, que deram origem à humanidade.

Para os autores chineses contemporâneos, Nu Wa era uma deusa. Para alguns deles, irmã do próprio Pan Gu, criador do Universo.9 E contam: Era indiscritível o regojizo que sentia Nu Wa pela beleza da criação; do Céu maravilhoso onde brilhavam o Sol, a Lua e numerosas estrelas e da Terra com as suas montanhas, rios, flores e árvores pujantes, onde pássaros e outros animais se multiplicavam.

No entanto, parecia-lhe que havia algo que faltava nesta obra monumental. Havia necessidade de um novo ser à semelhança dos deuses, mais inteligente do que os outros animais, e capaz de se autobastar e governar "todas as criaturas que se encontravam debaixo do Céu".10

"A não ser assim — pensava Nu Wa-- o Mundo acabaria sendo como antes, deserto e solitário, não obstante as paisagens pudessem tornar-se mais pitorescas e aumentasse o número de seres vivos."

Depois de pensar no assunto, Nu Wa apanhou do chão um punhado de argila e modelou-a à sua imagem e semelhança, criando pequenas figuras que podiam manter-se de pé, caminhar e falar. Entusiasmada, Nu Wa criava numerosos homens e mulheres que "saltavam e gritavam em seu redor".

A deusa baptizou estas novas criaturas com o nome de "gente", palavra que se representa por um ideograma que reproduz a posição erecta e os "dois pés bem assentes no chão" (人).

Embora tivesse criado numerosos indivíduos, Nu Wa verificou que estes não chegavam para povoar toda a Terra e, para apressar a sua criação, pegou num pedaço de liana, atou as suas extremidades a uma grande pedra, amontoou argila sobre aquela e começou a agitá-la sem cessar. A argila que saltava convertia-se, como que por magia, em pequenas figuras que "gemiam ao nascer".

Assim se criaram "pessoas diferentes" e numerosas.

Para que se propagassem, Nu Wa "ensinou-lhes a contrair matrimónio" e a "organizarem-se em famílias".

Nu Wa tornou-se, assim, na criadora e mãe bondosa dos seres humanos, e foi ela quem interveio, mais tarde, quando o Deus do Fogo e o Deus da Água lutaram, desavindos, e uma das quatro colunas que serviam de suporte ao Céu foi derrubada. Com o "impacto", a Terra sofreu um grande abalo e as águas brotaram do seu centro, "invadindo os campos e as florestas" que, entretanto, se incendiavam com as chispas resultantes do atrito entre as pedras que rolavam.

O espectáculo era aterrador.

Nu Wa, que vivia no interior da Terra, comovida com tamanho cataclismo, restaurou então o Céu com pedras de cinco cores, criando, assim, o arco-íris e devolvendo aos homens a paz que haviam perdido. Em consequência do desequilíbrio sofrido pela Terra e pelo Céu, o eixo sobre o qual girava o Universo inclinou-se e surgiram as diferentes estações do ano, tomando-se os campos mais prósperos e pitorescos.

Por isso, as ger玢oes seguintes dos seres humanos sobreviventes do pavoroso Dilúvio manifestaram a sua gratidão à sua bondosa Mãe e prestaram-lhe culto. 11

Em torno de Nu Wa as opiniões divergem. Em certas descrições chinesas antigas, é confundida com Fu Xi, um dos três primeiros imperadores lendários-- os 3 Augustos--, muito embora se lhe atribua sempre o sexo feminino. Para outros autores, esta personagem é considerada irmã ou esposa deste lendário Rei.. Durante os Han (séculos III a. C.- III d. C.), Nu Wa foi representada com corpo de serpente e cabeça humana, enrolada no corpo de Fu Xi, a quem os Chineses atribuem a criação do primeiro Estado incipiente-- que iniciou a dinastia Xia.

Os predicados da Deusa-Mãe são, porém, mais vastos: atribui-se-lhe, igualmente, a invenção da flauta e a criação da água corrente dos rios.12

De acordo com a tradição chinesa, apoiada em descrições antigas destes mitos, teria sido com Fu Xi, cerca de 9000-6000 aproximadamente, que o Neolítico começou na China. Mas... onde?

Conta, mais a lenda do que a História chinesa, que tendo o Neolítico começado, na China, com o imperador Fu Xi, prosseguiu com o célebre Shen Nong, que ensinou aos homens a cultivar a terra, e findou com Huang Di, o Imperador Amarelo, altura em que teria aparecido a primeira Cidade-Estado organizada, aliás, aquilo a que os Chineses chamam a "sua civilização", uma das "quatro grandes civilizações antigas", a par das da Suméria, Egipto e Vale do Indo.

O Imperador Amarelo terá vivido há cerca de 5000 anos. Contudo, não havia, até há pouco tempo, dados arqueológicos que provassem a existência, em território chinês, de uma tal cultura contemporânea das que foram estudadas noutras grandes áreas da Terra. Os dados mais antigos, testemunhos da existência de cidades organizadas com a sua vida política, artística e religiosa, datavam, na China, apenas, do século XII a. C., o que corresponde a uma época bastante tardia.

No início dos anos 80, foram descobertos, a ocidente de Liaunim, próximo de Chifeng, na Mongólia Interior, vestígios de uma antiga cultura, que ficou conhecida por Cultura de Hongshan (Montanha Vermelha), nome da cordilheira onde foram exumados os primeiros testemunhos da mais recuada comunidade chinesa organizada em Estado até hoje conhecida. A datação pelo Carbono 14 atribuiu-lhes 5000-4500 anos. Ao que parece, pois, o lendário Imperador Amarelo e a dinastia Xia, de que apenas a tradição conservou a memória, não são, apenas, um mito, pois a Montanha Vermelha em Liaunim é extremamente rica em vestígios do que teria sido essa opulenta cultura. Encontraram-se ali, a par de objectos de cerâmica vermelha, com decoração a negro, numerosos instrumentos agrícolas em pedra lascada e polida, de grandes dimensões, e ainda ornamentos, também polidos, em pedras semipreciosas, possivelmente usados pela classe dirigente. Das peças recolhidas, são particularmente interessantes um arado e uma enxada de pedra, de enormes dimensões, o que parece apontar para a importância e para o elevado nível que havia atingido, já, a agricultura naquela região.

Recentemente, foram descobertos no mesmo local cemitérios e ruínas de um templo erigido em honra de uma deusa, que se admite estar relacionada com o culto da fertilidade, além de um dragão em jade polido, verde-negro, de cerca de 26 cm, de linhas extremamente harmoniosas. Esta representação do dragão, exumado na aldeia de Sanxingatala, na Mongólia Interior, é a mais antiga que se conhece na China, o que faz recuar a sua origem emblemática cerca de 2 milénios em relação ao que, antes, se admitia.

De todos os achados, porém, os mais interessantes consistem em figurinhas de barro cozido, com dimensões compreendidas entre os 5 e os 8 cm, representando mulheres despidas, em estado adiantado de gravidez. flagrante o paralelismo entre estas figuras e as Vénus aurignacenses, tanto europeias como do Próximo Oriente, até hoje conhecidas.

Simplesmente, as únicas figuras deste tipo encontradas na China, datam de há 5000 anos, ao passo que a mais antiga figura europeia similar, talhada em xisto esverdeado, data de há cerca de 37-29 mil anos.

Para alguns autores, as Vénus europeias eram usadas como pendentes, desempenhando o papel de fetiches ou talismãs, em virtude do poder de exorcismo e de protecção que, ao sexo feminino, é atribuído por vários grupos do Mundo Mediterrânico e Africano actuais. Alguns autores relacionam estas Vénus europeias com uma prática de magia protectora, embora a sua relação com o culto da fecundidade seja actualmente a opinião bastante mais vulgarmente aceite.

É natural que, na China, as estatuetas semelhantes às das Vénus do Ocidente se destinassem ao culto da fecundidade, mas também pode acontecer que a sua função se relacionasse com práticas de magia protectora, com vista a minorar os acidentes de parto ou, eventualmente, contra a esterilidade, à semelhança do que ainda hoje se verifica, por exemplo, entre os chineses conservadores de Macau.

A apoiar esta hipótese, apareceu, no recinto do Santuário de Hongshan, recentemente posto a descoberto em Liaunim, a figura de uma deusa de grandes dimensões, também em barro cozido, bastante fragmentada, da qual a cabeça é a peça que se conservou em melhor estado. Apresenta olhos esféricos de jade polido e uma fisionomia que a aparenta com as conhecidas figuras de divindades das velhas civilizações ameríndias. Esta deusa, cuja cabeça mede 22,5 cm de altura, é a peça mais antiga, deste tipo, descoberta na China, pois atribuem-se-lhe, aproximadamente, 5500 anos. O grande altar do templo que lhe era dedicado, voltado para sul, era circular, com 2,5 m de diâmetro, rodeado por lages de pedra muito finas, sendo a sua superfície revestida por uma camada de pequenos seixos. Em redor do altar, descobriram-se mais de vinte fragmentos de corpos de diferentes figuras humanas de barro, dos quais existem dois relativamente completos, que são seguramente de mulheres -- as ditas "Vénus chinesas" a que, atrás, nos referimos. É de notar que as dimensões destas pequenas figuras oscilam entre 6,8 cm e 5 cm (dimensões semelhantes à da maioria das suas congéneres europeias). Ambas estão desnudadas e encontram-se em posição semierguida, com as pernas levemente flectidas, o abdómen saliente em estado adiantado de gravidez, as nádegas evidentes mas não exageradas, e o braço esquerdo curvado, com a mão apoiada sobre o ventre, em aparente trabalho de parto. É pena que não se tenham encontrado as cabeças. Contudo, são de notar particularidades somáticas, que ainda hoje são características das mulheres orientais: esbelteza, ancas e nádegas pouco volumosas e seios pequenos e cónicos.

Distinguem-se, do conjunto destas pequenas estatuetas, duas figuras de mulheres sentadas, que, segundo se deduz da altura de uma peça restaurada, teriam cerca de meio metro. Também de corpo nu, com as duas mãos cruzadas sobre o ventre, apresentam as pernas cruzadas e os pés apoiados nos joelhos. A cintura de uma delas está adornada com uma faixa. Estas peças são muito preciosas pois o seu estudo será um valioso contributo para o conhecimento da antiga cultura da "Montanha Vermelha", relativamente afastada da bacia do Rio Amarelo, tradicionalmente considerada o berço da civilização chinesa.

Por não se terem achado artefactos metálicos em Liaunim, alguns autores chineses admitiram que esta cultura se encontrava, ainda, numa fase neolítica tardia. No entanto, se esta cultura detinha já o dragão como símbolo, e possuía um culto organizado, deveria ter, já, uma estrutura social bastante desenvolvida. Reforçam esta hipótese os estudos feitos nos cemitérios de pedras empilhadas, da mesma data, situados próximo deste templo, em pontos elevados, dispersos pelas cotas altas da "Montanha Vermelha" e dos seus contrafortes. Observando as ruínas no seu conjunto, verifica-se que o templo da deusa fica no centro, estando os cemitérios distribuídos por mais de vinte elevações dos arredores. O templo e os cemitérios apresentam, aliás, uma visível correlação, sendo a sua distribuição relativamente complexa, o que parece reflectir a consciência social e religiosa dos então habitantes da área.

O templo da deusa da "Montanha Vermelha" foi, ao que se crê, construído em madeira e palha, sobre a qual se aplicou barro, apresentando ainda vestígios de decorações murais com motivos geométricos muito belos, pintados a vermelho e branco. O principal compartimento era uma sala central, distribuindo-se em redor dela várias salas laterais, com construções diversificadas e complexas. Não é difícil imaginar-se que se tratava de um local de culto, um palácio alto e esplendoroso, onde se alinhavam estátuas de divindades de várias dimensões.

Segundo fontes chinesas, os homens da "Cultura de Hongshan" moldaram estátuas de deuses, para consubstanciarem neles os seus desejos de boas colheitas e de fertilidade, pedindo, assim, por homeopatia, à Deusa-Mãe, à mãe-terra, a felicidade pela abundância. Acreditavam num grupo de divindades, das quais existia uma principal --uma deusa -- que dirigia os restantes à semelhança do que sucedia entre os homens. Daí, podermos ver que o conceito religioso dos habitantes de Hongshan já ultrapassara o estádio do culto da Natureza e do tóteme clássico,encontrando-se, talvez, numa fase relativamente avançada do Culto dos Antepassados, característico dos teísmos agrários.

Quem seria esta Deusa-Mãe? Nu Wa?

A título de remate, ocorre perguntar:

Que relação poderia haver entre as Vénus ocidentais e estas Vénus chinesas, já utilizadas, ao que parece, por uma cultura organizada em Estado que venerava uma Deusa-Mãe, única cabeça que se encontrou no altar do templo que se crê ter sido levantado em sua honra? A sociedade chinesa seria, nesta altura, matriarcal e/ou matrilinear?

É de notar que a deusa-mãe neolítica encontra-se na Europa Central por influência do Próximo Oriente, representada sob a forma de numerosas estatuetas em terra cozida.

Interessante é de notar, porém, a diferença entre as silhuetas das Vénus chinesas e as do Ocidente. No Ocidente, a ausência de cabeça bem definida, ao que parece intencional, as ancas largas e os seios volumosos contrapõem-se à esbelteza das Vénus da China, que lembram mais a de Galgenberg e a de Sireuil, consideradas, aliás, figuras de adolescente. Se as ancas, a esteatopigia e o volume dos seios eram realçados no Ocidente, na China é dado, apenas, particular relevo ao ventre. Assim, a inscrição no losango das figuras de Vénus ocidentais num dos modelos, que Leroi-Gourhan propôs, parece não ser aplicável às Vénus chinesas, afastando toda a relação simbólica desta forma geométrica, com a mulher, no Oriente. A ausência dos pés das Vénus em pedra no Ocidente também se verifica nas Vénus da "Montanha Vermelha", mas talvez devido a fractura, uma vez que foram achados fragmentos isolados de pés pertencentes às figuras de maiores dimensões.

Citando o exemplo da Vénus de Brassenpony, diferente das outras Vénus europeias porque foi a face que o seu autor esculpiu e não o corpo que lhe falta, e comparando-a com a cabeça da deusa de olhos de jade de Hongshan, podemos constatar que a boca daquela não está bem traçada; não tem olhos e as orelhas estão escondidas por uma espécie de véu... É uma mulher-mistério -- "não pode ver, não pode falar, nem ouvir". Em contraste, nota-se na Vénus-divindade chinesa uma boca grande, bem desenhada, olhos esféricos de jade polido, pedra considerada incorruptível e característica do Neolítico chinês, bem como orelhas e nariz bem evidentes.

É uma divindade que vê e está atenta.

Não se encontrou ainda o resto do corpo desta Vénus da China, nem as cabeças das pequenas estátuas disseminadas em redor do seu altar. Surpreende, aliás, que todas as pequenas figuras exumadas se apresentem sem cabeça e sem membros completos. Resultado de algum antigo ritual? Simples acaso?

A posição das Vénus chinesas é também de assinalar. Posição de parto? As pernas flectidas conferem-lhe o movimento que falta à maioria das Vénus ocidentais. Estas são, de facto, figuras imóveis, com a excepção da Vénus "dançarina" de Galgenberg e da Vénus de Algarim.

Observando-se as figuras de barro de Hongshan, em Liaunim -- mulheres grávidas em posição de parto ao que supomos —, poderemos aparentá-las, talvez, quanto à sua função, aos amuletos egípcios protectores do nascimento e do recém-nascido, descritos por Jeanne Bulté em 1991, principalmente com um que hoje se pode ver no Museu Real da Escócia.13

Moldados em faiança egípcia, estes talismãs apresentam várias formas, mas entre eles são muito frequentes representações do Deus Bé, relacionado com a maternidade, e também representações de mulheres nuas e grávidas. Apareceram, ainda, no Egipto, muitas cabeças femininas decapitadas. Decapitadas apareceram também as pequenas Vénus da Montanha Vermelha mas... o que se encontrou foram os corpos ao contrário do que sucedeu no Egipto.

Rituais semelhantes? A cabeça da divindade de olhos de jade corresponderá à do Deus Bé dos egípcios,14 cujas formas esculpidas parece datarem dos séculos IX-XIII a. C.? Ou será a estátua da Deusa-Mãe Nu Wa?

Aguardemos a descoberta de mais vestígios arqueológicos em Liaunim e o estudo em curso dos que já foram exumados, para que seja possível tirar conclusões mais consistentes.

Se considerarmos que o Templo do Céu, o Templo dos Antepassados, e as Treze Tumbas dos Ming, de Pequim, são obras-primas da nação chinesa, o altar, o templo da "Deusa de olhos de jade" e o conjunto de cemitérios de pedras acumuladas de Hongshan poderão acrescentar-se-lhes em importância, na medida em que constituem o mais belo vestígio da madrugada da sua Civilização. E mais ainda: porque essa madrugada é uma exaltação à Mulher, à criadora de todos os homens, à Mãe-terra fecunda e boa, que todos alimenta e finalmente recolhe no seu seio, renovando, em cada Primavera, o ciclo da vida, da vida que Pan Gu criou a partir do caos quando, para todos os seres, fez, pela primeira vez, brilhar o Sol.

Revisão de texto por Júlio Nogueira.

BIBLIOGRAFIA

Aux Origines d'Homo Sapiens, direcção de Jean-Jacques Hublin e Anne-Marie Tillier, Paris, PUF, 1991.

BULTÉ, Jeanne, Talismans Égyptiens d'Heureuse Maternité, Paris, C. N. R. S., 1991.

CASSIRER, Ernst, Antropologia Filosófica, São Paulo, Mestre Jon, 1972.

CHEN, T., YUAN, S., GAO, S. Huy, "Uranium Series Dating of Fossil Bones from Hexian and Chaoxian Fossil Human", in Acta Anthropological Sinica, 1987, vol. 6, pp. 249-54.

"China em Construção", Pequim, (7) Dez. 1986, pp. 33-40.

CHU Binjie, Relatos Mitologicos de la Antigua China, 2.a ed., Pequim, Fênix, 1989.

ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique, Paris, Arthaud, 1979 (Les Grands Civilizations).

FERREIRA, O. da Veiga, LEITÃO, Manuel, Portugal Pré-histórico, 2.a ed., Lisboa, Europa-América.

GOURAN, Lerhoi, Pré-histoire, Paris, PUF, 1981.

JIA Lianpo, Early Man in China, 2.a ed., Beijing, Foreign Languages Press, 1989.

LÉVI-STRAUSS, Claude, Anthropologie Structurale, Paris, Plon, 1974, 2 vol.

MATHIEU, Rémi, Anthologie des Mythes et Légendes de la Chine Ancienne, Paris, Gallimard, 1989.

PELLIOT, P., Jades Archaїques de la Collection C. T. Loo, Paris, 1921.

"Revista de Arqueologia Chinesa", (8) 1981, pp. 25-30.

WANG Binghua, Ritos da Fertilidade: Imagens Gravadas sobre Rochas Descobertas no Xinjiang, "China Hoje", Pequim, 12(6) 1991.

WERSCHUUR-BASSE, Denyse, Paroles des Femmes Chinoises, Paris, L'Harmathan, 1993.

WILLETS, William, L'Art de la Chine, Paris, La Bibliothèque des Arts, 1965.

NOTAS

1 A escultura do jade é, sem dúvida, o traço mais marcante do Neolítico chinês que, aliás, o ultrapassou, vencendo os milénios seguintes e merecendo as atenções dos artistas das várias dinastias históricas do Grande Império do Meio.

2 Em Liaunim foram, também, exumados restos fósseis de Homo Erectus com cerca de 290000 anos, seguidos de grande hiato arqueológico.

3 ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique.

4 JIA Lianpo, Early Man in China.

5 Nos anos 80 foram encontrados, em Xinjiang, figuras humanas gravadas numa elevada parede rochosa onde o acto sexual e os órgãos genitais masculinos estão reproduzidos com grande destaque, o que parece apontar para o valor que era já, então, dado ao papel do pai na geração dos filhos. Admite-se que estas gravuras e as reproduções fálicas exumadas em terrenos próximos datem de cerca de 1500 anos a. C. WANG Binghua, Ritos da Fertilidade.

6 WERSCHUUR-BASSE, Denyse, Paroles des Femmes Chinoises.

7 Ainda até meados do século xx se registou de forma significativa esta prática na China.

8 MATHIEU, Rémi, Anthologie des Mythes et Légendes de la Chine Ancienne.

9 CHU Binjie, Relatos Mitologicos de la Antigua China.

10 Nome antigo dado ao Imperador chinês.

11 CHU Binjie, ob. cit.

12 MATHIEU, Rémi, ob. cit.

13 Por insuficiência de restos fósseis, não foi possível calcular, com relativo rigor, a capacidade craniana do Homem de Dali.

14 BULTÉ, Jeanne, Talismans Égyptiens d'Heureuse Maternité.

* Doutorada pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, professora no Departamento de Antropologia do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, e membro de várias instituições internacionais, v. g. a "International Association of Anthropology".

desde a p. 119
até a p.