Imagem

O P.e JOSÉ BERNARDO DE ALMEIDA, D. FR. ALEXANDRE DE GOUVEIA, E A EMBAIXADA DE LORDE MACARTNEY (1793)

António Graça de Abreu *

Joana d'Arc, a uma pergunta feita para a confundir: "— Deus ama os Ingleses?", respondeu: "— Ama os Ingleses na terra deles. "

"M uitos dos missionários visitaram a embaixada. Um deles, um português de modos suaves e conciliadores foi, ao mesmo tempo, apontado pelo Imperador chefe dos europeus no Tribunal das Matemáticas, e pelo Papa, por recomendação da rainha de Portugal, Bispo de Pequim."1

Esta a pequena referência a D. Fr. Alexandre de Gouveia (1751-1808) feita por Sir George Staunton na sua famosa An Authentic Account of an Embassy from the King of Great Britain, editada em Londres em 1797.

John Barrow, outro dos acompanhantes da embaixada de Lorde Macartney, na viagem e estadia na China, nas suas Travels in China, dedica algumas páginas a D. Fr. Alexandre de Gouveia e ao labor dos missionários europeus em Pequim. Ao caracterizar D. Fr. Alexandre quase copia Staunton:

"O Prelado era um homem de temperamento suave e sereno, modos agradáveis e um comportamento simples e modesto."2

Alexandre de Gouveia nasceu em Évora em 1751.

Protegido de D. Fr. Manuel do Cenáculo, Bispo de Beja e homem influente na corte portuguesa, o jovem alentejano fez-se religioso na Ordem Terceira de S. Francisco. Veio a ser o primeiro licenciado em Matemáticas pela Universidade de Coimbra, após a Reforma de 1772, levada a cabo pelo marquês de Pombal.

Fr. Alexandre de Gouveia era professor de Filosofia e Matemática no Convento de Jesus em Lisboa quando, em Julho de 1782, foi nomeado Bispo de Pequim, a longínqua diocese no império da China criada em 1690 e ainda dependente do Padroado Português do Oriente.

A corte de Lisboa decidiu preparar minuciosamente a viagem de D. Fr. Alexandre e destinar-lhe importantes tarefas. Será embaixador e defensor dos interesses de Portugal e de Macau junto da corte chinesa. São as Instruções para o Bispo de Pequim, publicadas em 1942 pela Agência Geral das Colónias, sob a responsabilidade de Manuel Múrias.

Ignorando quase tudo — princípios por que se orienta o mundo chinês, a política, o funcionamento da burocracia celeste, as sensibilidades étnicas —, a corte de Lisboa incumbe D. Fr. Alexandre de Gouveia de impossíveis tarefas, sobretudo no que respeita aos direitos supostamente adquiridos pelos portugueses em Macau. É-lhe ainda sugerido que, para além de bispo da capital chinesa, seja embaixador permanente de Portugal no Império do Meio.3

Dez anos depois das Instruções portuguesas para Fr. Alexandre, o embaixador inglês Lorde Macartney -- igualmente mal informado sobre as coisas da China -- vem para Pequim com proposta e exigências de todo irrealistas, uma delas a de a Inglaterra ter também um embaixador residente na capital do Império.

Ao chegar a Pequim, em Janeiro de 1785, D. Fr. Alexandre de Gouveia vai encontrar um imenso país que se rege por leis muito diversas das do Ocidente cristão, onde ser estrangeiro corresponde a um estigma de impossível superação, onde até o ar que se respira é diferente. O bispo encontra também quatro ex-jesuítas portugueses, os padres José de Espinha (1722-1788), Inácio Francisco ( 1725-1792), André Rodrigues (1729-1796) e José Bernardo de Almeida (1728-1805).

José Bernardo de Almeida e o padre francês Luís Poirot (1735-1813) serão os dois intérpretes, indicados pelo Imperador, que em 1793 acompanharão a embaixada de Lorde Macartney na sua estadia em Pequim e em Chengde (Jehol). Bernardo de Almeida contribuirá, a seu modo, para o insucesso da embaixada inglesa, como adiante veremos.

Quase dois anos após a sua chegada a Pequim, D. Fr. Alexandre de Gouveia informa Martinho de Melo e Castro, ministro e secretário de Estado, da impossibilidade de cumprir as Instruções que recebera em Lisboa. Da sua carta, em Pequim, a 3 de Novembro de 1786:

"(...) Os costumes chineses são semelhantes às leis. Faltar a uma pequena formalidade autorizada pelo costume é um crime que se castiga com a subtracção do mandarinato; violar um pequeno ponto da legislação é uma culpa castigada com o desterro perpétuo e às vezes com a morte. O actual imperador [Qianlong], príncipe de um talento extraordinário e que governa por si mesmo um povo imenso, tem de tal sorte intimidada esta nação, de si mesma tímida por natureza e pela rígida observância das leis e dos costumes, que os mandarins tremem na sua presença e os mesmos ministros de Estado jamais lhe propõem negócio que prevejam poderá desgostá-lo, temendo a própria ruína ao mais leve defeito no ofício.

A respeito dos estrangeiros, a política é ainda mais severa. Aqui não é permitido embaixador ou ministro nenhum estrangeiro senão em o breve espaço que duram os negócios relativos à embaixada.

(...) Os missionários europeus, admitidos aqui a título de servirem o Império nas matemáticas e artes da pintura e relojoaria, têm estado muitas vezes em perigo de serem expulsos por meras suspeitas que os chinas têm de algumas outras intenções como a de pregar a lei de Cristo."4

A Inglaterra, desde meados do século XVIII, ambicionava possuir um estabelecimento permanente em território chinês. O comércio em Cantão crescia, a importação do chá, os negócios do ópio, ido da Índia, começavam a dar avultados lucros aos aventureiros ingleses que arriscavam os seus navios nas viagens até ao Extremo Oriente e aos countrymen da Companhia das Índias Orientais. A Índia tornara-se a jóia da coroa britânica e a China, prenhe de todas as riquezas, ou alguns portos de mar nas costas chinesas entravam na esfera da desejada dependência inglesa. A Inglaterra cobiçava Macau.5

Alain Peyrefitte, no seu O Império Imóvel, fala do encontro em Macau com o padre Manuel Teixeira, "o mais erudito dos historiadores portugueses", e acrescenta:

"A acreditar nele, a missão Macartney tinha por objectivo tanto preparar um golpe de mão em Macau quanto abrir a China ao comércio."

Peyrefitte coloca na boca do bom padre as seguintes palavras:

"Os ingleses são essencialmente ociosos. O pequeno Portugal estava instalado em Macau havia duzentos e cinquenta anos: tinham de se apoderar ou de outro 'Macau', ou então do 'nosso'. Macartney procedeu a levantamentos minuciosos das defesas portuguesas. Os missionários não deixaram de notar a manobra! Com os chineses podemos sempre entender-nos. Com os ingleses, nada a fazer."

E o historiador e diplomata francês conclui:

"Que paradoxo."6

Tratar-se-ia, de facto, de algo tão estranho a pretensão inglesa sobre Macau quando da embaixada de Lorde Macartney? Como não compreender a natural hostilidade portuguesa face à presença inglesa nos mares da China!? Macau e a presença portuguesa no Império do Meio estavam, ou não, em perigo? Os acontecimentos posteriores, com as fracassadas tentativas britânicas de ocupação de Macau, em 1802 e 1808, provam que todos os receios portugueses eram justificados.

Em 22 de Dezembro de 1792, com a embaixada inglesa de Lorde Macartney ainda em viagem para a China onde só chegaria em Junho de 1793, o governador de Macau, Vasco Luís Carneiro de Sousa e Faro, escrevia para a corte de Lisboa:

"Repetem os ingleses segunda vez embaixador à China, e se achava já nomeado Lorde Mecartin [sic] para partir em um navio de guerra em direitura para Pekim, com a conserva de mais duas fragatas, pouco tempo depois de expedirem a sua frota do seu costume para Cantão, donde já estâo 17 navios, vindo em um deles três conselheiros para ali residir, incumbidos particularmente dos negócios políticos atinentes à embaixada para resolverem neste privado conselho as matérias que se ocorrem a este respeito.

Publica-se ser o fim da dita embaixada quererem os ditos ingleses a ilha de Cantão para ali se estabelecerem e, quando assim o consigam, o que nâo duvido por não termos naquela corte quem embarace este projecto, não fará pequeno dano esta vizinhança de Macau, pelo menos se nâo precavermos para o futuro.''7

Destaco a afirmação do então governador de Macau "por não termos naquela corte [de Pequim] quem embarace este projecto". Ora acontece que se encontravam em Pequim homens dispostos a embaraçar o projecto inglês, e com algum poder para isso. Eram os padres José Bernardo de Almeida, André Rodrigues e o Bispo Alexandre de Gouveia.

José Bernardo de Almeida, de nome chinês So Dezhao, era um velho ex-jesuíta, em Pequim desde 1759. Trinta e quatro anos de vida na capital da China haviam-no "achinesado" no modo de actuar e de sentir. Desempenhava as importantes funções de director do Tribunal das Matemáticas e Astronomia (não presidente como normalmente os nossos missionários se costumavam autonomear, dado que as duas presidências eram sempre concedidas a dois nobres manchus). Almeida era cirurgião e o médico pessoal de He Shen, o Colao Ho, uma espécie de primeiro-ministro, favorito e amante do imperador Qianlong. He Shen, depois do Imperador, assumia-se como o homem mais poderoso da China. O ministro desempenha um papel fundamental no insucesso da embaixada de Lorde Macartney. A seu lado vamos encontrar sempre José Bernardo de Almeida.

Em 1774 escrevia o padre francês Luís Amiot, um dos mais brilhantes jesuítas que alguma vez missionou na China:

"Um cirurgião pode, pelos serviços que presta, obter mais protectores para a nossa Santa Religião do que todos os outros missionários com todos os seus talentos juntos."8

Melhor do que ninguém na corte de Pequim, José Bernardo de Almeida sabia como obter protectores para a Religião e para os interesses directos dos missionários portugueses. Está por fazer a biografia deste homem fabuloso, de fascinante trajectória por dentro dos meandros da corte chinesa.9

O padre André Rodrigues, de nome chinês An Guoning, também ex-jesuíta, havia chegado a Pequim em 1759, com José Bernardo de Almeida. Era também director do Tribunal das Matemáticas e Astronomia e homem com um óptimo relacionamento com os mandarins chineses. As Hao Guangxi eram valiosíssimas, ontem como hoje.

O Bispo de Pequim, D. Fr. Alexandre de Gouveia, de nome chinês Tang Shixuan, que desempenhava também funções de vice-director do Tribunal desde 1787, conseguira habilmente cair nas boas graças dos mandarins da corte e, muito importante, fornecia-lhes regularmente "tabaco de Amostrinha", o rapé (e ópio?) que recebia como privilégio de Macau e da índia. Fr. Alexandre era também o administrador dos bens avultados da diocese. Habituara-se, ou habituaram-no, a presentear magnificamente quase todos os mandarins ou funcionários da corte que lidavam com os portugueses das duas igrejas, Nantang ou da Imaculada Conceição (onde residia o Bispo), e Dongtang ou de S. José.10

Almeida, Rodrigues e Gouveia, por ordem do Imperador, vão examinar os instrumentos astronómicos que Lorde Macartney traz como presente e são eles que, infalivelmente, aproveitarão todas as oportunidades para intrigar e instilar venenos contra os ingleses. Veremos.

Em Junho de 1793, um outro missionário, com objectivos absolutamente opostos, vai entrar em cena.

O ex-jesuíta francês Jean Baptiste Grammont (1736-1812?) havia chegado à China em 1770 para desempenhar funções de músico na corte. Assistira à extinção da sua Companhia de Jesus, às muitas divisões, conluios e silêncios dos padres europeus em Pequim, e vivera em Cantão entre 1785 e 1791. Estes seis anos de contacto, sobretudo com ingleses, que comerciavam na grande cidade do rio das Pérolas, fizeram de Grammont um amigo servil, dedicado aos assuntos de Inglaterra.

Pouco antes de chegar a Pequim, Lorde Macartney recebia por meio de um enviado chinês, secretamente, duas cartas do padre Grammont. O ex-jesuíta francês coloca-se incondicionalmente ao dispor do embaixador inglês e aconselha-o a tomar cuidadosas precauções contra o padre José Bernardo de Almeida, intérprete oficial da embaixada e homem da confiança do primeiro-ministro He Shen e do Imperador. Grammont afirma que Almeida tudo fará para conseguir o fracasso da missão inglesa. E:

"(...) Se Vossa Excelência quiser declarar ao mandarim principal que o irá acompanhar, que deseja ter-me na sua comitiva, que seja eu o intérprete ou que desempenhe qualquer outro papel que achar por bem e, ao mesmo tempo, dar conhecimento de tudo isto ao Imperador, então eu terei a certeza de que todo o crédito desse missionário [José Bernardo de Almeida] cairá por terra, que eu terei pelo menos a possibilidade de lhe fazer frente e que me será possível destruir rodas essas propostas desvantajosas sugeridas nalgumas cartas vindas de Cantão e Macau, estâncias de inveja e maldade.''11

Ao longo da estada de Lorde Macartney em Pequim cresce a fúria doentia de Grammont contra Bernardo de Almeida e os portugueses. Mas ao padre francês tudo corre mal. Chineses e ingleses esquecem-se dele. Os intérpretes e astrónomos ao serviço do imperador da China, José Bernardo de Almeida e André Rodrigues são promovidos a manaarms ae botão azul, grau tres, quase o topo aa hierarquia do mandarinato. Os outros intérpretes, os padres Poirot, francês, e os italianos Panzi e Adeodato ascendem a mandarins de grau seis, de vidro branco. D. Fr. Alexandre é mandarim de grau seis desde 1787.12

A 30 de Agosto de 1793, o padre Grammont informa Lorde Macartney:

"(...) É conveniente que Vossa Excelência conheça os seus bons amigos. O português Ahneida chegou a Pequim com o título de cirurgião. À falta de outro português, entrou no Tribunal da Astronomia, cujos princípios mais rudimentares ignora. O seu talento de cirurgião proporcionou-lhe diversos conhecimentos entre os grandes. Há três meses teve a sorte de curar uma leve indisposição de He Shen, o muito poderoso ministro da corte. Tal é a origem da sua fortuna e é isso que explica que se tenha atrevido a querer a honra de ser o intérprete de Vossa Excelência. Fortuna e honra que perderá rapidamente se Vossa Excelência conseguir impedi-lo de ser o intérprete em Jehol.

(...) De resto, Senhor, peço a Vossa Excelência que acredite que não é por ódio ou rancor que falo assim deste missionário. Toda a gente sabe aqui que sempre estivemos ligados pela amizade mais estreita. Mas os deveres da amizade têm os seus limites e não estão em contradição com os deveres da justiça."

Na mesma carta Grammont aconselha Lorde Macartney a oferecer valiosos presentes aos filhos do Imperador e aos grandes da corte, e conclui:

"(...) É absolutamente essencial que Bernardo de Almeida não entre em nada na distribuição ou oferta destes presentes, porque isso proporcionar-lhe-la a melhor ocasião de se fazer valer e de repetir os seus baixos propósitos. E quero ainda prevenir V. Ex. a que os senhores Poirot e Raux [o lazarista superior da missão francesa] não estão habituados à vida de sociedade, sobretudo desta sociedade aqui [... n'ont pas assez d'usage du monde et surtout du monde de ce pays-ci.],''13

Quem estaria, pois, acostumado a sobreviver bem naquela sociedade? José Bernardo de Almeida e o seu amigo Bispo D. Fr. Alexandre de Gouveia?

Lorde Macartney leva a sério os avisos do padre Grammont. Ao encontrar pela primeira vez José Bernardo de Almeida "o embaixador convence-se da veracidade do retrato que lhe tinha sido feito. Um homem mau, com inveja de todos os europeus, excepto os do seu país."14

Nada impressionado com o acolhimento frio que pressente no embaixador inglês, José Bernardo de Almeida continua a ser a sombra do Colao Ho, o primeiro ministro He Shen. O velho imperador Qianlong está na residência de Verão, em Jehol, a duzentos quilómetros da capital e só aí, ao receber Lorde Macartney, vai tomar conhecimento das pretensões inglesas. Os padres Almeida e Poirot estão depois em Jehol e desempenharão o seu papel de intérpretes, não só intérpretes.

O que a Inglaterra pretende, em terras da China, é absolutamente inconcebível aos olhos chineses; constitui um insulto ao velho império, centro do mundo.

Eis um resumo das propostas:

1.o Autorização para os ingleses comerciarem nos portos de Zhousan, Ningbo e Tianjin.

2.o Autorização de possuírem um estabelecimento permanente em Pequim, para tratar dos assuntos ingleses.

3.o Concessão de um pequeno espaço de terreno na ilha de Zhousan, ou nas proximidades, para entreposto comercial e residência dos ingleses.

4.o Concessão dos mesmos privilégios em Cantão, ou próximo de Cantão.

5.oAbolição dos direitos alfandegários entre Macau e Cantão, ou pelo menos reduzi-los ao nível de 1782.

6.oProibir a exigência de pagamento de impostos, além dos estipulados pelos decretos imperiais.15

Estes pedidos, entregues a 3 de Outubro de 1793, obtiveram resposta quase imediata. A 7 de Outubro todos os pontos da proposta de Lorde Macartney, apresentada em nome do rei Jorge III, eram rejeitados e foram dadas ordens para a embaixada deixar Pequim e regressar ao seu país. Era a suprema humilhação para a Inglaterra que teria de esperar mais cinquenta anos para, na Guerra do Ópio (1839-1842), humilhar, por sua vez, a China e conseguir finalmente o tal território próximo de Cantão, já ambicionado em 1793. Não Macau, mas a ilha Vitória, ou seja Hong-Kong.

Dois anos depois da partida de Lorde Macartney, Van Braam, o encarregado dos negócios da Holanda em Cantão e em 1795 embaixador mal sucedido do seu país à China, vai ter conhecimento de que até o mais valioso presente de Lorde Macartney ao imperador chinês acabara por prejudicar os interesses ingleses. "Os missionários [André Rodrigues, Alexandre de Gouveia, etc.] notaram que os vários mecanismos do soberbo planetário estavam gastos e que as inscrições nas peças vinham em alemão. Comunicaram estes dados ao primeiro-ministro [He Shen] que, j á chocado com muitos aspectos da embaixada inglesa, fez um relatório para o Imperador dizendo que os ingleses eram manhosos e impostores. O Imperador, indignado, ordenou que a embaixada britânica saísse de Pequim dentro de vinte e quatro horas."16

Em 1795, o padre Grammont não esquece Lorde Macartney, os fracassos tão recentes, não esquece os portugueses, nem José Bernardo de Almeida, o seu companheiro de missionação, ex-jesuíta como ele, a quem sempre estivera ligado "pela amizade mais estreita". Grammont escreve uma carta, para Cantão, ao embaixador holandês. No essencial, os objectivos do padre francês não serão diferentes dos que o levaram a escrever a Lorde Macartney. Pretende colocar-se ao serviço agora de um enviado do governo holandês, obter para si os dividendos de uma bem sucedida missão de um poderoso país europeu e "fazer frente" a José Bernardo de Almeida. Mais uma vez tudo lhe correrá mal. O embaixador holandês não consegue sequer crédito junto da corte chinesa que o despede sobriamente. A carta que Grammont escreve a Van Braam reveste-se, no entanto, de extrema importância e passo a transcrevê-la, quase na íntegra:

"(...) Esses senhores [ingleses], como todos os estrangeiros que não conhecem a China senão através dos livros, ignoravam o modo, os costumes e a etiqueta desta corte. Não puderam ter junto deles um missionário europeu que os pudesse instruir e dirigir. Assim:

Primeiro: Não trouxeram nenhuns presentes para o ministro de Estado [He Shen] nem para os filhos do Imperador. Segundo: Recusaram praticar a usual cerimónia de saudação ao Imperador, sem darem razão justificativa desta recusa. Terceiro: Apresentaram-se com roupas demasiado simples e vulgares.Quarto: Não tomaram a precaução de untar as mãos [graisser la patte]às diferentes pessoas indicadas para superintender os assuntos da embaixada.

Quinto: Os seus pedidos não foram feitos no tom e no estilo do país.

Outra razão para o seu insucesso, e na minha opinião a principal, deve-se às intrigas de um certo missionário [Almeida] que, imaginando poder ser esta embaixada prejudicial aos interesses do seu próprio país, não deixou de excitar sentimentos desfavoráveis à nação inglesa.

Acrecente-se a tudo isto que o Imperador está velho, há cabalas por toda a parte, maquinações como em todos os países. De resto, todos os grandes, os favoritos do Imperador, são gente ávida de presentes, de riquezas."17

Nove anos depois da infeliz embaixada de Lorde Macartney, uma esquadra inglesa estaciona diante de Macau e prepara-se para desembarcar e ocupar a pequena cidade. Em pânico, o Senado de Macau pede auxílio, os bons ofícios dos padres portugueses que vivem junto da corte chinesa. Mais uma vez temos José Bernardo de Almeida e D. Fr. Alexandre de Gouveia a conversar directamente com os grandes do Império.

Elaboram ambos uma extensa representação, com data de 19 de Agosto de 1802, endereçada ao "primeiro-ministro de Estado" e entre muitas questões falam de 1793 e da embaixada inglesa de Lorde Macartney.

Em 1966, Lo Shu Fu, num comentário a esta representação que publicou e traduziu de Ch'ing Chia-Ch'ing-chao Wai-Chiao Shih-liao (Documentos Diplomáticos do Reinado do Imperador Jiajing), Pequim, 1932, afirma textualmente:

"Esta representação mostra que durante a missão de Lorde Macartney os padres portugueses da corte sabotaram directamente os interesses ingleses, instilando deliberadamente o medo porque a Inglaterra havia anexado territórios em toda a parte e poderia fazer o mesmo na China."18

Que diz a representação dos padres portugueses?

"Nós, So Dezhao [José Bernardo de Almeida] e Tang Shixuan [Alexandre de Gouveia], e mais companheiros portugueses, representamos com todo o respeito que nos havemos voluntariamente exilado da nossa pátria distante deste Império muitos milhares de léguas para nos manciparmos ao serviço do magnífico Imperador da China, do qual, no decurso de tantos anos que nesta corte residimos, temos recebido grandes e repetidos benefícios, cada um dos quais não podemos dignamente agradecer, posto que todo o empenho diligenciemos mostrar o nosso reconhecimento mediante o limitado serviço que Sua Majestade ao nosso préstimo tem confiado.

Recentemente, temos recebido uma carta do nosso compatriota procurador da cidade de Macau, morador da mesma, pela qual nos faz sentir que aquela cidade se acha actualmente implicada em um negócio bem árduo, do qual podem resultar consequências da maior ponderação não só para os moradores da mesma, mas também sumamente funestas para a própria monarquia da China.

É constante que os portugueses residentes em Macau têm sido cumulados de infinitos benefícios pelos magníficos imperadores da actual dinastia da China, na observância de cujas leis e ordenaçÕes gozam, desde há muito tempo, de uma paz e tranquilidade suma.

Entre as diversas nações, porém, que das externas regiões vêm comerciar à China, existe um reino denominado Inglaterra cuja gente tem, lá no Ocidente, o distintivo carácter de enganadora e fingida. Esta nação, há já algumas dezenas de anos a esta parte, que se tem proposto e conserva o ambicioso desígnio de absorver em si tudo quanto há, para cujo efeito se vale frequentemente do aparente e fingido título de comércio, com o qual encobre os seus ocultos e cavilosos instintos. A fama, o carinho e protecção da monarquia chinesa, que com a sua virtude, sabedoria e poder ampara e defende os seus obstou, até ao presente, a que os ingleses manifestassem os seus rebuscados projectos.

Em o ano 58 do imperador Qianlong [1793], eles enviaram um grande navio com presentes para o Imperador e, entre as muitas coisas que os ingleses fingidamente pediam, os seus requerimentos tendiam não só a beneficiar as suas mercantis correlações mas também a que se lhes desse uma adjacente ilha, tudo a fim de poderem pôr em execução os seus premeditados estratagemas. Mas como por fortuna o alto predecessor do actual Imperador [agora Jiajing] percebendo os ardis não anuísse às suas paliadas pretensÕes, eles se foram. Não obstante, porém, não terem conseguido o fim a que vieram, eles contudo nem por isso têm desistido de o pretender, nem perderam jamais de vista qualquer ocasião de o puderem obter.

(...) Eles, no outro tempo, havendo entrado a título de comerciar em um reino da Índia denominado Bengala, o vieram a extinguir. Pediram primeiramente nele um pequeno lugar para sua interina residência, introduzindo-lhe depois muita gente e navios de guerra, e engoliram o dito reino, o qual é vizinho do Tibete, como na China se pode saber. Não somente neste lugar, mas em muitos outros têm os ingleses usado os mesmos estratagemas, e se eles chegarem a conseguir o que pretendem na China, a paz, o sossego não será durável neste Império. Os portugueses, porém, existem neste Império há mais de dois séculos sem terem até ao presente motivado desconfiança ou desassossego algum aos imperadores.

(...) Pelo benefício desta protecção que esperamos alcançar, nos reconhecemos ilimitadamente reconhecidos.

Nós, So Dezhao, Tang Shixuan, e companheiros que, com a devida veneração temos a honra de dirigir esta à presença de Vossas Excelências."19

Comunicação apresentada à XI Conferência da Associação Europeia de Estudos Chineses, realizada em Barcelona, de 4 a 7 de Setembro de 1Comunicação apresentada à XI Conferência da Associação Europeia de Estudos Chineses, realizada em Barcelona, de 4 a 7 de Setembro de 1996.

Revisão de texto por Luís Rebelo.

NOTAS

1 STAUNTON, George, An Authentic Account ofan Embassy from the King of Great Britain, London 1797, vol. 1, p. 233.

2 BARROW, John, Travels in China, London, 1804, p.111.

3 Veja-se o breve resumo destas Instruções e o comentário adequado de Ângela Guimarães em Uma Relação Especial: Macau e as Relações Luso-Chinesas (1780-1840), Lisboa, Cies, 1966, p. 49.

4 Arquivo Histórico Ultramarino [A. H. U.], Macau caixa 16, doc. 46, manuscritos.

5 COATES, Austin, Macao and the British, Hong Kong Oxford University, 1988, p. 78... ss.

6 PEYREFITTE, Alain, O Império Imóvel, Lisboa Gradiva, 1995, p. 12.

7 A. H. U., Macau, caixa 19, doc. 36, manuscritos.

8 Carta inédita do padre Amiot ao ministro Bértin, Setembro de 1774, BIF, ms. 1515, Paris, citado por PEYREFITTE, Alain, ob. cit., p. 317.

9 Apenas algumas achegas para essa biografia: as dezenas de cartas suas, escritas de Pequim ao Bispo de Macau D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães, entre 1775 e 1779, que se encontram no Arquivo Histórico Ultramarino, entre os documentos avulsos do Bispo, nas caixas de 8 a 12, Macau, manuscritos.

10 Para uma biografia de D. Fr. Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, ver o meu artigo sob este título na revista "História", (152) Maio 1992.

11 PRITCHARD, E. H., Letters from Missionaries at Peking, "Tong Pao", 2 (31) 1934, p. 10.

12 É muito curioso o documento chinês que fala destas promoções. Aparece nas Qingshilu (Crónicas da Dinastia Qing), 1432, 19b, e fala de So Dezhao (José Bernardo de Almeida) como "chefe dos intérpretes e dos outros ocidentais que traz com ele para Jehol".

13 PRITCHARD, E. H., ob. cit., p. 19.

14 Citado por PEYREFITTE, Alain, ob. cit., p. 150.

15 CRANMER-BYNG, Lord Macartney Embassy to Peking, "Journal of Oriental Studies", Hong Kong, (4)1957, p. 173.

16 PEYREFITTE, Alain, ob. cit., p. 285.

17 CORDIER, Henri, Histoire Générale de la Chine, Paris, 1920, vol. 3, p. 381.

18 LO Shu Fu, A Documentary Chronicle of Sino-WesternRelations, Tucson, University of Arizona, 1966, vol. 1, p. 344, e o comentário no vol. 2, p. 539.

19 O texto português desta representação está no Arquivo Histórico Ultramarino, manuscritos, maços José de Torres, livro V, n.o 540.

O secretário da embaixada inglesa, John Barrow, teve em 1803 conhecimento deste mesmo texto que logo comenta nas Travels in China, editadas no ano seguinte. Para Barrow, os nossos missionários, com todas estas acusações, provocaram mais ódios e uma maior vigilância do poder imperial sobre todos os estrangeiros residentes na China.

A verdade é que depois de 1799, com a morte do imperador Qianlong e a sequente condenação à morte e suicídio do até então todo poderoso primeiro-ministro He Shen — o protector de José Bernardo de Almeida e Alexandre de Gouveia —, a situação dos nossos missionários em Pequim vai conhecer bem piores dias.

Professor assistente na Universidade Nova de Lisboa, orientalista com vários trabalhos publicados, e leitor de Português no Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim.

desde a p. 47
até a p.