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Parece que foi ontem e, no entanto, surge-nos tão esbatido e remoto.

As sugestivas fotografias de Macau de Ou Ping despertam memórias antigas e quase consigo ouvir a sineta, a chamar-nos para a aula.

É a estação em que as acácias estão em flor. Com os professores à frente, os 40 a 50 alunos da primária caminham, como uma fila de patinhos, para o antigo campo de futebol da Praia Grande. Caminham ligeiros, ao longo do empedrado da Calçada de S. João, contornando a Escola Portuguesa de Macau, coberta de azulejos típicos. Os alunos passam os dedos pela textura rugosa das paredes, pensando como hão-de passar a sua preciosa e única aula ao ar livre da semana: a jogar futebol? A subir às árvores? Ou a atazanar as pobres formigas e insectos voadores...

Nas memórias da minha infância, o Campo dos Operários dos anos 60 e 70 é muito mais largo e espaçoso do que é na realidade. Sob o sol escaldante, sentia a humidade soltar-se da terra sólida e espessa, onde as crianças corriam, desenfreadas, atrás umas das outras. Os rapazes corriam de cá para lá, jogando basquetebol e os dançarinos do leão cabriolavam ao ritmo contagiante dos pratos e dos tambores, para admiração e aplauso geral.

Em noites de festa, o Campo dos Operários adquiria um outro aspecto – uma fiada compacta de lâmpadas brilhantes fazia da noite dia. Lá dentro e no exterior da entrada principal exibiam-se retratos enormes. A multidão afluía sem cessar ao maior espaço aberto que havia no centro da cidade, enquanto homens e mulheres, novos e velhos, esqueciam as agruras diárias e apreciavam os maravilhosos espectáculos. Os artistas davam o seu melhor no improvisado palco, interpretando eles próprios os papéis tão típicos desta época ímpar.

Há que agradecer sinceramente a Ou Ping, um fotógrafo de méritos firmados, com mais de 40 anos de fotojornalismo, que se serviu do seu apurado sentido artístico para captar com a sua câmara um Macau impressionante e único. No ano passado, numa atitude muito generosa, o senhor Ou Ping cedeu ao Museu de Arte de Macau as suas obras, para que os residentes e todos aqueles que nos visitam pudessem revisitar as memórias de uma pequena cidade de outros tempos.

Estas fotos trazem-nos recordações. Por ocasião do Dia Nacional da China, erguiam-se no meio da praça arcos cerimoniais temporários, que rivalizavam entre si em beleza e constituíam um traço único da cidade antiga. Numa zona da baixa, um barbeiro de óculos trata de um cliente, sem quase notar que se tornou tema de um trabalho fotográfico. Reparem no Pontão Nº 1 (em chinês conhecido como “ Ponte da Longa Vida”) – há muito que não víamos nada assim, a luz espelhada na água. Que cena tão bela e tranquila!

O tempo passou e a singeleza e harmonia iniciais da cidade ribeirinha mudaram a um ritmo impressionante. De um dia para o outro, o Campo dos Operários na Praia Grande – que serviu várias gerações de jovens – foi cercado por um muro, de onde se eleva hoje uma nuvem de poeira, criada por máquinas enormes e sem jeito. Que pena!

O tempo não perdoa. Será o Campo dos Operários a única perda nesta busca desenfreada de mudança da cidade? É difícil imaginar que um vulcão artificial em breve surgirá na marginal outrora tranquila. Apesar de nos sentirmos mal, não podemos deixar de agradecer aos pintores, fotógrafos, poetas e escritores que se serviram dos seus vários dotes para preservar cada rosto, cada árvore, cada história e cada momento marcante, testemunhos de um espírito e de uma unidade indomáveis.

Os fragmentos do passado de Macau estão na afeição das pessoas por este pequeno lugar – são os fragmentos da memória colectiva que fazem de nós a comunidade que somos hoje.



Ung Vai Meng
Director do Museu de Arte de Macau