Imagem

O ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES EM MACAU E O INTERCÂMBIO DAS CULTURAS CHINESA E OCIDENTAL

Huang Hongzhao *

No princípio do século XVI, os portugueses navegaram para o Extremo Oriente e chegaram à China, dando início ao intercâmbio das culturas chinesa e ocidental.

Macau foi aberto ao comércio com o exterior em 1535 e os portugueses começaram a estabelecer-se a partir de 1553. Durante séculos Macau foi uma importante base onde se encontraram as culturas oriental e ocidental. A cultura ocidental, que foi introduzida na China por esta via, tocou os seguintes pontos:

I. A Introdução do Cristianismo;

II. Ciência e Tecnologia Ocidentais;

III. Artes e Culturas Ocidentais.

I. A INTRODUÇÃO DO CRISTIANISMO

1. Primórdios da Introdução do Catolicismo na China

Os missionários ocidentais foram os pioneiros na introdução da civilização ocidental na China. A primeira coisa a ser introduzida por eles foi o Cristianismo. Por duas vezes tentaram fazê-lo. A primeira tentativa foi através do Médio Oriente, nomeadamente pela Síria, na época de Li Shimin, segundo imperador da dinastia Tang. Nessa altura o Cristianismo era conhecido como a religião Da Qin Jing Jiao (大秦景教). Hoje ainda existe na cidade de Xian, a capital chinesa dos Tang, um monumento que rege a doutrina da religião Da Qin Jing Jiao. Uma outra prova foram os livros, contendo doutrina cristã, traduzidos pelos crentes daquele tempo e achados ainda recentemente numa das grutas de Dunhuang. Na época do imperador Wuzong da dinastia Tang (841-846), a religião foi proibida. A segunda tentativa de entrada do Cristianismo na China foi durante a dinastia Yuan. Na altura chegaram à China vários missionários como Fr. João de Monte Corvino, André e Odorico. A religião chegou a um grau bastante elevado de aceitação por parte das pessoas. Até a rainha, as princesas, os príncipes e os generais se converteram ao Cristianismo. Mas com o fim da dinastia, a religião acabou por desaparecer. Embora tentasse por duas vezes introduzir-se no Império do Meio, o Cristianismo não conseguiu implantar-se. Estes missionários dedicavam-se principalmente às actividades religiosas e não praticavam actividades político-culturais.

No princípio do século xv na Europa deu-se a Reforma Luterana e o Cristianismo dividiu-se em Catolicismo e Protestantismo. A introdução do Catolicismo na China começou no princípio do século XVI e o Protestantismo só entrou na China no século XIX. Macau desempenhou, durante trezentos anos, antes da Guerra do Ópio, um grande papel como agente para trocas comerciais entre o mundo ocidental e a China e como base para a introdução destas duas religiões em terras chinesas.

Depois dos navegadores portugueses terem chegado ao Extremo Oriente, D. João III fez uma petição em 1540 ao Papa Paulo III, para que enviasse missionários à China. Em 1541, o Papa mandou o missionário Francisco Xavier para o Extremo Oriente. Em Outubro de 1553 Francisco Xavier chegou à ilha de Sanchoão, no distrito de Taishan, na província de Cantão. Mas antes mesmo de iniciar a sua actividade religiosa em terras chinesas, ficou gravemente doente e morreu pouco tempo depois.1

Depois da fixação dos portugueses em Macau, e por volta dos anos 1553-1554, os primeiros missionários começaram a sua actividade religiosa no Território.2 Em 1576, o Papa mandou fundar em Macau a Sé Episcopal, para facilitar o alargamento do Catolicismo pelas terras chinesas, pelo Japão e por outros países vizinhos.3 o responsável pelo episcopado foi um português e Macau tornou-se, assim, o centro da religião católica no Extremo Oriente.

Muitos dos missionários que exerciam as suas actividades religiosas na China eram de opinião que a expansão religiosa deveria ser feita através da força. Na sua carta ao Rei de Espanha, datada de 18 de Junho de 1583, o então Bispo de Manila escreveu:

"V. Majestade é Rei de Espanha e de Portugal e também monarca de toda a Índia. Tomo o atrevimento de propor que V. Majestade mande tropas para a China. Essas tropas devem ser poderosas, invulneráveis perante as da China, de forma a gozar de plena liberdade de entrada e de se movimentar livremente nesse país. Com esta força dissuadora poder-se-á garantir a segurança da Igreja e a liberdade das actividades religiosas. Assim, nem o Imperador da China nem os prefeitos locais atrever-se-ão a criar mais dificuldades à expansão da nossa religião. Se o Imperador da China for tão teimoso e continuar a impedir ou a proibir os nossos trabalhos, seremos capazes de lhe tirar à força o poder administrativo. Rogo a V. Majestade que deixe para trás os assuntos de rotina e se dedique totalmente a esta missão grandiosa, porque nem Júlio César, nem Alexandre, o Grande, encontraram melhor oportunidade para obter mais glória."4

Depois de anexar Portugal em 1580, o Rei de Espanha tornou-se também monarca de Portugal. Mas mesmo assim ele estava longe de possuir força suficiente para enfrentar a China. Estas palavras reflectiam, porém, o desejo da maioria dos missionários com actividade em terras chinesas. Outro exemplo, desta ansiedade, foram as palavras do conhecido missionário Mateus Ricci:

"Nós, membros da Companhia de Jesus, somos valentes combatentes de Jesus Cristo e combatemos por Ele, contra esta idólatra China."5

Com a finalidade de dominar espiritualmente a China e torná-la num país católico, Mateus Ricci e os outros missionários elaboraram uma estratégia de alargamento religioso na China.

Para facilitar as actividades religiosas, Mateus Ricci e os seus colegas decidiram aprender os hábitos e a maneira de ser dos chineses. Em 1582 Mateus Ricci foi de Macau a Zhaoqing com a intenção de pedir uma audiência ao governador das províncias de Cantão e de Guangxi e ofereceu-lhe como prenda um relógio despertador, com a forma de um prisma triangular, e outras coisas mais de estilo ocidental aproveitando, em troca, para lhe pedir autorização para se estabelecer em Zhaoqing e praticar actividades religiosas. Mateus Ricci e os seus colegas mostraram a intenção de se tornarem cidadãos chineses, renunciando mesmo à sua própria pátria. Cortaram o cabelo e a barba, vestiram túnicas iguais às que os monges chineses usavam e construíram em cima de uma colina uma igreja chamada Xian Hua Si (仙花寺, Templo da Flor Divina). Mais tarde aperceberam-se que os seguidores do Confucionismo gozavam de um estatuto social mais elevado do que os monges, então passaram a vestir-se como os intelectuais confucionistas.

Pouco a pouco, Mateus Ricci estendeu até mais longe a esfera das suas actividades. Em 1589 chegou a Shaozhou (韶州) e a Nanxiong (南雄), na província de Cantão, e mais tarde foi à cidade de Nanchang (南昌) na província de Jiangxi e, finalmente, às cidades de Nanquim e Suzhou. Resolveu então ir a Pequim. O seu plano obteve logo um grande apoio por parte dos portugueses de Macau. Arranjaram-lhe dinheiro e presentes para oferecer e mandaram a Nanquim um missionário suíço, chamado Guo Juqian (郭居謙), levar tudo o que tinham arranjado. Em 1600, Mateus Ricci e outro missionário espanhol, chamado Diego de Pantoja, saíram de Nanquim, tendo chegado a Pequim em1601. Com a ajuda de um eunuco, Mateus Ricci foi recebido pelo imperador Wanli, da dinastia Ming. Mateus Ricci ofereceu ao Imperador os seguintes presentes: retratos de Deus e de Maria, uma Bíblia Sagrada, um mapa-múndi, um cravo e doze relógios despertadores. O Imperador concedeu a Mateu Ricci um posto oficial e direito a residência em Pequim.

Respeitando o Confucionismo e simpatizando com os intelectuais, Mateus Ricci fez-se logo amigo de muitos altos funcionários e de intelectuais, entre os quais o conhecido Xu Guangqi (徐光啟). O facto destes homens importantes aderirem ao Cristianismo teve grande impacto na classe dos altos funcionários.

As formas de propaganda da religião católica eram das mais variadas. Uma dessas formas era feita através de artistas tradicionais que contavam histórias da Bíblia Sagrada ao grande público, sobretudo às pessoas de classe social mais baixa. O próprio Mateus Ricci, que foi apelidado pela classe dos intelectuais como um excepcional confúcionista, fez diversos tipos de trabalhos com essa finalidade. Ele escreveu um livro intitulado Tian Zhu Shi Yi (天主實義, Essência do Cristianismo), onde explicava as obras do Cristianismo através das doutrinas confucionistas. Neste livro é, por exemplo, dito: "O nosso Senhor é o Deus dos vossos Livros Antigos." Conseguiu traduzir com o mesmo significado palavras diferentes e deu à palavra Piedade uma interpretação nova: Piedade quer dizer amar a Deus e ao povo. Comparou também máximas do Confucionismo com as do Cristianismo. Em resumo, manteve intacta a forma da antiga cultura chinesa, mas deu-lhe um novo núcleo espiritual.6 A sua propaganda foi, portanto, muito fruífera. Para respeitar o Confucionismo e agradar aos intelectuais, ele foi flexível em relação à exclusividade de culto no Cristianismo e permitiu que os crentes chineses participassem nas cerimónias religiosas tradicionais, como comemorar o Céu, o culto aos antepassados, etc. Mateus Ricci e os seus colegas utilizaram também os seus conhecimentos de ciência e de tecnologia, aprendidos no Ocidente, para ganhar mais confiança e simpatia por parte dos altos funcionários e dos intelectuais chineses, de forma a promover as actividades religiosas. Admirados pelo seu saber científico e tecnológico e pela sua maneira de ser, e também emocionados, pelo seu respeito para com o Confucionismo, muitos intelectuais confucionistas tornaram-se católicos e ajudaram Mateus Ricci a desenvolver o alargamento do Cristianismo na China. Em consequência disto, durante os últimos cem anos da dinastia Ming, as actividades dos missionários que tinham Macau como apoio conseguiram um progressso notável.

Mateus Ricci era chefe religioso da parte chinesa no Episcopado de Macau e tinha muito poder na sociedade católica. Houve, no entanto, outros missionários que tiveram também muito sucesso na introdução do Cristianismo na China, como por exemplo: Guo Jujing (郭居靜), Su Ruohan (蘇若漢), Luo Ruwang(羅如望), Diego de Pantoja, Sabatino de Ursis, Nicolau Longobardi, Wang Bansu (王半素), Xie Wulu (谢務錄), Manuel Dias e Johann Adam Schall Von Bell.

No início da dinastia Qing um oficial chamado Yang Guangxian apresentou ao Imperador uma proposta com o título "Matar os Religiosos Estrangeiros". Informava ele na proposta que havia, naquela altura, trinta igrejas nas grandes cidades da China, e que havia mais de dez mil crentes católicos em Macau e mais de cento e cinquenta mil em todo o país.

2. Fracasso da Introdução do Cristianismo na China

A fim de introduzirem o Cristianismo na China, os missionários não só praticavam actividades científicas e culturais entre os intelectuais, como também se intrometiam activamente na vida política dos altos funcionários. Em 1636 Johann Adam Schall Von Bell ajudou a dinastia Ming a montar uma fábrica de canhões ao lado do palácio imperial, orientando a fundição de dezenas de canhões. O próprio imperador Chongzhen, o último da dinastia Ming, escreveu numa placa, com o objectivo de louvar os seus méritos: "Ciência Celestial, muito apreciada pelo Imperador." Este missionário também tomou parte na supressão da revolta dos camponeses liderada por Li Zicheng (李自成), e para tal foi ajudado pelas armas de fogo. Após a fundação da dinastia Qing, Joham Adam Schall Von Bell passou a servir o Imperador da nova dinastia e foi intitulado pelo imperador Shunzhi (順治), o terceiro da dinastia Qing, como o Grande Mágico Misterioso. O facto dos missionários se intrometerem nas lutas políticas e de interferirem na tradicional maneira de viver da China provocou reacções e mais tarde a proibição do Cristianismo.

Mesmo no início das actividades dos missionários na China, embora houvesse quem lhes fosse favorável, houve logo dentro da classe dominante um grupo discordante em relação ao Cristianismo.

Os que eram a favor, liderados por Xu Guangqi (徐光啟) e Li Zhizao (李之藻), afirmaram que o Cristianismo e o Confucionismo eram a mesma coisa, porque as duas doutrinas eram obras de Santos e correspondiam à verdade. Ambas ajudavam no aperfeiçoamento espiritual e só serviam Deus.7 Eles advogavam, por conseguinte, a introdução do Cristianismo na China. Os que eram contra, liderados por Shen Que (沉榷), Yan Wenhui (晏文輝), Yu Fannie (余礬孽) e Xu Ruke (徐如珂), garantiam que o Cristianismo continha no fundo um único objectivo, invadir a China, e defendiam, por isso, a sua proibição. Influenciado pelo grupo contrário ao Cristianismo, o imperador Wanli da dinastia Ming, em 1616, decretou a proibição do Cristianismo, ordenando o fecho da Igreja de Nanquim e a expulsão da China de todos os missionários estrangeiros. A expansão do Cristianismo na China sofreu, deste modo, a sua primeira derrota.

Os missionários não se deram por vencidos e muitos deles, disfarçados e com os nomes mudados, entraram de novo na China, com o objectivo de praticarem, na clandestinidade, actividades religiosas. Mais tarde a proibição tornou-se menos rigorosa e o Cristianismo reapareceu de novo dentro da China. Nos primeiros anos da dinastia Qing, os imperadores adoptaram uma atitude tolerante para com o Cristianismo. O imperador Kangxi (康熙) colocou certos missionários como conselheiros. Depois, porém, surgiu a Questão dos Ritos e o Cristianismo conheceu novo fracasso na China.

Mateus Ricci, compreendendo que o rigor do Cânone dificultava a união entre os confucionistas e as actividades religiosas, permitiu aos crentes chineses a sua participação em cerimónias religiosas tradicionais que têm que ver com a comemoração do Céu, com o culto aos antepassados e com Confúcio. Esta atitude foi muito importante para o sucesso do Cristianismo. Mas a sua tolerância e concessão ao Confucionismo foi muito criticada dentro da Companhia de Jesus e, após a sua morte, os opositores aumentaram as suas vozes e mantiveram uma divergência com os que apoiavam as ideias de Mateus Ricci, que se arrastou por quase cem anos. Entre 1669 e 1703 a contenda chegou ao auge e os seguidores de Mateus Ricci, cansados de serem criticados, pediram uma arbitragem ao imperador Kangxi, que respondeu explicitamente:

"Os chineses consagram os antepassados para expressar a gratidão pela criação e cuidados dos pais. Mesmo os mais pequenos animais, depois de perderem a mãe, uivam tristemente durante dias. Como o homem é uma criatura com alma, é muito natural realizar cerimónias para manifestarem os seus sentimentos. Confúcio foi um grande Santo. Ele descobriu a verdade, definiu relações morais, tanto entre o Imperador e o povo, como entre os pais e os filhos. Ele é o educador para todas as gerações vindouras. Foi ele que fez o povo respeitar o Imperador e os mais velhos. Ele merece a consagração e a homenagem. Os chineses respeitam o Céu porque para eles o Céu é um bem espiritual. Os ocidentais são contra Confúcio porque são analfabetos e não compreendem nada da cultura chinesa. Se a crítica compreendesse algo da cultura chinesa, seria de certeza mais tolerante. Não sabendo nada sobre a cultura chinesa, e por isso analfabetos, como podem ter o atrevimento de comentar a moral da China? Eles proibiram a devoção ao Céu porque acham esta atitude muito material. Isto demonstra que eles não compreendem nada. Por exemplo: o povo chama ao Imperador, Sua Majestade, que em chinês tem a interpretação de em cima da escada. Mas o que está em cima desta escada é uma cadeira, obra de um carpinteiro. Por que se respeita a cadeira? Porque se trata de um símbolo. Nós consagramos o Céu porque pensamos que é um símbolo de Deus e é por isso que o povo trata o Imperador por Sua Majestade ou por Dez Mil Anos. Os tratamentos podem ser diferenciados, mas o respeito é o mesmo."8

Quando o Papa tomou conhecimento da discórdia e do julgamento feito pelo imperador Kangxi, ele decidiu interferir directamente neste assunto que só dizia respeito à China. A 20 de Novembro de 1704 decretou uma proibição vedando aos crentes chineses o respeito para com os cultos tradicionais e a participação em cerimónias religiosas como as do Céu, do culto dos antepassados e as de Confúcio. Em 4 de Dezembro de 1705, o enviado do Papa trouxe a proibição a Pequim e pediu ao imperador Kangxi que obrigasse os crentes chineses a obedecerem esta determinação. Claro que Kangxi recusou de imediato o pedido de Macau e decretou uma ordem imperial em Dezembro de 1706, estipulando que os missionários que respeitassem as leis da dinastia Qing poderiam ter autorização para exercerem as suas actividades religiosas; os que as não respeitassem, seriam expulsos da China.

Mas o Papa não se deu por vencido e repetiu a proibição em 1715. O seu enviado, Jia Le, chegou a Pequim a 25 de Novembro de 1729 e repetiu o pedido ao imperador Kangxi. Na audiência concedida ao enviado do Papa e aos 17 missionários que praticavam a actividade religiosa em Pequim, Kangxi reiterou a posição da China e escreveu o que se segue na proibição do Papa:

"A proibição é válida só para os homens insignificantes como os ocidentais, porque não estão em condições de tecer comentários sobre a moral da China. Pelos vistos nenhum ocidental compreende a cultura chinesa e, por isso, os comentários feitos por'eles são, na sua maioria, muito ridículos. Este documento está cheio de disparates e demonstra que a vossa religião não passa de uma heterodoxia, como o Budismo e o Tauismo. A fim de evitar mais discordâncias no futuro, os ocidentais não devem praticar mais actividades religiosas na China. Acho conveniente proibir a religião ocidental."9

O imperador Kangxi adoptou uma atitude muito dura relativamente à proibição do Papa e defendeu, deste modo, a dignidade de um país soberano. Com a proibição de Kangxi o Cristianismo perdeu o seu estatuto legislativo na China. O enviado do Papa foi mais tarde expulso da China. Isto foi só o começo de uma série de fracassos que o Cristianismo sofreu na tentativa de se expandir na China.

O sucessor do imperador Kangxi, o imperador Yongzheng, também manteve a proibição em relação ao Cristianismo. É exemplo disso a proposta que é feita ao Imperador em 1723 pelo prefeito das províncias de Zhejiang e Fuquiém, que diz:

"Os ocidentais construíram várias igrejas espalhadas pelas diversas províncias do país. É melhor concentrar os ocidentais de todas as províncias em Macau, excepto os que possam servir Vossa Majestade na capital. As igrejas devem ser expropriadas e os crentes chineses obrigados a deixarem aquela religião."10

Yongzheng aceitou a proposta e deste modo as actividades dos missionários foram limitadas apenas a Macau.

Na época do imperador Qianlong, a proibição tornou-se muito mais rigorosa. O Imperador emitiu várias ordens, estipulando que os missionários só podiam praticar actividades religiosas entre a comunidade ocidental de Macau e não podiam propagar o Cristianismo entre os chineses naturais de Macau.

Em 1744 o prefeito de Macau apresentou um relatório ao Governo da Província, dizendo o seguinte:

"Em Macau os chineses e os bárbaros (estrangeiros) vivem lado a lado e, por isso, alguns chineses que participavam ilegalmente na religião dos bárbaros fugiram para cá. É preciso adoptar medidas para acabar com isto, como por exemplo, estipular aos comerciantes chineses que só vendam as suas mercadorias fora do cerco dos bárbaros, que não entrem ilegalmente no cerco e que seja proibido aos chineses levarem a família para Macau. É melhor dar ordens aos chefes dos bairros residenciais para que localizem e obriguem os crentes chineses, escondidos em Macau, a entregarem-se e a voltarem à sua terra natal no prazo de um ano."11

Em resposta ao relatório o Governo da Província repetiu mais do que uma vez a ordem de proibir os chineses de participarem no culto do Cristianismo.

Em 1746, o prefeito de Macau, cujo nome era Zhang Ruli, descobriu que os portugueses tinham estabelecido ilegalmente uma igreja chinesa, dirigida pelos jesuítas chineses e destinada a atrair crentes chineses, e que a dita igreja tinha já muita influência nos distritos à volta do estuário do Rio das Pérolas. Muitos dos crentes vinham desses distritos para irem à igreja, onde no Natal e na Páscoa realizavam grandes cerimónias. O prefeito participou tudo isto ao Governo da Província que ordenou o encerramento imediato da igreja e ameaçou castigar severamente os que continuassem a influenciar os chineses a serem crentes.o12 O fecho daquela igreja foi mais uma derrota para a Companhia Jesuíta de Macau.

Em 1749 aconteceu um caso de homicídio em Macau. Foi o prefeito do distrito de Xiangshan quem tratou do caso; posteriormente, ele mandou elaborar os regulamentos de segurança pública de Macau e mandou-os esculpir numa placa de pedra. O seu Artigo n.o 12 estipulava o seguinte:

"É proibido estabelecer igrejas e seguir o Cristianismo em Macau. Os religiosos bárbaros de Macau, que são na maioria jesuítas, não podem influenciar os chineses a tomarem-se crentes,em detrimento do uso e da moral tradicionais. Os chefes dos bairros residenciais dos bárbaros têm que realizar buscas de três em três meses, para impedirem que os chineses se convertam em crentes. Se alguém fundar ilegalmente igrejas e atrair os chineses a participarem em actividades religiosas, tanto aquele bárbaro como os chineses e o chefe do bairro serão expulsos de Macau."

A proibição da dinastia Qing durou até à primeira Guerra do Ópio. Mas como a proibição foi umas vezes mais rigorosa e outras menos, os missionários em Macau nunca pararam as suas actividades clandestinas de propagar o Cristianismo e atrair novos crentes. Segundo os dados de 1810, existiam na altura 31 missionários europeus a praticar clandestinamente actividades religiosas em 16 províncias da China. Eles recrutaram mais de 255 mil crentes chineses. Em Junho de 1839 o número de crentes em todo o país ultrapassava já os 300 mil.13 Em Macau, em 1830, havia já aproximadamente 6.090 crentes e 6 padres, todos eles chineses.14

3. Introdução do Protestantismo na China

No início do século XIX os missionários protestantes chegaram também à China, tendo sido Robert Morrison o primeiro entre eles. Tinha sido enviado pela Igreja Anglicana de Londres, tendo chegado a Cantão a 7 de Setembro de 1807. A introdução da Igreja de Londres fez-se do seguinte modo: primeiro, Robert Morrison fixou residência e deu aulas de Inglês e de Matemática aos chineses; depois escreveu dicionários inglês-chinês e chinês-inglês e traduziu a Bíblia para chinês. A prática de actividades religiosas reservou-a para uma altura mais oportuna.15 Pouco tempo depois Robert Morrison descobriu que era impossível empreender actividades religiosas em Cantão e em 1808 mudou-se para Macau. Como Macau era, na altura, terra-base dos católicos, Robert Morrison não se atreveu a deixar transparecer em público o seu estatuto de sacerdote anglicano, de forma a não provocar problemas. Arranjou um emprego como intérprete na Companhia das Índias Orientais e, com o esforço de anos consecutivos, conseguiu traduzir todo o Novo Testamento para chinês. Em 1814, a obra foi publicada em Cantão. Mais tarde, ele e os seus colegas traduziram o Velho Testamento, que foi publicado em 1819. Robert Morrison deu, deste modo, uma contribuição histórica no dar a conhecer ao povo chinês toda a doutrina religiosa do Cristianismo.

Na mesma altura ele publicou também os seis volumes do seu Dicionário Chinês-Inglês. O primeiro foi publicado em 1817 e o último em 1823. O Dicionário tinha 4.595 páginas. Só a parte traduzida do conhecido Dicionário de Kangxi continha mais de 40 mil caracteres chineses. Foi, portanto, uma grande obra. O seu contributo para as trocas culturais sino-inglesas foi grande e, por isso, foi louvado e premiado pelo rei inglês Jorge IV.16

Em 1834 Robert Morrison foi nomeado vice-cônsul. Muito emocionado com a nomeação, jurou ser fiel ao Rei de Inglaterra através do seu novo posto. Mas o seu entusiasmo e dedicação à nova tarefa foram muito intensos, e em consequência disso, caiu doente e, passado menos de um mês após ser nomeado, morreu em Macau a 1 de Agosto. Em 1843 os ocidentais da Igreja Anglicana em Macau ergueram um monumento em honra dele, no qual foram gravadas as seguintes palavras:

"Alguns homens são imortais porque os seus méritos o são, e o nosso compatriota Robert Morrison é um deles. Tendo vindo para a China quando estava na força da vida, estudou aplicadamente e conseguiu entender a língua e cultura chinesas. Escreveu e publicou livros como o Dicionário Chinês-Inglês, e facilitou aos outros a aprendizagem da língua chinesa. Com o seu esforço e árduo trabalho conseguiu o respeito de todos os ingleses. É por isso que se ergue este monumento em honra dele."17

Depois de Robert Morrison, vieram para a China outros missionários anglicanos, entre os quais, Elijah Colema Bridaman, Samuel Wells Williams, Peter Parker, Karl Friedrich, August Gützalaff. As suas actividades relacionadas com as trocas culturais entre chineses e ingleses, foram as seguintes:

— Publicação do periódico mensal "China Repository", onde se advoga perante a opinião pública a agressão contra a China. A primeira edição foi publicada em Cantão, em Maio de 1832, e em seguida, o mensal passou a ser publicado em Macau. A sua última edição foi publicada em 1851. O mensal teve na altura muito valor para os comerciantes ingleses e americanos na China e influenciou, até certo ponto, a elaboração da política do Governo Inglês em relação à China. Durante os cerca de vinte anos de circulação, o mensal publicou muitos artigos sobre política, economia, cultura e hábitos da sociedade chinesa daquela época, o que constitui hoje referência preciosa não só para o estudo da história do intercâmbio cultural entre a China e o mundo ocidental como também para o estudo das relações internacionais.

— Estabeleceram escolas missionárias, que constituíram uma das principais actividades dos missionários. Em 1818 Robert Morrison estabeleceu em Malaca a Escola Anglo-Chinesa. Posteriormente outros missionários estabeleceram escolas em Cantão e em Macau. A 4 de Novembro de 1839 foi inaugurada em Macau a primeira escola ocidental, chamada Escola de Robert Morrison. Esta escola formou muitos homens talentosos, entre os quais, o conhecido reformista contemporâneo da China, Rong Hong, que estudou nela a partir de 1841 e durante 6 anos.

II. CIÊNCIA E TECNOLOGIA OCIDENTAIS

1. Introdução das Espingardas e dos Canhões Ocidentais

A pólvora foi inventada pelo povo chinês. Nos livros antigos das dinastias Sui e Tang (600-700) havia já referências à sua fabricação. Diz-se que foram os Tauistas que, durante o processo de misturar pílulas imortais com salitre, enxofre e carvão de lenha, descobriram que se podia fazer um pó altamente inflamável. Mais tarde alguns militares utilizaram pólvora para destruir fortalezas e liquidar o inimigo. Durante a dinastia Song do Sul (1127-1279) algumas tropas da China já estavam equipadas com vários tipos de armas de fogo. Durante a dinastia Ming, as armas de fogo foram bastante aperfeiçoadas, o que lhes deu um grande sucesso na utilização. Contemporaneamente a este facto, as armas de fogo fabricadas em Portugal foram introduzidas na China.

Os chineses chamavam naquele tempo a Portugal Frangue e, por sua vez, alcunharam a espingarda e o canhão feitos em Portugal como frangue chong, que quer dizer espingarda de Frangue.

Na altura em que os portugueses chegaram à China, em princípios do século XVI, foram introduzidos na zona litoral da província de Fuquiém algumas espingardas.

Chen Shouqi escreveu no seu livro Fujian Tong Zhi (História de Fuquiém) o seguinte:

"Em 1510, o prefeito do distrito de Xianyou na província de Fuquiém, chamado Wei Sheng, comandou as tropas que iam atacar bandidos armados. As suas tropas já estavam equipadas com mais de cem canhões de Frangue."

Outro exemplo aconteceu em 1519. Neste ano Chen Hao dirigiu uma rebelião. O prefeito Wang Shouren foi encarregado de reprimi-la. Este episódio é descrito pormenorizadamente por este último na sua autobiografia:

"Ao tomar conhecimento da rebelião, o meu amigo Lin Jiansu ordenou que se fabricassem algumas armas de fogo e mandou-mas, juntamente com a receita da pólvora e uma carta. Isto aconteceu no mês de Junho e fazia muito calor. Ele ordenou que um estafeta corresse dia e noite. Mas quando o estafeta chegou, eu já tinha aprisionado Chen Hao havia sete dias. Mesmo assim eu agradeci muito ao meu amigo."

A História diz-nos que os portugueses antes dos anos vinte do século XVI ainda não tinham chegado à província de Fuquiém. É, por isso, possível que os frangue chong mencionados e utilizados por Wei Sheng e Lin Jiansu tivessem sido introduzidos pelos comerciantes da província de Fuquiém, que faziam negócios no alto mar ou em terras ultramarinas.

Muitos outros dados históricos demonstram que as armas de fogo foram introduzidas também através da província de Cantão.

Segundo a História da Dinastia Ming, em 1523, alguns portugueses, chefiados por Pedro Zusli, invadiram a província de Cantão. As tropas locais repeliram de imediato os invasores e apanharam, como despojos, alguns canhões, a que os militares chamaram frangue chong. Foi provavelmente nessa altura que se introduziram os frangue chong, na China. Um oficial chamado Wang Hong levou-os para a capital e ofereceu-os ao Imperador. Em 1530 Wang Hong foi promovido a Ministro da Defesa, e então propôs usá-los no reforço da fronteira do Norte, dizendo:

"Temos multas fortalezas e torres de sentinela ao longo da fronteira. Mas as zonas fronteiriças são frequentemente devastadas pelos invasores, que atacam essas fortalezas e torres, pois encontram-nas mal defendidas sem armas de fogo. Se fossem defendidas com armas o inimigo não se aproximava. Os frangue chong, que eu of reci, serão muito úteis na defesa à distância. Temos, presentemente, dois tipos de frangue chong. O mais pequeno pesa apenas dez quilos e tem um alcance de seiscentos metros. São armas a serem utilizadas em cima das torres. Poderemos montar uma em cada torre dé sentinela e termos também em cada torre uma guarnição de três pessoas. O maior pesa mais de trinta e cinco quilos e o seu alcance de tiro é de três km. Podemos usá-los em fortalezas, equipando cada uma com três e, ao mesmo tempo, colocarmos em cada uma delas uma guarnição de dez pessoas. Construiremos uma torre em cada dois quilómetros e meio e uma fortaleza de cinco em cinco km. Com este sistema de segurança o inimigo não terá oportunidade de penetrar, e, deste modo, podemos garantir a defesa das fronteiras, sem ter necessidade do combate corpo a corpo."

Segundo a História da Dinastia Ming, foi assim que as armas de fogo começaram a ser usadas na China.18

Foi confirmado noutro livro o facto de Wang Hong ter sido promovido por ter oferecido frangue chong ao Imperador. Nesse livro dizia-se que ele tinha proposto que as armas fossem usadas na fronteira, sobretudo nos fortes perto das fendas da Grande Muralha. A sua proposta foi aceite e a segurança da fronteira norte foi durante largos anos garantida com este sistema.

Mas a proposta de Wan Hong foi em parte alterada e, em consequência disto, mal escrita. Um oficial do Ministério da Defesa troçou disso, o que ofendeu Wang Hong. Como castigo, esse oficial foi exonerado e transferido para um distrito como prefeito. Um seu amigo, vendo isto, um dia disse-lhe:

"Expulsaram-te para aqui, apenas, por um Frangue."19

Chega-se à conclusão que a História da Dinastia Ming não está muito correcta, quando se diz que os frangue chong foram introduzidos na China pela primeira vez em 1523 e após o conflito armado sino-português.

Confirmou-se mais tarde que a verdade histórica é a seguinte: quando os portugueses chegaram a Cantão pela primeira vez em 1517, já alguns chineses estavam a aprender a fabricar frangue chong. O então prefeito de Cantão e responsável pela defesa da costa marítima, Gu Yingxian escreveu, nas suas memórias, o que ele próprio tinha visto:

"Os portugueses chegaram a Cantão e com as suas armas de fogo deram alguns tiros. Mais tarde e durante os ataques contra os piratas, um intérprete ofereceu um chong com a receita da pólvora, a qual foi mais tarde experimentada num campo de tiro.

O alcance dos frangue chong era de cem metros e foi esta a arma de fogo de navios e de defesa de fortalezas. Se a utilizassem, era desnecessário o combate corpo a corpo."20

Assim, se verifica que a introdução desta arma de fogo foi seis anos mais cedo do que vem registado na História da Dinastia Ming.

Além de Wang Hong e Gu Yingxian, He Ru também contribuiu para a introdução e uso dos frangue chong na China.

Existe uma obra que descreve, pormenorizadamente, onde foi que ele adquiriu os frangue chong e pólvora:

"He Ru foi chefe da polícia do distrito de Dongguan da província de Cantão. Ao fazer certo dia uma inspecção a um navio português, encontrou dois chineses, Yang San e Dai Ming. Os dois tinham vivido em Portugal durante vários anos e sabiam como se faziam navios, canhões e pólvora. He Ru, com a autorização de Wang Hong, enviou um polícia ao navio com o objectivo de falar com os dois chineses. O polícia disfarçou--se de vendedor de aguardente e de arroz, e prometeu-lhes, em segredo, se lhe contassem a história deles, que os ajudaria a regressar à China. Numa noite He Ru remou num pequeno barco e aproximou-se da costa, às escondidas, conseguindo, assim, levar os dois chineses até ao Continente. Mais tarde Wang Hong ordenou aos dois chineses que lhe fizessem vários canhões.21 Quando os portugueses invadiram a China, em 1523, as tropas comandadas por Wang Hong derrotaram as tropas portuguesas com a ajuda dos canhões, já fabricados na China, e ainda conseguiram apanhar mais vinte."

He Ru era natural do distrito de Ningdu, da província de Jiangxi. Ele foi chefe de polícia entre 1521 e1522 e foi no seu mandato que se introduziram os frangue chong. Esta contribuição foi tão importante que até veio mencionada tanto na História como nos Registos da Dinastia Ming. Os dois livros são unânimes em afirmar:

"As armas de fogo foram introduzidas na China por He Ru.22 Em reconhecimento do seu acto foi promovido e nomeado inspector da fábrica de canhões instalada no distrito de Shangyuan, perto da cidade de Nanquim."

Depois da introdução das armas de fogo na China, estas começaram a ser fabricadas em grandes quantidades no distrito de Dongguan. Mais tarde, também se começou a fabricar na cidade de Nanquim. Noutro livro, intitulado Xu Xian Tong Kao (Continuação do Estudo de Documentos Históricos), vinha o seguinte:

"Em 1524 foi instalada uma fábrica de armas de fogo na cidade de Nanquim e o prefeito da Cidade, Xu Pengju, apresentou um pedido ao Imperador, no sentido de transferir técnicos de Cantão para Nanquim. O Ministério da Defesa deu parecer positivo a esse respeito e o Imperador aceitou o pedido."23

Assim, os técnicos que tinham fabricado com sucesso as armas de fogo em Cantão foram transferidos para Nanquim, entre os quais, o próprio He Ru. Este distrito é actualmente o distrito de Jiangning, em Nanquim.

O estabelecimento dos portugueses em Macau impulsionou ainda mais o uso da espingarda e dos canhões na China; posteriormente, Mateus Ricci e os seus colegas informaram os crentes do poder destrutivo do uso de canhões e espingardas em matéria de defesa. Li Zhizhao escreveu a propósito nas suas memórias:

"Perguntei várias vezes a Mateus Ricci sobre a defesa do seu país. Ele contou-me que o seu país não tinha tropas numerosas. Eles utilizavam canhões na defesa da capital e das principais cidades, montando vários canhões em pontos chaves. Cada canhão precisava de poucos artilheiros e de algumas centenas de soldados para a defesa da guarnição.24 O sistema de defesa das cidades ficava deste modo garantido."

Em 1618, Xu Guangqi foi nomeado comandante das tropas de reforço para resistir, através da parte nordeste, à invasão da tribo Nu Zhen. Esta tribo era formada por antecessores da dinastia Qing. Xu Guangqi discutiu com Li Zhi e Yang Yanjun e decidiram usar canhões para combater o inimigo.

Em Outubro de 1620, Xu Guangqi mandou Zhang Tao e Sun Xueshi a Macau comprar canhões e recrutar pessoas para a guarnição. Com a finalidade de presentear a dinastia Ming, os portugueses deram imediatamente o seu apoio. Eles conseguiram fundos e compraram quatro canhões e seleccionaram quatro artilheiros experientes para ajudar Xu Guangqi. Os canhões foram transportados para Cantão e de lá para a província de Jiangxi.25 Em 1621 Xu Guangqi decidiu melhorar a qualidade das suas tropas e enviou Zhang Tão e Sun Xueshi a Macau para comprar mais trinta canhões e recrutar mais de cem soldados portugueses para a guarnição. Por causa das objecções de Shen Que, o principal rival político de Xu Guangqi, a dinastia Ming não permitiu que os soldados portugueses entrassem no seu território. Xu Guangqi, porém, não desistiu. Depois de muita insistência, o Imperador finalmente consentiu e deixou entrar na Capital apenas sete soldados portugueses, levando com eles quatro canhões. Estes soldados trabalhavam como instrutores e ensinavam os soldados chineses a usarem os canhões. Infelizmente, houve, posteriormente, dois acidentes, em que dois dos canhões explodiram, matando e ferindo alguns instrutores portugueses e muitos soldados chineses.26 Por causa destes dois incidentes, a dinastia Ming decidiu deixar de usar os canhões e o próprio Xu Guanqi foi exonerado em 1625.

Um ano mais tarde Xu Guanqi foi ilibado e dirigiu de novo o plano para o uso dos canhões, pelo que obteve mais apoios dos portugueses de Macau. Estes ofereceram dez canhões e enviaram o oficial Gonçalves Teixeira, uma guarnição e vários técnicos, tendo transportado os canhões para Pequim. O imperador Chongzhen denominou os canhões Shen Wei Da Pao (canhão do Divino Poder) e quis recrutar mais 300 artilheiros portugueses. Aproveitando a oportunidade, os portugueses impuseram as seguintes condições:

a) Permitir aos portugueses que construíssem um muro à volta de Macau.

b) Retirar as tropas chinesas estacionadas em Macau.

c) Isentar de impostos as terras dos portugueses radicados em Macau.

Alguns missionários de Macau aproveitaram também o momento para entrarem na China e praticarem actividades religiosas. Tudo isto despertou de novo a suspeita do Imperador que se deixou convencer pelos oficiais contrários ao uso dos instrutores portugueses para cancelar o plano de fundir a artilharia chinesa com a ajuda dos portugueses. Em 1631, Gonçalves Teixeira e os seus soldados foram expulsos de Pequim e foram para Dengzhou (hoje distrito de Penglai na província de Shandong). O seu prefeito, Kong Yuanhua, que foi crente do Cristianismo, convidou os portugueses a treinarem a sua artilharia No ano seguinte Kong Youde comandou uma rebelião em grande escala, tendo as tropas rebeldes atacado e ocupado Dengzhou. Gonçalves Teixeira e os seus colegas portugueses foram mortos em combate. Pouco tempo depois a dinastia Ming foi derrubada, mas o uso de canhões continuou a desenvolver-se na China.

No Sul da China os príncipes da dinastia Ming utilizaram canhões para resistir ao avanço das tropas da dinastia Qing. Durante esta dinastia, a espingarda e os canhões fabricados pelos ocidentais tomou-se uso comum.

2. Introdução da Ciência e Tecnologia Ocidentais

Com a fundação da freguesia de Macau, muitos missionários ocidentais passaram por lá com o objectivo de entrarem na China e alargarem o Cristianismo até ao povo chinês. Alguns desses missionários tomaram-se, mais tarde, amigos de altos funcionários e de intelectuais chineses. Falando através de números, o conhecido missionário Mateus Ricci teve, entre os altos funcionários e intelectuais chineses, cento e trinta e sete amigos, alguns dos quais famosos na História da China, como por exemplo, o filósofo Li Zhi, o escritor Yuan Hongdao, os historiadores Jiao Hong e Shen Defu, os astrónomos Xu Guangqi, Li Zhizao, Sun Yuan e o médico Wang Kentang. Durante os convívios que organizavam, os missionários gabavam-se, com um certo propósito, das ciências ocidentais. Ao apresentarem aos intelectuais chineses as ciências e a tecnologia ocidentais, ajudaram a traduzir para chinês muitas obras. Estas obras contribuíram bastante para a introdução da ciência e tecnologia ocidentais na China e a influência foi marcante. O conteúdo destas obras abrangia a astronomia, a matemática, a geografia, a física, a medicina, etc.

2.1. Astronomia e matemática

A astronomia já tinha uma longa história na China. Durante a dinastia Yuan, o astrónomo Guo Shoujing publicou a obra Shou Shi Li (Calendário Astronómico). Nos princípios da dinastia Ming foi publicado outro calendário, o Da Tong Li. Os dois eram considerados muito bons, para aquele tempo. Mas os cálculos desses calendários astronómicos não estavam muito exactos.

Durante a dinastia Ming, muitos intelectuais sentiram necessidade de melhorar os calendários existentes. A introdução do calendário ocidental foi, de certa forma, o impulsionador desta reforma. Em 1629, o Imperador da dinastia Ming autorizou a criação do Xi Ju, Observatório Ocidental, para a elaboração do novo calendário e nomeou Xu Guangqi e Li Zhizao como responsáveis. Xu e Li tinham estudado com Mateus Ricci o calendário ocidental e, depois de serem nomeados, convidaram vários missionários ocidentais para trabalharem no Observatório.

Em 1645 outro novo calendário foi publicado e deram-lhe o título de Shi Xian Li. Ambos os calendários utilizavam cálculos científicos do calendário ocidental e continham notas explicativas, cálculos, ilustrações, provas, fórmulas e conclusões. Eram relativamente exactos. A partir desta altura o calendário ocidental tornou-se popular na China.

Na mesma altura em que o novo calendário estava a ser elaborado, foram traduzidas para chinês uma série de obras ocidentais com temas de astrologia e sobre medição. Entre as quais destacam-se:

a) A Geometria, escrita por Euclides, narrada por Mateus Ricci e traduzida por Xu Guangqi.

b) A Medição, escrita por Xu Guangqi.

c) O Teorema de Pitágoras, escrita por Xu Guanqi.

d) A Medição, escrita por Mateus Ricci e Xu Guangqi.

e) A Astronomia, escrita por Mateus Ricci e Xu Guangqi.

f) A Circunferência, escrita por Li Zhizao.

g) A Astronomia Ilustrada, escrita por Li Zhizao.

h) A Matemática, escrita por Li Zhizao.

i) Instrumentos Astronómicos, escrita por Sabatinode Ursis.

j) Astronomia Simplificada, escrita por Manuel Dias.

Sob a orientação de Xu Guangqi, foram fabricados no Observatório Ocidental muitos instrumentos e telescópios astronómicos.

Mas ao mesmo tempo que se introduzia a astronomia ocidental na China, os missionários enchiam os chineses com algumas das más ideias próprias da crença católica, como, por exemplo, a que afirma que a Terra era o centro do Universo. Ora, esta teoria era já negada, no mundo ocidental, pelo astrónomo polaco Nicolau Copérnico.

2.2. Geografia

Quando Mateus Ricci praticava a sua actividade religiosa no distrito de Zhaoqing, na província de Cantão, desenhou em 1583 um mapa-múndi, intitulado Yu Di Shan Hai Tu (Mapa dos Continentes, Países, Montanhas e Mares de Todo o Mundo) e ofereceu-o a Wang Pan, prefeito de Zhaoqing. Este foi o primeiro mapa introduzido na China. Para agradar aos chineses, Mateus Ricci desenhou de propósito a China no centro do mapa e colocou a Europa, África e América do Norte e do Sul nos lados.

Entre 1598 e 1600, Mateus Ricci aperfeiçou o mapa e publicou-o, causando grande impacto na China. Em 1600, Mateus Ricci concluiu o seu Atlas, cobrindo todo o mundo com cinquenta e três páginas, intitulado Wan Guo Tu Zhi (Atlas de Todos os Países), e ofereceu-o ao imperador Wanli da dinastia Ming. Foi também o primeiro atlas do mundo a ser introduzido na China.

Além de Mateus Ricci, outros missionários, como Diego de Pantoja, Júlio Aleni, Lu Ciyun, Luís Buglio, An Wensi e Nan Huairen também publicaram na China obras sobre geografia.

Estas obras apresentavam novas teorias da geografia ocidental, tais como: A Terra é redonda; o Mundo divide-se em cinco Continentes (Europa, Ásia, África, América do Norte e América do Sul); a Terra é parte do sistema solar e movimenta-se regularmente; o uso da longitude e da latitude na cartografia; posição e topografia geográficas de todos os países do Mundo, etc.

Estes novos conceitos fizeram com que os intelectuais da China se interessassem por esta ciência. Durante a época do imperador Kangxi da dinastia Qing, o Imperador ordenou que se formasse uma equipa de trabalho composta por geógrafos chineses e ocidentais para desenharem em conjunto um mapa de toda a China. Para levar a cabo esta tarefa, utilizaram cálculos ocidentais de medição e levaram 30 anos para concluir este trabalho. Após o término, o mais fiel possível, intitularam-no por Huan Yu Quan Lan (Mapa Completo da Terra do Império).

2.3. A medicina

Os portugueses de Macau tiravam cinco por cento aos impostos anuais para serem dados à Misericórdia. Em Maio de 1568, o primeiro bispo da Freguesia de Macau, Melchior Carneiro, fundou um hospital no Território. Este facto acabou por assinalar a introdução da medicina ocidental na China. O bispo fez isto, porque era de opinião que, com o hospital, a Igreja tornar-se-ia, aos olhos dos crentes, uma casa de Misericórdia, uma fonte de segurança e conforto, ou seja, seria uma garantia na prosperidade e na saúde. Melchior Carneiro pensou que, desta forma, fosse capaz de atrair mais crentes.27

Mais tarde, foi introduzida na China a anatomia. Os missionários Luo Yagu e João Terrenz publicaram na China obras sobre a anatomia do corpo humano. Na época do imperador Kangxi, da dinastia Qing, alguns missionários oriundos de Macau trabalharam em Pequim como médicos privados do Imperador e foram muito elogiados.

Bastantes vezes curaram o Imperador através da medicina ocidental.

Certa vez, o Imperador contraiu malária e só depois de fazer um tratamento com quinino, oferecido pelos médicos ocidentais, pôde melhorar e ficar curado. Foi assim que o quinino entrou pela primeira vez na China.

3. O Artesanato

Os portugueses de Macau não só trouxeram para a China muitos trabalhos de artesanato, novidade para os chineses, como também explicaram, em pormenor, o seu funcionamento mecânico e como se fabricavam. Alguns missionários publicaram na China obras sobre esta matéria, entre as quais se destacam: Plantas dos Objectos Estranhos do Ocidente, escrita por João Terrenz, missionário suíço, e traduzida por Wang Hui; Telescópios, publicada por Johann Adam Schall Von Bell.

De acordo com o registo existente na Nova História de Guangdong e na Breve Apresentação de Macau, existiam em Macau os seguintes objectos estranhos do Ocidente:

— Um grande relógio, pendurado na Igreja de S. Paulo. Quando o relógio funcionava, via-se um sapo a mover-se em círculos.

— Uma grande variedade de relógios despertadores, incluindo relógios de mesa, de parede, de música e de bolso.

— Outros instrumentos que se usavam naquela época para indicar as horas, como o relógio de sol, o relógio da lua, etc.

—Facas e espadas, incluindo navalhas, facalhões de metal elástico e uma variedade de espadas.

— Objectos de vidro e cristal, incluindo guarda-ventos de vidro, taças e copos, lustres, espelhos, telescópios, microscópios e uma grande gama de lentes.

O que mais impressionou os chineses foram os óculos. No fim da dinastia Ming, um poeta chinês escreveu um poema dedicado aos óculos:

"Objecto esquisito do Ocidente.

De novo torna a visão clara,

Embora esconda os olhos,

Traz mais brilho para dentro."28

III. ARTES E CULTURA OCIDENTAIS

1. Arquitectura

A arquitectura ocidental foi também introduzida na China através de Macau. Macau foi, durante séculos, um ponto comercial onde os habitantes chineses e ocidentais viviam lado a lado. Verificou-se, por isso, uma grande variedade de estilos arquitectónicos nas suas construções. Os chineses de Macau viviam em casas de um só piso, construídas em terras baixas e planas da península. Os portugueses preferiam morar em prédios distribuídos pelas encostas das colinas. A propósito disto a História do Distrito de Xiangshan diz-nos o seguinte:

"Aglomeradas nas encostas das colinas, as residências dos bárbaros em Macau são como casas de abelhas."

Com esta descrição, bem se pode imaginar o panorama de então. De acordo também com a história daquele distrito, as construções dos portugueses eram, na maioria, altíssimas, cujos telhados se viam ao longe. Estas construções dividiam-se em igrejas católicas e casas particulares. Estas últimas eram geralmente de dois pisos.

As igrejas construídas em Macau durante os séculos XVI e XVII foram as seguintes:

— A antiga Sé, chamada pelos chineses Feng Tang ou F a Feng Si (Igreja ou Templo de S. Lázaro), por ficar perto do então Hospital da Lepra. Foi Sé Episcopal desde 1576, depois da fundação da Diocese de Macau.

— A Igreja de S. Lourenço, construída por volta de 1575.

— A Igreja de S. António, construída em 1565 e chamada pelos chineses Hua Wang Miao (Templo do Rei das Flores). Era onde os crentes realizavam as cerimónias de casamento.

— A Igreja de S. Agostinho, construída em 1589 e chamada pelos chineses como Long Song Miao (Templo do Pinheiro de Dragão).

— A Igreja de S. Domingos ou da Rosa, construída em 1587 e chamada pelos chineses como Ban Zhang Miao (Templo das Tábuas).

— A Igreja de S. Paulo, construída entre 1572 e 1602 e chamada pelos chineses como San Ban Miao ou Da San Ba. A Igreja foi destruída por um incêndio em 26 de Janeiro de 1835.

Todas as construções destas igrejas eram do estilo arquitectónico barroco, principalmente a Igreja de S. Paulo, que foi a maior construção religiosa barroca de Macau e do estilo típico barroco.

Relativamente às outras igrejas de Macau, a Breve Apresentação de Macau faz apenas pequenas referências. Mas em relação à de S. Paulo o autor fez dela uma descrição pormenorizada:

"O maior templo de Macau é o San Ba, que fica na encosta duma colina, no nordeste da península. A construção tem mais de vinte metros de altura. A porta principal abre-se numa das empenas e a construção tem, por isso, mais profundidade do que largura. O templo é construído com mármores bem talhados. O seu interior é pintado em tons multicolores com embutidos brilhantes nas paredes e nas colunas. O tecto é em forma de tenda. O santuário é dedicado à Mãe de Deus. Na sua estátua a Mãe de Deus parece-se com uma jovem rapariga, e tem um bebé ao colo, Jesus Cristo. Está coberta com uma túnica pintada de cores diversas, com embutidos brilhantes. Ao seu lado existem outras estátuas, todas com orelhas grandes, narizes compridos e olhos bem abertos. Algumas têm a expressão de zangadas, outras parecem-nos felizes; outras ainda têm a boca aberta, como se quisessem falar. Uma delas tem o aspecto de um homem de mais de 30 anos, na mão esquerda segura um instrumento astronómico e na mão direita aponta para a frente, como se quisesse explicar algo. No piso de cima, há instrumentos musicais. No alto do templo, existe um relógio tendo ao lado uma estátua de uma ninfa, com um gesto de querer tocar a campainha. Depois de se dar a corda, o relógio bate as horas automaticamente. Dentro do templo há mais de cem monges, alguns deles estrangeiros."29

A igreja foi há muito destruída por um incêndio. O que resta hoje são apenas as ruínas da sua fachada, com 27 metros de altura, 23 metros de largura e 2,7 metros de espessura. A fachada fica ao cimo de uma escadaria composta por setenta degraus, uma majestosa maravilha que ainda hoje se pode observar.

A fachada constitui também um símbolo do conjunto das culturas ocidental e chinesa. A sua estrutura, sustentada por quarenta colunas de mármore, divide-se em cinco pisos. Em cada piso, estão colocadas estátuas de personagens da Bíblia Sagrada. Mas ao lado das estátuas do terceiro piso estão gravadas em caracteres chineses as seguintes exortações:

-- Não é pecado praticar o culto aos antepassados.

-- S. Maria está pisando a cabeça do dragão.

-- O demónio seduz o homem para o mal.

Nas duas extremidades do terceiro e quarto pisos, estão colocadas quatro estátuas de leão, em mármore, o que é muito vulgar na tradição chinesa. Nos dois lados da estátua de Jesus Cristo estão gravados relevos decorativos de lírios, flor apreciada pelos ocidentais, e de crisântemo, que é a flor preferida dos chineses.

Depois desta descrição conclui-se que a fachada da Igreja de S. Paulo pode ser considerada um monumento histórico de intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente.

Além de igrejas existia em Macau uma variedade de casas particulares, construídas em estilo ocidental. A maior parte destas casas tinha mais de dois pisos, com varandas, janelas para os quatro lados, portão em arco e paredes exteriores pintadas de vermelho ou cor de rosa. Eram, na maioria, casas bonitas.

Sobre isto, lê-se na Breve Apresentação de Macau a seguinte descrição:

"A maioria deles vive em prédios, que têm geralmente três pisos e que ficam espalhados pelas encostas das colinas. As formas destes prédios são variadíssimas: quadradas, redondas, triangulares, octogonais ou em forma de flor. Os telhados são em forma de caracol e são também bonitos. As paredes são de tijolo e têm um a dois metros de espessura. A vedação de muitas casas é feita por um muro onde existe uma janela, tapada por dentro, que constitui um santuário para a Madre de Deus. Os prédios têm geralmente uma porta que se abre só por uma empena, com uma escada formada por uma dezena de degraus. Os donos vivem nos pisos de cima e os escravos negros vivem nos de baixo. Em redor do prédio fica o pátio cercado por um muro que serve de vedação. O portão do muro fica em frente da fachada do prédio. Alguns prédios têm cave que serve de despensa."30

No final da dinastia Ming e começo da dinastia Qing, muitos missionários ocidentais entraram na China através de Macau e construíram igrejas católicas no interior do continente. A arquitectura foi, por isso, transferida também de Macau para o interior da China e influenciou até certo ponto, a arquitectura chinesa.

2. Demais Artes

A pintura ocidental foi introduzida na China no fim da dinastia Ming e começo da dinastia Qing. As primeiras obras a serem introduzidas foram os retratos de Jesus Cristo e de S. Maria, trazidos pelos missionários. Durante a época do imperador Wanli da dinastia Ming, um missionário chamado Luo Mingjian chegou a Macau com um retrato de Jesus Cristo e outro de S. Maria. Mais tarde Mateus Ricci entrou na China continental para propagar o Cristianismo. Por onde passava distribuía sempre retratos de Jesus Cristo e de S. Maria aos residentes locais. Quando chegou a Pequim em 1600, ele incluiu também nos presentes oferecidos ao imperador Wanli, retratos. No seu livro, Hóspedes Estrangeiros, um oficial de então, chamado Gu Qiyuan, descreveu da seguinte maneira aquelas pinturas ocidentais:

"Na pintura Jesus Cristo é um bebé, sentado ao colo de uma mulher, sua Mãe, que se chama S. Maria. A pintura é feita numa chapa de cobre e tem tons multicores. As personagens parecem vivas. Os corpos, braços e mãos parecem em alto relevo. Quando se olha de frente, os rostos parecem mesmo verdadeiros, pois são em três dimensões. Será obra humana? Como se consegue isto? A resposta dos estrangeiros foi a seguinte: Quando os chineses pintam, desenham só pontos brilhantes e nunca as sombras: é porque, quando se olha de frente, as personagens parecem planas, sem dimensão. As nossas pinturas são desenhadas em sombreado. Parecem, portanto, ter relevo, como se estivesse em três dimensões. Quando uma pessoa enfrenta a luz do Sol, o seu rosto fica todo brilhante, mas quando a luz vem de um lado, uma metade do rosto fica mais brilhante do que a outra, acontecendo o mesmo nas partes menos côncavas como as dos olhos, a da boca e a da orelha. Os nossos pintores desenham desta maneira. É por isso que as personagens nas pinturas deles parecem pessoas reais."31

Segundo a Breve Apresentação de Macau, via-se também no Território uma grande variedade de pinturas ocidentais. A propósito o autor fez a seguinte descrição:

"Outra coisa esquisita em Macau são as pinturas. A maior delas todas é a que representa todos os oceanos do mundo e que está pendurada na Igreja de S. Paulo. Lá pode ver-se outros géneros de pinturas como, por exemplo, pinturas em papel, em couro, em leques ou em objectos de vidro, etc. Quando se olha a uma certa distância, os objectos e as personagens parecem reais. As construções, as escadas e as portas têm dimensões em profundidade. As personagens têm brilho nos olhos. Além disso, há lá também pinturas em série, feitas com esmalte ou bordadas, que representam passagens de várias histórias."32

As pinturas ocidentais introduzidas na China influenciaram também alguns pintores chineses das dinastias Ming e Qing. A História da Dinastia Qing conta que alguns pintores chineses utilizaram bastantes vezes técnicas ocidentais nas suas obras. Eram eles, Mang Hu, Ding Yuntai, Ding Yu, Wu Li e Jiao Bingzhen. O missionário Francisco Zambiasi publicou na China um livro intitulado Pinturas, que era uma obra teórica sobre a pintura ocidental.

3. Música

A música ocidental contemporânea e a música de igreja foram introduzidas na China ao mesmo tempo que o Cristianismo. A música da Igreja era geralmente tocada por um órgão de tubo e, por isso, os chineses chamavam-na Feng Yue (Música do Vento). Na Nova História de Cantão, o seu autor, Qu Dajun, descreveu a música tocada por órgão nas igrejas do seguinte modo:

"Nos domingos à noite, os crentes, homens e mulheres, iam aos templos para assistirem à missa e ouvir o sermão pregado por monges. Cada templo tinha um Fen Yue (órgão) que não se podia ver por estar escondido dentro de um armário. O instrumento continha, por dentro, mais de cem tubos e, por fora, um saco de vento. Quando se comprimia devagarinho o saco de ar do instrumento, saíam de dentro do armário sons harmoniosos. O som era agradável e melodioso."

Qu Dajun também faz referência no seu livro a outro instrumento musical que tinha cordas em cobre e que se tocava com um pequeno bambu. O som deste instrumento era, também, muito agradável, segundo Qu Dajun.33

A pouco e pouco, a música ocidental foi sendo introduzida pelos missionários no interior da China. O próprio Mateus Ricci ofereceu ao imperador Wanli um instrumento musical chamado espineta e um livro de música com oito canções ocidentais. Mais tarde Diego de Pantoja ensinou a orquestra e o coro do Palácio Imperial a tocar e cantar aquelas canções. O Imperador e os oficiais achavam-nas muito agradáveis e gostavam muito de as ouvir.

O primeiro livro sobre a teoria musical ocidental, publicado na China, foi Lu Zheng Wen Xu Bian e foram co-autores Tomás Pereira e De Lige. Este livro foi publicado pela primeira vez na época do imperador Kangxi. O seu conteúdo era o pentagrama. As explicações eram claras e muito simples. Com este livro, tornou-se bastante mais simples tocar e cantar o pentagrama.

4. As Línguas

No intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente, as línguas tiveram sempre um papel fundamental como meio de ligação. Para se ultrapassar os obstáculos da língua, os comerciantes ocidentais que vinham à China usavam sempre intérpretes chineses. Mas os missionários tiveram necessidade de aprender chinês, porque era impossível propagar o Cristianismo com a ajuda de um intérprete. Com o fim de facilitar a memorização e a leitura dos caracteres chineses, eles romanizavam os sons ao lado dos caracteres. Assim, pouco a pouco, foi nascendo um embrião de um futuro dicionário. Entre 1584 e 1588, Mateus Ricci e outro missionário chamado Luo Mingjian elaboraram o primeiro dicionário português-chinês. O seu título, em chinês, era Conversas Quotidianas. Foi uma obra inacabada com 189 páginas. Na realidade, aquele dicionário não passou de um manual de diálogos em chinês com anotações fonéticas em letras latinas. Em 1605 Mateus Ricci publicou em Pequim outro livro intitulado Milagre da Língua Ocidental, que foi também um dicionário de chinês com anotações fonéticas em letras latinas. Na mesma altura, Mateus Ricci ofereceu a Chen Youbuo quatro pinturas religiosas com legendas compostas por 387 caracteres chineses, todos com anotações fonéticas em letras latinas. De acordo com os estudos, pode-se concluir que na altura utilizavam-se 26 consoantes, 43 vogais, 4 consoantes auxiliares e 5 tons de entoação para soletrar os caracteres chineses.

Em 1625 o missionário Nicolau Trigault publicou um dicionário chinês com anotações fonéticas latinas, cujo título era Chave para Confucionistas Ocidentais. Este dicionário era muito mais pormenorizado e sistematizado do que o de Mateus Ricci. As suas anotações fonéticas eram também mais exactas. Elas não só contribuíram para a ocidentalização da língua chinesa, como também influenciaram e impulsionaram o processo de romanização dos caracteres chineses.

No seu dicionário, Nicolau Trigault classificou os caracteres chineses em 28 fonemas, que correspondiam às seguintes letras latinas, divididas em três partes:

Primeira parte, 5 vogais: a, e, i, o, u.

Segunda parte, 20 consoantes: s, ch, ch', k, k', p, p', t, t', v, f, g, l, m, n, s', x, h.

Terceira parte, as restantes 4 consoantes não usadas no chinês: b, d, r, z.

Usavam-se também os seguintes 50 [sic] ditongos: ai, ao, am, an, eu, em, en, ia, ie, io, iu, im, in, oa, oe, ua, ue, ui, uo, ul, um, ui, eao, eam, iai, oei, oam, oan, oen, uai, uei, uam, uan, uem, uen, uon, iuen.34

Com o dicionário, a tradução do chinês para as línguas ocidentais tornou-se muito mais precisa do que anteriormente. A sua publicação causou, por isso, grande impacto na China. Muito satisfeito, Nicolau Trigault gabou-se desta maneira:

"A pedido dos crentes chineses, eu elaborei um dicionário de chinês, em três volumes. O dicionário fez a ligação dos caracteres chineses com as nossas vogais e consoantes. Com o dicionário, qualquer chinês consegue estudar e entender o sistema gramatical das línguas ocidentais num muito curto espaço de tempo. Este tipo de livros surpreendeu os chineses. Eles ficaram admirados pelo facto de um estrangeiro ter corrlgido as imperfeições existentes na língua deles. O dicionário ajudou também a atrair os crentes idólatras e a torná-los católicos. O ex-Ministro do Protocolo, Ritos e Educação, Zhang Xiangda, financiou a publicação e escreveu para o dicionário um prefácio do qual me sinto muito honrado."35

A língua portuguesa começou a ser usada em Macau desde a fixação dos portugueses no território de Macau. Quanto a isto, a Breve Apresentação de Macau faz a seguinte descrição:

"Como os residentes chineses em Macau vivem lá há algum tempo, os seus hábitos e línguajá se vão barbarizando."

Para aprender palavras portuguesas, os residentes chineses utilizavam também anotações fonéticas, mas com caracteres chineses. A Breve Apresentação de Macau tem, como anexo, um Manual de Tradução, que é, na realidade, um vocabulário de palavras portuguesas com tradução e anotações fonéticas em caracteres chineses. O vocabulário contém 305 palavras, divididas em cinco partes:

1.a Parte — A Natureza, como por exemplo, o Céu, o Mar, o Sol, a Ilha, a Porta do Cerco, a Cidade, etc.

2.aParte — A humanidade, que contém, entre outras palavras, as seguintes: o Pai, a Mãe, o Homem, o Governador, o Imperador, o Marinheiro, etc.

3.a Parte — A roupa e a comida, com palavras como a Seda, a China, o Vinho, o Tabaco, o Ópio, o Chá, o Almoço, etc.

4.a Parte — Os instrumentos, como por exemplo, o Pincel, o Papel, os Óculos, o Relógio, a Embarcação, a Faca, etc.

5.a Parte —As palavras mais usuais, como Comprar, Vender, Ter, Não, Rir, Estar, Morrer, etc.

Para terminar, merece ser mencionado outro acontecimento que foi também importante no intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente.

Em 1614, o Papa Paulo V deu a Nicolau Trigault mais de 7.000 livros. Em 20 de Julho de 1620, Nicolau Trigault e outros missionários conseguiram levar estes livros até Macau; posteriormente uma parte foi de Macau para Pequim, como oferta ao Imperador da dinastia Ming. Muitos destes livros foram mais tarde traduzidos para chinês, por missionários ocidentais e crentes chineses, e publicados na China, o que impulsionou a introdução e a difusão da cultura ocidental na China.

Em resumo, o território de Macau, como primeiro estabelecimento europeu na China, tem sido responsável por uma tarefa inapagável na História, pois tem constituído um traço de união entre a China e outras partes do mundo, uma base da cultura oriental e ocidental e também um agente de trocas comerciais nos séculos anteriores.

Tradução do original chinês por Wang Jiangpeng; revisão de Raul Pissarra.

NOTAS

1 XU Zhongyang, História da Introdução do Cristianismo na China, p. 169.

2 PEI Huaxing, Introdução do Cristianismo na China, no Século XVI, p. 59.

3 Id., p. 158.

4 Id., pp. 227-8.

5 PEI Huaxing, Mateus Ricci e a Sociedade Contemporânea Chinesa, vol. 1, pp. 1-3.

6 PEI Huaxing, Introdução.... pp. 267-8.

7 XU Guangqi, Obras, vol. 9, p. 431.

8 Correspondência entre o Imperador Kangxi e os Enviados de Roma, Pequim, Museu do Palácio Imperial, pp. 11, 13.

9 Id., p. 14.

10 História da China Oriental, vol. 11, pp. 41-2.

11 ZHANG Rulin, Breve Apresentação de Macau, vol.1, pp. 40-2.

12 Id., pp. 44-5.

13 "China Repository", Mar. 1833, p. 444; Nov. 1844, p.595.

14 Id., Nov. 1834, p. 300.

15 MORRISON, Robert, Memórias, vol. l, pp. 95-7.

16 Id., vol. 2, pp. 254-5.

17 "China Repository", Fev. 1846, pp. 105-6.

18 "Biografia dos Frangue", in História da Dinastia Ming, vol. 325. A proposta de Wang Hong está guardada nos Arquivos da Época do Imperador Jiajing da Dinastia Ming, vol. 117, com código de registo Xin/Mao/Novembro/Novo Ano do Imperador Jiajing.

19 GU Yanwu, "Prefácio de Contas Mensais", in Prós e Contras de Todos os Países do Mundo, vol. 119. O prefácio está também registado, sob o título de Frangue, nas pp. 8-11 do vol. 9 do Registo do Exterior, escrito por Yan Chongjian.

20 HU Zhongxian, "Armas", in Projecto de Defesa Marítima, vol. 13.

21 YAN Chongjian, Registo do Exterior, vol. 9, p. 9.

22 CHEN Buotao, História do Distrito Dongguan, vol. 50, p.12.

23 "Armas", in Continuação de Estudos de Documentos Históricos, vol. 134, número 14.

24 LI Zhizao, Biografia de Xu Guangqi, vol. 3.

25 WEI Te, Biografia de Johann Adam Schall Von Bell, vol. 1, p. 82.

26 Id., pp. 82-4.

27 WEI Te, Introdução do Cristianismo na China do Século XVI, p. 131.

28 QU Dajun, Nova História de Cantão, p. 9; ZHANG Rulin, ob. cit., vol. 2, p. 33.

29 Id., p. 18.

30 Id., p. 16.

31 GU Qiyuan, "Mateus Ricci", in Hóspedes Estrangeiros.

32 ZHANG Rulin, ob. cit., vol. 2, p. 38.

33 Id., pp. 32-3.

34 LUO Changpei, Contribuição dos Missionários: Fonologia, "Revista do Instituto de Estudos sobre a História e as Línguas", 3(1).

35 FANG Hao, Estudos sobre a Introdução do Latim na China, pp. 226-7.

* Professor-assistente na Faculdade de História da Universidade de Nanquim.

desde a p. 71
até a p.